quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Crítica: A Menina Que Roubava Livros


Nos EUA, um best-seller sempre desperta interesse hollywoodiano. Não importa muito o gênero (drama, terror, fantasia, infantil, erótico, autoajuda, graphic novel), mas o número de exemplares vendidos. Aos olhos dos produtores, a adaptação de um livro de sucesso deve levar ao cinema, além dos tradicionais espectadores, milhares de leitores da famosa obra original. Porém, um campeão de vendas não quer dizer necessariamente campeão de bilheteria. Daí que, por falha matemática, muito livro encalha no roteiro e outros claudicam diretamente no DVD.

Nem todo sucesso de bilheteria tem fórmula pronta. Óbvio, livro é livro e cinema é cinema, cada um com a sua dinâmica. A adaptação de páginas e mais páginas de uma obra literária para o cinema, segue um critério, por vezes, tão discutível que, muitas narrativas, tornam-se reconhecíveis apenas no título. Outras são meras ilustrações do texto adaptado. O que nem sempre agrada aos leitores. É praticamente impossível transpor o clima de um texto literário para um roteiro cinematográfico. Ou seja, manter o cerne de um, na linguagem do outro, como se diz: não é trabalho para amadores. Todavia (por vezes) acontece de contos e romances considerados infilmáveis resultarem melhor na telona que obras mais filmáveis.


A Menina Que Roubava Livros (The Book Thief, EUA/Alemanha, 2014), é um drama de guerra dirigido com tocante sensibilidade por Brian Percival. Adaptado por Michael Petroni, do livro homônimo de Markus Zusak, lançado em 2005, a história se passa entre 1938 e 1945, numa fictícia cidade alemã chamada Molching. Ali, após o “desaparecimento” da mãe, Liesel Meminger (Sophie Nelisse), de 8 anos, é obrigada a viver com pais adotivos, o simpático Hans (Geoffrey Rush) e a severa Rosa Hubermann (Emily Watson). Com a ajuda de Hans, a garota é alfabetizada e descobre o poder da palavra escrita e falada, como meio de comunicação, entretenimento e persuasão. O único amigo de Liesel, é Rudy Steiner (Nico Liersch), um garoto, louco por futebol, que cultiva “perigosas” ideias esportivas e é apaixonado por ela. Ambos tentam compreender a força do nazismo emergente que arrebanha os alemães para a guerra e alija povos e pessoas contrárias ao radicalismo do nacional-socialismo.


Assim como no livro (que li apenas o resumo), a história é “narrada” com certa amargura pela Morte, que faz intervenções esporádicas e observações um tanto irônicas e descartáveis. Um pequeno detalhe neste belo filme que, através do olhar inocente de uma garota apaixonada por livros, disseca os signos da linguagem, expondo (de forma clara) o valor de um orador, cuja eloquência (em qualquer época e ou regime) tem o poder de entreter ou de corromper. Em seu famoso O Prazer do Texto (Le Plaisir du Texte, 1973), Roland Barthes diz: “Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez provoque até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.” (p.49). E, ao falar de “escritura em voz alta”, finaliza dizendo: “Uma certa arte da melodia pode dar uma ideia desta escritura vocal; mas, como a melodia está morta, é talvez hoje no cinema que a encontraríamos mais facilmente. Basta com efeito que o cinema tome de muito perto o som da fala (é em suma a definição generalizada do “grão” da escritura) e faça ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade, a respiração, o embrechado, a polpa dos lábios, toda uma presença do focinho humano (que a voz, que a escritura sejam frescas, flexíveis, lubrificadas, finamente granulosas e vibrantes como o focinho de um animal), para que consiga deportar o significado para muito longe e jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do ator em minha orelha: isso granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui.” (p. 115 e 116).  

