sábado, 26 de dezembro de 2015

Crítica: Star Wars: O Despertar da Força


Embora goste da franquia Star Wars, o antigo Guerra nas Estrelas (no Brasil), não sou daqueles que ficou uma semana na fila da pré-estreia. E se fosse, iria exigir o meu dinheiro de volta. Só fui ver seis dias depois da estreia, numa sala 3DX, num shopping perto de casa. É claro, na quarta promocional. Com o sucesso estrondoso, estranhei a sala com apenas um terço da sua lotação. Acho que as férias ainda não começaram por aqui, pensei. Quem estava na sala nem sem importava com o lugar marcado, podia escolher à vontade onde se sentar. Depois de uns vinte minutos de propaganda e trailers.... Ah, assisti a todos os filmes da franquia Star Wars e também considero os três primeiros muito melhores que os três últimos, que depois ficaram sendo os três primeiros.


O filme começa. A mesma abertura. Apresentação desaparecendo no espaço..., a Fronteira Final do amado Capitão Kirk. Ôps, este é de outra franquia. Espera lá, Star Trek (antigo Jornada nas Estrelas) também recomeçou e com o mesmo diretor! Oba! ou será: Ôpa? Engraçado, a situação é parecida com a do SW IV e continua rolando com mais cenas semelhantes (recicladas?) que diferentes de outros capítulos da série: ângulo, enquadramento, intenção, diálogos, Starkiller! Caramba, que coincidência. Trinta anos depois e, praticamente, está tudo como dantes neste céu de estrelas errantes. Espera lá, não é bem assim, tem a linda, divina, maravilhosa catadora de lixo Rey (Daisy Ridley); tem o chato dos chatos Fin (John Boyega); tem o caricato Kylo Ren (Adam Driver), um genérico do Darth Vader; tem o Snoke (Andy Serkis), o Supremo Lider da Primeira Ordem; tem o robozinho engraçadinho, digo, droide BB-8. E quem mais..., vamos ver. Acho que não vejo mais ninguém. A não ser que Han Solo (Harrison Ford), Chewbacca (Peter Mayhew) e a Princesa Leia, digo Comandante Leia (Carrie Fisher), contem como novidade.


Será que o roteirista conhece os filmes anteriores e decidiu fazer uma “homenagem”? Vejamos, roteiristas: Lawrence Kasdan, J.J Abrams e Michael Arndt. Hummm! É claro, Kasdan! Foi ele quem escreveu os roteiros de O Império Contra-Ataca (1980) e de O Retorno de Jedi (1983). É por isso que tudo soa tão familiar. Quer dizer, nem tudo. Onde está a fantasia? Onde está o fantástico? Onde está o humor? Onde está o mistério? Nos próximos filmes (VIII e IX) da franquia?


Enfim, achei meio enfadonho este Star Wars: O Despertar da Força (Star Wars: The Force Awakens e ou Star Wars: Episode VII - The Force Awakens, 2015), do J.J Abrams. Não há medo real. Não há perigo real! Não há motivação real! Não há ação real! Não há aventura real! Tudo é previsível (por que já foi visto algo parecido?). Por todos os segredos e mistérios e chantagens da produção, esperava mais, muito mais e não uma trama reciclada, com argumento, roteiro e direção preguiçosos..., para cumprir contrato. Ao final da sessão, o ex-Guerrra nas Estrelas até me pareceu razoável. Mas, conforme o tempo foi passando e eu pensando a respeito, bah!

Cá pra nós, calculando o número de personagens masculinos, o universo futuro no futuro continua machofalocrata e parecido com uma mesa de snooker! Será que a graciosa Rey conseguirá mudar o rumo dessa história? Se eu sobreviver, será que saberei qual vai ser a melhor tacada?

