segunda-feira, 16 de março de 2020

Crítica: A Jornada



A JORNADA
por Joba Tridente

Hoje em dia, muitas mulheres abdicam da maternidade para realizar seus sonhos profissionais de infância ou de juventude. Outras até buscam conciliar a vida profissional e a vida familiar (ou maternal), mas pagam um preço alto..., principalmente se, por mais que se tentem presentes, se tornam mães ausentes. Dilema difícil para mulheres com instinto maternal e anseio profissional num mercado (global) de trabalho competitivo e (ainda?) redundantemente machista (toma que o filho é teu!).

Relação conturbada entre pais e filhos é apêndice recorrente no cinema (Spielberg que o diga!)..., anda a tiracolo até mesmo em filmes trash dos estúdios Asylum e Syfy. Nem mesmo a literatura, o teatro e a música a ignoram. O que não quer dizer que toda obra cultural que a opere em sua trama seja um primor artístico e ou sequer relevante. Se não é questão de gosto, é de leitura.


Em A Jornada (Proxima, 2019), a diretora francesa Alice Winocour, que divide o roteiro com Jean-Stephane Bron, traz à tona o dilema da astronauta Sarah Loreau (Eva Green), que recebe o convite da Agência Espacial Europeia (ESA), para viagem de um ano à Estação Espacial Internacional, e tem de decidir entre finalmente realizar o sonho que acalenta desde os oito anos de idade ou ficar com a filha Stella (Zelie Boulant-Lemesle). A mãe sabe que pode confiar os cuidados da filha ao ex-marido, o astrofísico Thomas (Lars Eidinger), e pai da garotinha de oito anos..., mas, a astronauta está realmente preparada para cortar o cordão umbilical terrestre em prol da ligação do cordão umbilical espacial?

Entre metáforas e questões sobre dedicação maternal e comprometimento profissional, Winocour vai sublinhando a narrativa com sutilezas que berram aos nossos ouvidos, já que, em sendo mulher, num ambiente predominantemente masculino (já foi mais!), à beira das misoginia, Sarah é obrigada a ouvir gracejos revoltantes sobre o lugar e ou a função da mulher numa sociedade machofalocrata e se manter íntegra. Nem todo conselho e ou advertência masculina à profissional (mulher e mãe) é explícita, mas, quando se está fragilizada e se sentindo culpada ou frustrada por se ver na iminência de abandonar a filha ou o tão sonhado projeto espacial, qualquer gesto de um superior pode aumentar a tensão e causar desconforto imensurável. A ansiedade abre feridas que podem não se fechar, se promessas forem quebradas...


Filmado (em maior parte) nas instalações da Agência Espacial Europeia (ESA), na Rússia e Baikonur, no Cazaquistão, e contando com a participação especial do astronauta francês Thomas Pesquet (da Expedição 51, em 2017), que contracena com as personagens de Eva Green (Sarah), de Matt Dillon (o arrogante astronauta americano Mike Shannon, capitão da missão) e Aleksey Fateev (o simpático cosmonauta russo Anton Ochievski), a ficção (com cara de docudrama) ganha maior credibilidade ao mostrar não apenas as observações técnicas de Pesquet, mas também o funcionamento do centro de treinamento e de preparação física e psicológica da ESA. Para o espectador, que também sonha em um dia galgar o espaço sideral, a filmagem nas entranhas da Agência Espacial é uma mochila cheia. As sequências de treinamento dos astronautas podem ser meio cansativas, mas são essenciais para se compreender a razão do esforço físico de Sarah e como essa etapa  influenciará a sua decisão entre o espaço sideral e a filha.

Embora, na astronáutica, a distância profissional entre homens e mulheres tenha diminuído significativamente (a astronauta norte-americana Peggy Annette Whitson, de 60 anos, por exemplo, participou de três expedições e foi a primeira mulher a comandar duas missões na Estação Espacial Internacional (2007 e 2017) e aquela, entre os astronautas da NASA, com mais tempo no espaço: 665 dias), sempre há um resquício, conforme a cultura local, a ser combatido. E é nesse resquício que Alice Winocour se detêm para falar tanto de vínculo da maternidade quanto de discriminação de gênero. Até onde um e outro interferem e ou afetam uma escolha profissional? Se não há julgamento moral, na dependência de mãe e filha, e nem ético, no conflito cultural de personagens com observações sexistas, toda escolha é egocêntrica? É você, espectador, quem dará o veredicto.  


