quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Crítica: A Terra dos Filhos

A TERRA DOS FILHOS

(La Terra dei Figli)

por Joba Tridente 

Muitas obras já foram escritas e muitos filmes já foram feitos tendo como fio condutor o fim dos tempos, também conhecido como apocalipse..., que não chega a ser exatamente o fim dos tempos ou do mundo. Há sempre um revira e volta no caminho do caos para se acomodar ou ser acomodado em um sistema governamental distópico e ou num clima de selvageria que se imagina de pré-civilização, só que agora no pós-civilização. Em 2016 o quadrinista italiano Gian Alfonso Pacinotti, o Gipi, lançou a Graphic Novel La Terra dei Figli, obra ganhadora do Grande Prêmio da Association des Critiques et Journalistes de Bande Dessinée (ACBD); o Melhor Álbum do Festival de Saint-Malo, Prêmio de melhor história em quadrinhos de ficção científica e Grand Prix de la Critique. Com releitura bem econômica da Graphic La Terra dei Figli, o diretor italiano Claudio Cupellini filmou A Terra dos Filhos, que será exibido online e gratuitamente, no 16º Festival de Cinema Italiano (05/11/2021 a 05/12/2021). 

“Sobre as causas e os motivos que levaram ao fim,

poderíamos escrever capítulos inteiros nos livros de história.

Mas, depois do fim nenhum livro foi escrito.” 


Roteirizado por Claudio Cupellini, em parceria com Guido Iuculano e Filippo Gravino, A Terra dos Filhos (La Terra dei Figli, 2021) retrata a selvática vida de alguns sobreviventes de um cataclismo jamais explicado na trama. Eles sobreviveram e isto lhes basta no brutal dia a dia em busca de sustento. A história, que inicia com a caçada a um cachorro, acompanha, numa palafita de alagado, a rotina de um Pai (Paolo Pierobon) e seu Filho (Leon de La Vallée), que vivem do que conseguem caçar, pescar ou trocar. O Pai do adolescente passa muito tempo escrevendo e escondendo um diário, fruto da curiosidade do Filho analfabeto, criado apenas para sobreviver num mundo dizimado pelo veneno. Quando o Pai morre e desconsiderando as recomendações da bruxa cega (Valeria Golino), para os perigos de morte além do alagado o garoto decide sair em uma jornada do herói, para encontrar alguém que saiba ler e revele o que o Pai escreveu. Em seu caminho irão cruzar dois camponeses, Lourenzo (Maurizio Donadoni) e Matteo (Franco Ravera), o ordinário Aringo (Fabrizio Ferracane) e seu carrasco (Valerio Mastandrea), e a jovem Maria (Maria Roveran). 


O drama de ficção científica A Terra dos Filhos traz um olhar melancólico sobre o futuro, a memória e o conhecimento. Para quê compartilhar memórias ou cuidar do ensino dos mais jovens, quando não se tem esperança no amanhã, já que não se tem certeza de sobreviver hoje? É nessa frieza da realidade daqueles que “vivem” como podem e sem demonstrar apego ao que quer que seja, já que a vida vale menos que nada, quando se tem fome, que se desenha o roteiro com seus tons em cinza-sujo muito bem captados na textura fotográfica de Gergely Poharnok. Imagino que seria grandioso se filmado em preto e branco envelhecido. 

“Se um chora, o outro se aproveita” 


Torna-se curiosa a jornada do Filho embrutecido na convivência com o Pai (ocupado apenas com a subsistência e o que lhe resta de memória) em busca de alguém com algum conhecimento de leitura, mesmo colocando em risco a sua vida, num mundo idiotizado, para saber se aquele diário desvela a sua origem (indivíduo)..., ou sequer o seu nome (identidade). Uma jornada que, quanto mais longe vai, mais questionamentos deixa pelo caminho. Até onde o conhecimento é o sustentáculo de uma sociedade que, há muito, perdeu a sua humanidade? Na incerteza do amanhã é possível cultivar a escrita e a leitura ou aos improváveis sobreviventes de alguma hecatombe restará a oralidade, que principiou a civilização? Pelo que presenciamos hoje em dia, éramos bestas antes ou nos tornamos bestas milhares de anos após socializarmos? 


Embora comece com um indesculpável problema de continuidade (se contar vira spoiler, só preste atenção no cão), A Terra dos Filhos é uma produção muito bem cuidada, mas que, claro, talvez a adaptação não agrade a todos os leitores da Graphic Novel de Gipi. A paisagem silenciosa (que berra aos olhos do espectador) tem um papel preponderante no angustiante enredo, já que narra, sem palavras e sem redundância, grande parte da história que, em algumas sequências, evoca um arrepiante terror no pântano desolado. Pontos para a direção de arte de Marco Cardilli que dá veracidade perturbadora à trama que reforça a ideia do degelo global e do uso irracional de pesticidas (metáfora clara na casa dos irmãos agricultores Lourenzo e Matteo). Enfim, diálogos condizentes com a história, bom elenco e excelente direção (sem maneirismos!) de Claudio Cupellini, que mereceu o Prêmio Especial do Jornal Libertà, no Festival de Cinema de Bobbio. 

Trailer: aqui

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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