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Crítica: Macbeth - Ambição e Guerra


Há quem confunda as peças Hamlet e Macbeth, de William Shakespeare.  Embora ambas falem de reinados de terror, movidos pela traição, sangue e vingança, cada uma tem as suas peculiaridades e seus fantasmas. Tanto Hamlet quanto Macbeth são personagens trágicos. Na primeira, o príncipe Hamlet busca vingar a morte do pai, o rei Hamlet, assassinado pelo próprio irmão, Claudio, que, além de usurpar o trono, se casou com a rainha Gertudres. Na segunda, após o vaticínio de três bruxas, de que se tornaria rei da Escócia, o general Macbeth, envolvido pela ambiciosa esposa Lady Macbeth, mata o rei Duncan, tornando-se um tirano que aos poucos vai sendo consumido pela paranoia.


Assim como Hamlet, Macbeth mereceu inúmeras adaptações para teatro, tv, hq e cinema. A mais recente a chegar às telonas é a do visionário diretor australiano Justin Kurzel. O seu magnífico Macbeth, com roteiro assinado por Todd Louiso, Jacob Koskoff e Michael Lesslie, tendo à frente um elenco vigoroso, cujas interpretações viscerais nos perseguem por horas e dias depois da sessão, é uma versão compacta e inovadora da tragédia original..., sem perder a introspecção que o texto shakespeariano exige.


A narrativa sombria que introduz o espectador nas geladas brumas mortuárias (numa abertura arrepiante) e o conduz no cinza-sangue das batalhas azuláceas até o cinza-fogo da luta pela coroa escocesa, na mais que perfeita sintonia com a fotografia de Adam Arkapaw e a espetacular direção de arte de Fiona Crombie, é tão envolvente e impactante que o público dificilmente se aperceberá do longo tempo compartilhado. É importante frisar que a fotografia e a arte (que pintam a tela em surpreendentes tons que não “existem”) dão suporte ao valoroso conteúdo, pontuando gritos e sussurros, não o contrário.


Macbeth - Ambição e Guerra (Macbeth, 2015) é tenso, intenso, violento..., fascinante. Grandioso em seu esqueleto e por vezes teatral em sua estética e gestual, jamais soa como teatro filmado. Arte em estado bruto, passa ao largo das armadilhas dramáticas e das facilidades do clichê piegas para agradar preguiçosos. Com suas pausas e longos diálogos, ou melhor, monólogos morais e insanos de Macbeth (Michael Fassbender) e ou pérfidos e venenosos de Lady Machbeth (Marion Cotillard), o mergulho na psique tortuosa do ambicioso e mesquinho casal é perturbador. Imersão parecida, ao cerne do drama, possivelmente só se repita ao vivo, em um bom teatro.



Poderia dizer que Macbeth é uma metáfora à política dos dias brasileiros de hoje, mas não o é. Por aqui grassa a hipocrisia e não a vergonhosa paranoia da culpa. Por aqui a ambição ao cargo supremo do país é irrestrita em todos os poderes. Nivela-se por baixo..., um sustenta o outro só até o próximo desnível, onde enfia-se a farpa além da conta e ou retira-se a farpa para equilibrar a outra ronda. O senso moral de Macbeth e ou de Hamlet não encontra palco também em outros circos latinos com seus políticos ladinos popularizando aplausos em troca de pão e água e, quiçá, papel higiênico. Na generalidade do mundo, há pouco terreno para a viciada trupe política montar a lona e desfiar o seu vil espetáculo popularesco: Toma! Toma! Toma!..., para patéticas e submissas plateias cegas, surdas e mudas. Macbeth não chega a metaforizar os dias presentes e futuros dos cidadãos “politizados” e ou imbecilizados, mas, para quem conseguiu se safar da hipnose coletiva e pensar por conta própria, abre caminho para profundas reflexões sobre o ser político e suas balelas. Ao sair, convém deixar a luz acessa, sempre há algum retardatário à espera de um bom chacoalho pra ficha cair...

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Entrevista: Marcos Stankievicz Saboia

O cineasta Marcos Stankievicz Saboia é o atual coordenador da Cinemateca de Curitiba e autor do artigo Cinemateca de Curitiba - 40 Anos - Um Breve Panorama (link no título), publicado anteriormente. Para saber um pouco mais sobre os dias presentes e futuros da instituição, não explorados no artigo, o Claque ou Claquete o procurou para um bate-papo. Esperava realizar uma entrevista meio claque (divertida) e meio claquete (séria)..., já que o entrevistado é bem-humorado. Mas, cá pra nós, acho que ficou claquete demais. Confira porque a Cinemateca de Curitiba não é apenas uma bela construção histórica.