Em A Menina Que Roubava Livro, o prazer da leitura de Liesel se dá na compreensão dos signos que desvelam os “segredos” da construção de um texto para a escrita e para a fala. Em dois momentos singulares ela se verá contando histórias para acalentar as almas daqueles que se abrigam nos porões, fugindo do regime e ou das bombas. É muito significativo que suas belas histórias brotem no escuro, em meio à dor e o caos, trazendo “luz” ao recinto. Foi na dor de ver o corpo do irmão sendo enterrado que Liesel, sem saber do que se tratava, “encontrou” o seu primeiro livro: “Havia uma coisa preta e retangular abrigada na neve. Só a menina viu. Ela se curvou, apanhou-a e a segurou firme entre os dedos. O livro tinha letras prateadas”. Ao aprender a ler a garota descobriu que a sua preciosidade era O Manual do Coveiro. Ou seja, ao sair das trevas (ignorância), ela encontrou a luz (conhecimento), que um dia também se apagará. Conforme prenuncia a Morte: “Você vai morrer. Isso preocupa você?”.


A versão cinematográfica está focada mais na palavra (que pode levar à guerra) do que nos fatos que eclodiram na Segunda Guerra Mundial. Não na palavra de ordem, mas naquela que pode desarmar os espíritos mais arredios..., porque provoca a reflexão, e por isso muito mais temida pelo totalitarismo. Alguns críticos norte-americanos esperavam (?) que o drama, ainda que juvenil, tratasse com mais relevo assuntos clichês do gênero: campo de concentração (outra vez?!) e sofrimento dos judeus (outra vez?!). O filme não omite fatos relacionados aos judeus e ou à resistência ao regime, apenas os apresenta (corretamente!) na leitura de duas crianças que (como outros moradores do lugarejo) não conseguem dimensionar o tamanho da catástrofe, mas sentem na pele todo o horror da guerra. Ora, este não é mais um filme sobre o holocausto (ainda bem!), mas, sim, sobre a paixão de uma garota por livros, por conhecimento, e que se passa no conturbado período em que também eram comuns as famigeradas fogueiras para queimar de livros. Algumas passagens, inclusive, nos remetem à obra-prima Fahrenheit 451 (já levada ao cinema por François Truffaut), do escritor Ray Bradbury (1920-2012). O romance distópico, publicado em 1953, foi escrito nos porões da Biblioteca Powell, na Universidade da Califórnia, como prova de amor aos livros e bibliotecas, segundo o mestre Bradbury.

A Menina Que Roubava Livros é terno, é lírico, com espaço para o humor ligeiro. Ainda que fale de opressão, seu discurso é o da esperança. A narrativa, com bons diálogos, contagia com sua crueza, jamais cruel. Mesmo em momentos pungentes, Percival consegue dar rasteira na pieguice e congelar qualquer ameaça de sentimentalismo barato (a sequência das Cartas Imaginárias é admirável!). Quando preciso, imagens e silêncio falam por si. O elenco está em perfeita comunhão com a obra. A produção é caprichadíssima, todavia falha em não “se tocar” de que na Alemanha Hitlerista as pessoas falavam o alemão e não o inglês (com sotaque) – dane-se que o espectador norte-americano odeia ler legenda; e tampouco notar o cochilo da maquiagem (no envelhecimento das personagens e vítimas de explosões). Detalhes que (me) incomodam, mas que não comprometem este surpreendente filme que pode ser visto sem susto por toda a família.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Crítica: Trapaça



A vigarice é assunto comum em pelo menos dois filmes que concorrem ao Oscar: O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, e Trapaça, de David O. Russell. Duas leituras bem diferenciadas do mercado de finanças. A de Scorsese, espetaculosa por natureza de ego pra encher linguiça. A de Russel, cativante por natureza de roteiro primoroso.

Trapaça (American Hustle, EUA, 2013) é daquelas produções que te arrebatam (e não te largam) de crédito (vintage) a crédito. Logo de início o espectador é alertado de que verá uma ficção, sem compromisso com os fatos que a inspiraram e, portanto, nem tudo aconteceu daquela forma. A história se passa na virada da década 1970, nos EUA, e é livremente inspirada no Escândalo Abscam, que derrubou vários políticos norte-americanos envolvidos com tráfico e corrupção pública. A conturbada operação foi orquestrada pelo FBI, com a “colaboração” de um vigarista condenado e de um agente disfarçado de árabe.

