segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Crítica: Enquanto Houver Amor

 

ENQUANTO  HOUVER  AMOR

(Hope Gap)

por Joba Tridente 

O cinema está cheio de histórias de amor e de desamor na adolescência, na vida adulta e na terceira idade. Histórias que vão da comédia ao melodrama..., em tons de melancolia e de catarse. Uma vez que a maioria é contada por homens (e mesmo quando por mulheres), as personagens femininas, geralmente, parecem viver eternamente na dependência do amor masculino, para serem felizes, assim como na maioria das óperas (onde mulheres enlouquecem pelo amor de um homem que acabaram de conhecer e até morrem pelas mãos do amado que mal conheciam). Haja passionalidade! Mas se é o que vende... 


E por falar em rupturas amorosas também na terceira idade, está chegando às salas de cinema o melancólico drama Enquanto Houver Amor (Hope Gap, 2019), escrito e dirigido pelo britânico William Nicholson, tendo como base a sua peça Retreat from Moscow. Com pitadas de humor inglês nos diálogos, a trama..., situada na cidade costeira de Seaford, perto da enseada de Hope Gap, na Inglaterra, com seus penhascos brancos e sua paisagem tão bucólica quanto desolada..., desvela minúcias do longo casamento de Grace (Annette Bening) e Edward (Bill Nighy), que estão juntos há 29 anos e têm um filho, Jamie (Josh O'Connor), que mora em Londres e aparece de vez em quando para visitar os pais idosos. 

Ela é antologista de poesia e prepara uma seleção com grandes nomes da literatura mundial. Ele é professor de história e trabalha intensamente num curioso texto sobre a Retirada de Napoleão de Moscou (focado na morte dos soldados mais fracos deixados para trás), para publicar na Wikipédia. A altiva Grace é uma devotadíssima católica subserviente ao deus judaico-cristão e às suas leis. O introspectivo Edward não tem certeza do credo. Trabalham quase lado a lado, ou melhor, com certa distância e cada um na sua janela. Compartilham tradicionalmente chás, observações sobre seus trabalhos e as escassas notícias do filho. 

Por que você só bebe metade do seu chá?

Acho que é porque não gosto que as coisas acabem. 


Na primeira impressão, um casal de meia-idade feliz ou, ao menos, harmonioso. Porém, na segunda, com o recorte preciso das arestas, as máscaras caem e, no face a face, pelo esboço dos diálogos ferinos, nota-se que algo claudica na intimidade do velho casal para além do mero desgaste natural de um casamento de quase trinta anos. Será que segredos não confessados estariam minando a relação? Hoje em dia tem casamento que não dura uma semana. Antigamente durava mais (por tradição familiar, social, religiosa)..., são poucos os remanescentes. 

A resposta chega junto com a visita de Jamie e na véspera da comemoração de Bodas de Ervas dos pais, quando Edward, que sempre foi incapaz de reagir às intensas provocações da esposa, anuncia ao filho e à Grace que está indo embora. E vai..., levando apenas o essencial em uma mala. A razão da sua partida (que não vou contar) faz sentido, diante da personalidade imponente da mulher. Mas, não justifica ter demorado tanto para acontecer. 


Bem, talvez seja melhor assim, não? A felicidade de um, a infelicidade da outra e fim. Faz parte do jogo, certo? Errado, esse é só o longo prólogo. Agora é que o drama pega fogo, com a inconformada Grace tentando recuperar o seu amor perdido e Edward tentando se safar e querendo simplesmente seguir em frente. Não será fácil para nenhum dos dois. Muito menos para Jamie, que a possessiva Grace insistirá em usar como joguete para reverter a situação e trazer o seu amado marido de volta ao cabresto. Ah, o ser ou não ser subserviente a deus ou à esposa na questão conjugal! 

Eu sou a vítima aqui.

Ele assassinou nosso casamento. 


Em seu dramático Enquanto Houver Amor, Nicholson, fala de uma história de amor que começou casualmente e que, também, casualmente terminou, mas que foi se arrastando até se tornar insuportável..., aparentemente sem tomar partido das ações e reações dos seus personagens (enraivecidos ou aliviados) com a situação. Aparentemente, porque, ainda que não aprofunde muito a personalidade deles, percebe-se onde a empatia por algum membro desta harmoniosa família dá a impressão de ser maior. O que não quer dizer que o espectador vá concordar com ela. Na hora de colocar os pingos nos is: A provocativa Gracie é a estridente senhora cheia de si, aquela que grita: Não! O observador Edward, de fala mansa, é aquele que não gosta de incomodar e prefere sempre balbuciar: Sim! Quanto ao Jamie, praticamente a cópia do letárgico Edward, em sua herdada insegurança, é o que diz: Talvez! Uma família possível, mas disfuncional, inspirada na família do diretor (Jamie é baseado nele). 


Enfim, uma trama que, em busca de reflexão sobre rotinas e desgastes de casamentos, mergulha fundo em sentimentos obsessivos e de desapego para entender as consequências de uma decisão de ruptura amorosa, protelada por anos, na vida de cada membro de uma família que se acreditava estável, mas que sempre esteve aprisionada sob camadas de frustação e de idealização amorosa. Um enredo cujo subtexto explicita a importância do diálogo (familiar) que vá além do cumprimento diário, que ponha o dedo nas incômodas feridas do desamor, antes que a humilhação vire hábito e que a amargura torne a relação incurável..., fazendo sobrar lugar demais na cama de casal e na mesa das refeições. 


Ótima performance do elenco que dá vida ao trio de personagens frágeis (ainda que imponentes) e solitários que, uma vez confrontados com seus fantasmas tremulando na inconstância cotidiana da mágoa, tentam resgatar o instante de felicidade que antecedeu o fim do idílio familiar, para seguirem renovados. É claro que Enquanto Houver Amor não é uma história de ruptura amorosa das mais originais (não faltam visões cinematográficas do mesmo tema), mas é um filme sentimental com qualidades e que deve agradar principalmente aquele público que se identifica com histórias de amor na terceira idade..., e com um final satisfatório ao credo de cada um (quem assistir entenderá!). 

Segundo William Nicholson: "A separação dos meus pais não é algo particularmente especial, acontece com tantas pessoas. Mas, quando me decidi a escrever sobre isso, foi muito emocionante. Existem alguns momentos emocionais muito fortes, dos quais alguns realmente aconteceram comigo e com meus pais. Nós tendemos a agir como se o divórcio fosse devastador para crianças pequenas, mas bom para adultos. Não é. Se você cresceu e seus pais se separaram, isso faz você repensar a base da sua infância. 

Trailer: aqui

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba. 


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