Marcos Stankievicz Saboia - Foto: Acervo/Cinemateca
Claque ou Claquete: Marcos Saboia, quarenta anos da Cinemateca de Curitiba, o que lhe parece os próximos quarenta, principalmente com os avanços tecnológicos?

Marcos Stankievicz Saboia: Nestes últimos anos, o cinema tem passado por uma de suas grandes revoluções, talvez a maior, migrando do analógico ao digital em toda a cadeia, ou seja, desde a captação até a exibição. Nestes quarenta anos mudou bastante também a forma de fruição, pois hoje se pode acessar de casa virtualmente qualquer obra que se queira ver. Precisamos repensar o que significa o Cinema e a função de uma Cinemateca. A fruição de um filme na sala escura e em companhia de outras pessoas é agora apenas uma das formas de se ver filmes e quando a Cinemateca de Curitiba foi inaugurada, era praticamente a única. Acho que esta é uma experiência insubstituível, mas as novas gerações já não veem isto como um evento. Os blockbusters norte-americanos trabalham, por motivos comerciais, com a criação de expectativa, mas rapidamente logo após o lançamento vão para outras plataformas como DVD, bluray e TV ondemand. Acredito que as salas continuarão existindo, mas menos como uma forma popular de entretenimento e cultura e mais como uma sala de concertos, com alguns puristas defendendo que filme deve ser visto na sala escura. Espero que não seja assim e que o cinema, usufruído coletivamente, coexista com as outras plataformas.

CC: No Paraná há uma nova geração de cineclubistas ocupando os mais diversos espaços, inclusive o da Cinemateca, como você vê este renascimento em tempos de comodidades domésticas via tv e web?

MSS: A troca de experiências é sempre saudável. A retomada da discussão sobre cinema, numa sala de exibição, permite a descoberta de novos diretores e cinematografias. É interessante notar que cada cineclube tem suas características, mas mesmo assim colocam os frequentadores fora da casinha, mais do que pesquisas pessoais na internet, que utilizam algoritmos que conduzem o interessado a resultados relacionados ao seu perfil de pesquisa como se dissesse: se você gostou deste filme vai querer comprar este. Recentemente, uma das locadoras mais completas do Brasil fechou as portas, a 2001 em São Paulo. Comentou-se na mídia, que inúmeros filmes raros, do seu catálogo, não estão disponíveis nem na internet. Ou seja, a rede de computadores não é exatamente este repositório de tudo o que já foi feito. Atualmente, as lojas que comercializam filmes estão interessadas em vender o que há de mais recente. Os funcionários da 2001 eram conhecidos pela cinefilia. Acabamos ficando sem referências.

Fachada da Cinemateca de Curitiba - Foto de Nivaldo lopes
CC: Quem melhor usufrui dos serviços da Cinemateca de Curitiba, pesquisadores em busca de raridades do acervo ou espectadores em busca de novas linguagens?

MSS: Acredito que ambos. Recentemente uma estudante de pós-graduação, do Rio de Janeiro, pesquisando documentação sobre Serguei Eisenstein, encontrou em nosso Centro de Pesquisa um material gráfico que ela considerou o mais completo já visto em acervos do Brasil. Quanto ao nosso público, que prefere cinematografia periférica ao cinema estritamente comercial, não tem do que reclamar.

CC: A programação da Cinemateca prioriza o ineditismo em produções nacionais e estrangeiras?

MSS: Temos dificuldade em passar filmes novos, uma vez que o preço de nossos ingressos é de menos da metade do praticado comercialmente. Logicamente a negociação com as distribuidoras fica mais difícil. Todos sabem da dificuldade de exibição que aflige as produções nacionais. Neste sentido somos um espaço aberto ao cinema brasileiro. Também exibimos filmes que não foram lançados em Curitiba e que são disponibilizados por instituições que os oferecem como política cultural. Como somos uma sala diferenciada, já tivemos casos em que um determinado filme, depois de uma curta carreira no circuito comercial foi disponibilizado para exibição aqui e alcançou grande sucesso de público.