Num clima deliciosamente pop-noir (setentista), onde o que menos importa é a veracidade dos fatos, os roteiristas O. Russel e Eric Warren Singer fuçam os bastidores da famosa Operação Abscam para desvelar, romanticamente, os seus principais personagens, em performances brilhantes do elenco: Irving Rosenfeld (Christian Bale) é dono de lavanderias e vigarista nas horas vagas, um apreciador do jazz de Duke Ellington, assim como sua amante e parceira de golpes Sydney Prosser (Amy Adams) que, com elegância britânica de uma “Lady Edith”, pensa grande, mas não o suficiente para livrar o casal das mãos de Richie DiMaso (Bradley Cooper), um ansioso agente do FBI que, atrás de promoção, usa os trapaceiros numa investigação e coloca em risco a popularidade administrativa do apaixonante Carmine Polito (Jeremy Renner), prefeito de New Jersey preocupado apenas com o bem da sua comunidade. Na periferia dos acontecimentos está Rosalyn Rosenfeld (Jennifer Lawrence), a doidivana mulher de Irving, que, de tão ingênua em sua loirice, nem sabe que pode por toda a operação a perder.


Corrupção pode ser um assunto “espinhoso”, mas nem por isso precisa ser chato ou caricato (como no fantasioso O Lobo de Wall Street). A excelência do enredo, diálogos inteligentes, pincelados com boas doses de humor e romance (estilo novelão latino) e um elenco no seu melhor momento, fazem valer cada minuto e cada centavo de Trapaça. O apuro na reconstituição de época surpreende. A sensação é de se estar vendo não a um filme de época, mas da época, na cor e sabor dos anos 1970/80. Figurino, maquiagem (bobes!), música ambiente..., são um espetáculo à parte. Disse música ambiente porque em momento algum Russel se aproveita de odiosa trilha clichê para induzir emoções. A música, quando aparece em cena, é apenas como raro complemento à ação, como, por exemplo, na sequência em que rola a canção bondiana Live and Let Die, de Paul e Linda McCartney: impagável. Também não tem preço a dança de DiMaso (Cooper) e Prosser (Adams), na 54 - só quem frequentou boates/discotecas naquele tempo vai entender (o ridículo?). Agora, se é pra antologia, a cena de Irving (Bale) montando o seu cabelo não tem pra ninguém.

Trapaça é um filme-armadilha que enreda tanto os seus fantásticos personagens - vítimas da própria trapaça que criaram - quanto o espectador, embevecido com suas histórias (de altos e baixos) em sequências memoráveis. Há sempre uma levando à outra ainda melhor..., culpa do timing (cômico, romântico, dramático) do elenco numa narrativa muito bem amarrada e onde o crime e o castigo é apenas um detalhe. Nas reviravoltas do roteiro, Lawrence, com sua desleixada Rosalyn, rouba muitas cenas, mas, creio que as mais tocantes, são as de Renner na pele do sonhador prefeito Carmine, cuja ambição de dar uma vida melhor aos cidadãos do seu estado acaba virando um pesadelo. É impossível não se emocionar, no epílogo, diante da frustração de Carmine e o remorso de Irving.

David O. Russell vem se aprimorando na arte de transformar histórias pequenas (O Vencedor, O Lado Bom da Vida) em grandes pérolas. Trapaça é um colar de pérolas multicoloridas que combina com qualquer roupa, já que é apenas uma questão de tempo (ou moda!) para que o chique vire brega e vice-versa. Diversão, na medida, para quem gosta de pensar durante e depois da sessão de cinema. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Crítica: O Lobo de Wall Street



Hoje, após 22 meses de prisão, o self-made man norte-americano Jordan Belfort é palestrante motivacional. Antes da punição foi um dos maiores nomes do mercado de ações. Acredita-se que tenha acumulado uma fortuna de bilhões de dólares que, assim como veio fácil, foi facilmente consumido com drogas, iate, avião, casas, prostituição etc. A sua depravação, aparentemente, teve fim (?) ao ser condenado por fraude de títulos e lavagem de dinheiro. Ao colaborar como FBI teve reduzida a pena (de quatro anos) de prisão e pairam dúvidas se está restituindo (com seus ganhos atuais) os 110 milhões aos investidores enganados.