Enfim, considerando que o roteiro escapa das armadilhas da ficção científica e antes de discutir o quê os astronautas levam às estrelas, se põe a refletir sobre o quê eles deixam no chão (Nos preparamos muito para sair da Terra. Mas voltar é a parte mais difícil. Nos damos conta de que a vida continuou sem você.); que, embora majoritariamente masculino, o protagonismo é feminino; que o elenco é excelente e que os diálogos (mesmo quando soam caricatos) são ótimos; que o drama tipicamente europeu desconstrói a mítica norte-americana de que em todo o planeta e universo conhecido e ou a se conhecer se fala o inglês estadunidense, ao colocar cada personagem (excetuando a poliglota Sarah) falando em sua língua pátria (francês, russo, alemão, inglês americano); que o conflito entre Sarah e Stella é convincente; que a coleta de memórias terrestres para aplacar a saudade no espaço emociona; que a pungente trilha sonora composta por Ryuichi Sakamoto não incomoda e a fotografia de George Lechaptois proporciona um realismo interessante e sem protagonismo..., A Jornada é um drama contemporâneo que, com seu enredo envolvente e crível (Winocour entrevistou vários astronautas antes de escrever a trama), pode surpreender qualquer gênero de público. Ah, entre os créditos finais é apresentada uma série de fotos de mulheres astronautas com seus filhos.   


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Crítica: O Melhor Está Por Vir


O MELHOR ESTÁ POR VIR
por Joba Tridente

Numa época individualista e de amigos virtuais de ocasião (cuja maioria você jamais conhecerá fisicamente), uma boa e velha amizade, daquelas que une pessoas (na alegria, na tolice e na tristeza) por décadas e sem qualquer explicação lógica (além do acaso do primeiro encontro), vale ouro, nas horas mais frágeis de cada um. Não há fronteira familiar que barre a amizade verdadeira. Portanto, na engrenagem (ou traquinagem) do tempo, que engole segundos e minutos preciosos do passado, ter um amigo (no presente), a quem se pode confidenciar (ou compartilhar) uma aflição, faz toda a diferença. Amizade e amor é o cerne do simpático melodrama (com pitadas de humor) francês O Melhor Está Por Vir (Le Meilleur Reste à Venir, 2019), roteirizado e dirigido por Matthieu Delaporte e Alexandre De La Patellière.

O Melhor Está Por Vir fala de dois amigos adultos que cultivam uma amizade inabalável desde a infância. Um dia, por conta de um incidente, o introvertido Arthur (Fabrice Luchini) fica sabendo que o efusivo César (Patrick Bruel) está com câncer. Porém, ao dar a má notícia ao velho amigo, ele se enrola tanto que César acaba achando que é Arthur quem está com a doença terminal e decide fazer de tudo para tornar seus últimos dias mais felizes. Assim começa a saga dos dois em busca de momentos inesquecíveis do passado e procurando realizar alguns sonhos/desejos impossíveis..., um tentando amenizar a dor do outro.


A imersão no tema (câncer) não é novidade no cinema. São muitas as tramas envolvendo jovens (românticos) e ou adultos (resignados)..., bem como sobre confusão de diagnóstico médico, este sempre num tom mais cômico. Delaporte e De La Patellière, no entanto, não parecem preocupados com o ineditismo do tema. Estão mais interessados em contar uma boa e melodramática história (com bem-vindas surpresas), sobre o valor da amizade, do amor, da solidariedade, em cujo entrelinhado aparece a doença terminal. O câncer (no enredo) nada mais é que o impulso dramático para a narrativa que se quer leve (pra cima) e nada piegas. Não para maquiar e ou ignorar a doença..., mas, diante de um diagnóstico definitivamente fatal, resta ao diagnosticado a paciência e o bom senso (se possível, evidentemente) de aproveitar os seus dias (terminais ou não) da melhor maneira possível..., ou com alguma dignidade.

Mesmo com os clichês de praxe e a trilha instrumental inconveniente, O Melhor Está Por Vir é um filme que se assiste com prazer e, certamente, há de emocionar boa parte do público. Luchini e Bruel estão muito bem, mesmo quando parecem exagerar nas idiossincrasias das suas personagens raras (nos dias de hoje), mas críveis. O roteiro é clássico e planta com inteligência algumas dúvidas nas certezas do espectador. Nem sempre o humor francês faz sentido, mas isso é mero detalhe. A dupla direção é eficaz e Matthieu Delaporte e Alexandre De La Patellière contam (sem enrolação) muito bem a envolvente história que se propuseram a narrar.

Nota: A quem não tem, nunca teve e quer saber qual é o sentimento de ter um amigo verdadeiro, recomendo a leitura de Um Amigo (1973), de Leif Kristiansson.


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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