CC: Com uma programação que se destaca pela qualidade e um preço de ingresso, praticamente simbólico, qual é a preferência do espectador curitibano diante de filmes brasileiros e estrangeiros, mostras, ficção e documentários?

MSS: O número de espectadores varia muito conforme a programação. Alguns filmes atraem mais que outros. É normal. A grande afluência se dá mesmo é com as mostras de cinematografias, pouco ou jamais exibidas em cinemas comerciais, proporcionadas por instituições de países que sabem que esta é uma forma essencial para difundir sua arte e cultura.

Crianças na Cinemateca de Curitiba - Foto: Acervo da Cinemateca
CC: Alguns cineastas e distribuidores dizem que os sulistas, principalmente os curitibanos, não gostam de filme brasileiro, seja ficção ou documentário. O que acha, afinal a Cinemateca exibe muita produção nacional?

MSS: Não creio que Curitiba esteja muito fora da curva do mercado nacional. Não sei de estatísticas, mas a grande maioria dos filmes brasileiros não tem espaço ou público consistente. A Cinemateca exibe uma proporção muito maior de cinema brasileiro do que o circuito comercial que, muitas vezes, à exceção das comédias e um ou outro caso, exibe devido à obrigatoriedade da cota de tela do cinema nacional.

CC: A Cinemateca faz exibições na periferia, mas também traz grupos de estudantes para sessões de cinema na sede, qual é o retorno dessas iniciativas?

MSS: Este ano (2015) atendemos, com esses projetos, mais de 6000 estudantes e grupos especiais. Mensalmente fazemos sessões com audiodescrição, para pessoas com deficiência visual. Os filmes apresentados são brasileiros e se adequam à faixa etária. É um trabalho lúdico e de descoberta. O retorno é incomensurável e muito satisfatório. O Julio César Manso Vieira é o responsável pela área de ação cultural e o Miguel Gubert agenda as escolas.

CC: Há um bate-papo com os espectadores sobre o filme exibido e ou sobre um gênero que eles gostariam de ver?

MSS: Sim, há sempre uma conversa sobre o que as crianças ou adolescentes assistiram, sobre o cinema em si e sobre o espaço da Cinemateca.

Estudantes na Cinemateca - Foto: Acervo da Cinemateca
CC: Hoje, quais são as atividades da Cinemateca de Curitiba?

MSS: Além dos cursos práticos de cinema, a nossa função básica é preservar, difundir e incentivar a pesquisa do cinema, mas não só de Curitiba e do Paraná. A Cinemateca também atende a muitos alunos que, obrigados, vêm fazer pesquisas escolares e ao conhecer o espaço e aprender sobre produção cinematográfica, se surpreendem com existência de uma instituição que se dedica a preservar e a difundir filmes. Esses jovens, com certeza, passarão a ver o cinema, principalmente o brasileiro e paranaense, com novos olhos. Há, ainda, o Projeto de Ação Educativa que recebe pessoas que nunca foram a um cinema e nem imaginam que existe um espaço que cuide e mostre este mundo a elas.

CC: Nos primórdios da Cinemateca, ter uma carteirinha de associado dava status. E hoje, a Cinemateca ainda tem os seus sócios de carteirinha?

MSS: Não existe mais a emissão das carteirinhas que, na época, mediante a uma mensalidade bem baixa, permitia o livre acesso aos filmes exibidos. Atualmente grande parte de nossa programação é gratuita ou, quando filmes de distribuidora, o valor do ingresso é bem abaixo do praticado no mercado.

Sala de Exibição da Cinemateca do Museu Guido Viaro - Foto: Marcos Campos
CC: Você chegou a ter uma valiosa Carteirinha da Cinemateca, que hoje deve ser uma relíquia?

MSS: Não cheguei a ter esta carteirinha, mas fui um frequentador assíduo. A Cinemateca me apresentou, por exemplo, meu cineasta de coração que é o Buñuel e do qual assisti a uma grande mostra no antigo prédio. Vi lá, também, abraçado a uma coluna que ficava no meio da sala, Apocalipse Now, do Coppola.  