A vigarice de Belfort inspirou o filme Boiler Room (2000), do diretor Ben Younger, e duas autobiografias: O Lobo de Wall Street e A Caçada ao Lobo de Wall Street. As duas obras do ex-corretor, adaptadas por Terence Winter, com direção de Martin Scorsese, resultaram no inclassificável O Lobo de Wall Street. Protagonizado por Leonardo DiCaprio, na pele de Jordan Belfort, a produção (drama, policial, comédia, paródia, deboche?), na tradicional leitura grandiloquente (180 min!) de Scorsese traz para a telona, na maior parte (mesmo!)  da trama, toda a depravação de Belfort e de seus funcionários, que viviam numa eterna orgia (regada com muita droga) dentro e fora da empresa de corretagem ostentação. As cenas (cansativas depois de 2 horas de mesmice) são tão bizarras e fantasiosas que é difícil acreditar que tenham acontecido “assim”..., estão mais para delirium tremens generalizado. Todavia, quem leu os livros, e comparou, disse que o filme é bem fiel ao relatado. O que não quer dizer que a obra seja fiel à memoria (apodrecida) de Belfort. No tempo restante, de uma hora, ou pouco menos, a história (que interessa?) gira rangendo em torno das falcatruas, cerco policial e vida “pessoal” ou “romântica” do escroque bon vivant.


O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, EUA, 2013), de Scorsese, é dúbio e espetaculoso. O alucinante movimento de câmera, com suas lentes “intrusivas”, desvela camada a camada um Jordan que parece definitivamente nascido para a (rendosa?) prática de crimes financeiros. No jogo de cena, a telona do cinema vira telinha da TV, onde a publicidade abusa das artimanhas para vender aos incautos espectadores (!) o psicótico personagem como um produto (divertido) altamente rentável.

Independente ao olhar crítico, cada espectador, em busca de mero entretenimento, fará a leitura que quiser e colocará metáforas (absurdas?) onde bem entender, já que o “lobo” do título, pela sua famosa voracidade, pode ser tanto um predador sexual quanto um predador econômico, e a sua empresa/covil, tanto território de negociatas quanto jardim de libertinagem. Mudando o foco, será que Jean-Jacques Roseau (1712-1778) estava certo ao dizer que todo homem nasce bom e a sociedade (econômica?) o corrompe?


O Lobo de Wall Street, ainda que na cola de Os Bons Companheiros, está aquém de Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme (“Não diga mentiras sobre mim, que eu não direi verdades sobre você”), de Oliver Stone e do envolvente Trapaça, de David O. Russell. Dependendo do ponto de vista (e do Tico e Teco!) pode ser tão engraçado quanto trágico. Excetuando o ótimo DiCaprio, há nada a se dizer do elenco totalmente coadjuvante e igualmente histriônico nessa ode à machofalocracia, onde abundam nádegas masculinas e as personagens femininas praticamente estão na fita apenas para “favores” sexuais (em simulações ridículas).

Em sua maioria, as cenas de “sexo”, degradação humana e consumo de drogas são gratuitas (descartáveis!), aborrecidas e estão longe de escandalizar o público mais moralista. A repetição exaustiva desse cotidiano deplorável dá uma sensação de caricatura à narrativa desgovernada. Nesse clube da bolinha, digo, do Bolinha, uma hora (e meia) a menos seria muito bem-vinda. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Crítica: Cidade Cinza


O que é arte, afinal? Certa vez, visitando uma exposição de arte conceitual, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, achei engraçada a tentativa frustrada de uma monitora em convencer um grupo de crianças a gostar de algumas obras “estranhas”. Ela usou todos os argumentos possíveis sobre a dedicação do autor..., em vão. A subjetividade não convenceu as crianças que preferiram o prazer de outras cores.

A propósito, no capítulo 2: O público não está convidado (e nunca esteve), de seu memorável e divertido A Palavra Pintada (The Painted Word, 1975) - lançado no Brasil pela LPM, em 1987, com tradução de Lia Alverga-Wyler - Tom Wolfe, traçando o curioso percurso da Arte Moderna, sem esquecer os percalços, diz que: “A ideia de que o público aceita ou rejeita qualquer coisa em Arte Moderna, a ideia de que o público escarnece, despreza, não consegue compreender, deixa esmorecer, aniquila, ou comete qualquer outro crime contra a Arte ou artista isoladamente é apenas uma ficção romântica, um sentimento agridoce. O jogo termina e os troféus são distribuídos antes de o público saber o que aconteceu. O público que compra livros em brochura e encadernações aos milhões, o público que compra discos aos bilhões e lota os estádios para assistir a concertos, o público que gasta 100 milhões de dólares em um único filme – esse público influencia o gosto, a teoria e a perspectiva artística na literatura, na música e no teatro, embora haja elites palacianas que se aferram um tanto desesperadamente a cada uma dessas áreas. O mesmo nunca foi verdadeiro com relação à arte. O público cujos números gloriosos são registrados nos relatórios anuais dos museus, todos aqueles estudantes e ônibus de turistas e mamães e papais e intelectuais fortuitos... são apenas turistas, colecionadores de autógrafos, basbaques, espectadores de desfiles, quando se trata do jogo do Sucesso na Arte.” (p. 30/32). Para Wolfe, os colecionadores não compram obras de arte, mas autógrafos (do autor na obra de arte).


Arte! Tanto pode ser tudo quanto pode ser nada! Ou mera questão do ponto (atemporal) em que se avista..., e do grau de alfabetização no assunto. Convivi com artistas de extremos. Alguns com criatividade e técnica apuradíssimas e outros apenas medianos. Certa feita, um renomado artista pintou de branco uma tela, só de brincadeira, para um importante Salão Nacional de Artes Plásticas; outro, ainda desconhecido e um desastre em anatomia artística, inscreveu seu “figurativo” em um Salão Regional de Artes Plásticas. O primeiro, que fez uma gozação, e o segundo, que não sabia pintar, foram premiados pela expressividade (!) de seus trabalhos. Eles entenderam nada. Ri com os dois.

A quem cabe definir o quê é e o quê não é arte? Ao artista? Ao crítico? Ao curador? Ao público espectador? Ao visitante (apressado) que não se detêm por nenhuma obra em uma exposição? Filme de Arte, Teatro Cabeça, Arte Contemporânea..., são linguagens (de expressão) e ou preciosismos (idiossincráticos) de artistas na contramão da cultura dita popular? Definir ou indeferir os signos básicos da cultura (popular ou elitista) e da contracultura, hoje, parece um exercício árduo, já que a leitura e a compreensão da obra lida, pela geração que vem tomando assento na plateia, há algumas décadas, está muito aquém do desejado. Simplificar ou reformular o diálogo só faz deformar o conteúdo. Não é questão de semântica, mas de “- se manda!”.


Cidade Cinza, de Marcelo Mesquita e Guilhermo Valiengo, é um documentário onde a subjetividade se faz presente até no título. O filme trata com pertinência a controversa questão envolvendo grafite (graffiti) e pichação, que se confundem e também se fundem nas paredes, muros, fachadas de edifícios, monumentos, postes e qualquer espaço urbano ao alcance do spray dos grafiteiros e dos pichadores. Para uns, o grafite, com seus coloridos traços, é genuína arte de rua. Para outros, a pichação, com a sua indecifrável escrita, é ato de vandalismo. Liberdade de expressão ou expressão de liberdade? Um confronto cego (ou seria certo?) entre a semântica e a vigilância do “- se manda!”.

Quando criança, no interior de São Paulo, era comum encontrar pelo caminho o nome Casas Pernambucanas, pintado (com cal) em pedras, porteiras, barrancos, troncos de árvores à beira de estradas de terra ou asfaltada. Ficava imaginando como aquele nome aparecia, da noite pro dia, nos lugares mais ermos. Adolescente, morando na capital, lembro da enigmática pintura: Cão Fila k26. Hoje, propagandas de lojas e de políticos (em época da eleição), palavras de ordem contra o (des)governo perderam a sua base para as pichações, grifos que emporcalham patrimônios públicos e os privados, da noite pro dia, marcando território em edificações de qualquer altura.


Cidade Cinza, de Mesquita e Valiengo, que também poderia ser intitulado de A Pintura Apagada, num contraponto interessante à tese de Wolfe, em seu imperdível A Palavra Pintada, tem o seu foco principal na “repintura” de um mural de 700 m², grafitado por artistas paulistas, na Avenida 23 de Maio, em São Paulo, e apagado “por engano”, em entendimento da Lei Cidade Limpa, por funcionários de uma empresa contratada pela Prefeitura de São Paulo, na gestão de Gilberto Kassab, para cobrir com tinta cinza toda e qualquer pichação e ou grafite no centro e arredores da cidade. Ao contrário da Lei Ficha Limpa, pelos políticos, a Lei Cidade Limpa (ainda em vigor) continua sendo levada ao pé da letra, pelos “servidores”.

Enquanto “repintam” o mural, os grafiteiros, hoje internacionalmente conhecidos, como OsGêmeos, Nunca (com impressionante domínio técnico, próximo à gravura) e Nina, falam sobre a obra em questão, movimento hip-hop e de suas trajetórias no “mundano” território da arte de rua e da “migração” para espaços, digamos, mais nobres das galerias em diversas partes do mundo. Além deles, ganham voz e roubam a cena os empregados da empresa contratada pela prefeitura de Sampa, em 2008, para “apagar” os grafites e as pichações. Ingênuos e arrogantes os funcionários analisam, julgam e decidem o que vão cobrir com tinta cinza e o que (raramente) vão deixar mais ou menos “intacto”. Os seus palpites sobre as pinturas, desenhos e pichações que encontram pelo caminho são impagáveis. E o mais irônico é que um deles já foi pichador.


Ao dar voz a artistas, galerista, não-artistas, Cidade Cinza abre relevante discussão (pública) sobre o jato de tinta e o traçado que distinguem o grafite e a pichação, bem como o atributo que faz o primeiro a ser considerado arte, com passe livre para galerias, e a segunda mero ato de vandalismo, condenado ao cinza.  Esse fascinante leque de conceitos, pré-conceitos e preconceitos, expostos de modo tão convincente, faz com que até mesmo o espectador mais radical se dê uma segunda chance de leitura das “intervenções” que encontrará pela rua no seu retorno para casa. Pode não mudar de opinião sobre “a sujeira ao redor”, mas que dará uma nova olhada, isso não há dúvida.

Em Curitiba, recentemente foram grafitadas duas paredes em prédios próximos. Em ambas o “motivo” é internacional (!). A lateral de uma academia de ginástica traz, além de uma “careta”, um texto: “Trabalho sem diversão faz do Jack um bobão”. Ora, por que Jack, e não Zé, Pedro, João? Já a lateral de um banco internacional traz o rosto do músico norte-americano Ray Charles. Será que nossos artistas não são tão (ou mais) relevantes? Poderiam ser grafitados (só para ficar na raça e no ofício): Grande Otelo, Cartola, Machado de Assis... O grafite da academia já foi vandalizado por pichadores.


Cidade Cinza (Brasil, 2013) é um filme independente, realizado ao longo de seis anos. Uma excelente oportunidade para os amantes e curiosos dos velhos e dos novos hábitos da arte conhecerem (?), se deliciarem com as belas obras d’OsGêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo), de Nunca (Francisco Rodrigues) e de Nina (Carina Pandolfo), criadas no Brasil e exterior. E, de quebra, se embasbacar com a lógica dos funcionários que “apagam” os grafites e pichações, e com o discurso das autoridades na “reinauguração” do mural. Vale destacar a ótima música de Criolo, que integra a trilha de Daniel GanjamanO que é arte, ao final?

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