CC: No seu artigo Cinemateca de Curitiba - 40 anos, você cita diversos afiliados que participaram de cursos, oficinas, laboratórios de cinema e se tornaram cineastas reconhecidos, a tradição continua?

MSS: Procuramos manter os cursos práticos de cinema na Cinemateca de Curitiba, pois esta característica a marcou desde sua fundação. Atualmente ministrado por Geraldo Pioli, Nivaldo Lopes e eu. Nossos cursos são muito procurados. A média é de 600 candidatos para as 30 vagas disponíveis.

Curso Prático de Cinema - Foto: Acervo da Cinemateca
CC: O nível de interesse permanece durante o curso?

MSS: Tem alunos interessados em apenas conhecer as práticas de produção de um filme e outros que pretendem seguir carreira. Em toda turma, há sempre um ou outro mais focado neste objetivo e que acaba abraçando a profissão. Tem inúmeras maneiras de se dedicar ao cinema. Precisamos de técnicos, pesquisadores, historiadores e, puxando um pouco pro meu lado, de preservadores.

CC: Lembra de algum que, após o curso prático de cinema, tenha realizado algum curta e ou longa e lançado na Cinemateca?

MSS: Sim! O Eduardo Calegari, auxiliado por outros ex-alunos nossos, realizou o curta Looping, pela Lei de Incentivo; o Marcelo Anc montou uma empresa de locação de equipamentos e tornou-se fotógrafo; a Carol Mira, após o curso, graduou-se em cinema e agora faz mestrado em antropologia ligada ao cinema...

Geraldo Pioli, Marcos Saboia, Mario Kuppermann, Nivaldo Lopes - Acervo/Cinemateca
CC: A Cinemateca continua trazendo cineastas renomados para orientar oficinas e ou fazer palestras? Ela ainda recebe visitas ilustres?

MSS: Sim! O Anselmo Duarte (1920-2009) já esteve por aqui. Recentemente recebemos a visita dos documentaristas Mario Kuppemann,  que gentilmente veio para um bate-papo e para entregar os equipamentos cinematográficos que nos doou, e do palestino Emad Burmat, que veio apresentar o seu filme 5 Câmeras Quebradas e encantou a plateia com a sua história.

CC: Qual é o apoio que a Cinemateca dá a AVEC (Associação de Cinema e Vídeo do Paraná) e aos cineastas profissionais?

MSS: Basicamente cedemos espaço para reuniões, exibição, sessões teste, lançamento.

CC: E o papel da Cinemateca na discussão de Normas da Lei de Incentivo Municipal?

MSS: Quanto à Lei, atualmente, alguns funcionários da Cinemateca representam a Fundação Cultural junto à Comissão de Mecenato. 

CC: A Cinemateca tem verba própria? Trabalha com parcerias? Tem apoio da iniciativa privada?

MSS: Somos uma instituição pública, parte da Fundação Cultural de Curitiba. A nossa verba vem da prefeitura, através da FCC. Não temos apoio da iniciativa privada de forma direta. Nosso curso prático de cinema, por exemplo, é viável graças ao Projeto Federal Rede Olhar, da fase do Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003-2008), que nos forneceu equipamentos de produção.

Emad Burmat e Nivaldo Lopes - Acervo/Cinemateca
CC: Você é cineasta, com graduação em cinema pela UNESPAR-FAP, trabalha na Cinemateca há quatorze anos e há nove meses é o seu Coordenador, como é administrar uma instituição desse porte em uma época de contenção de despesas?

MSS: A Cinemateca de Curitiba tem objetivo e perfil bem estabelecidos. Instituições semelhantes, agora reunidas através da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), apoiam-se mutuamente, com troca de informações e experiências. Assim, uma vez que nossas bases estão bem colocadas, os problemas que aparecem tornam-se menos traumáticos.

CC: Como se compõe a equipe técnica da Cinemateca? Quantos funcionários? Todo pessoal técnico é ligado, de alguma forma, ao fazer cinematográfico?

MSS: Na Cinemateca somos 25 funcionários diretos do setor. Nem todo o nosso pessoal é necessariamente ligado à área, pois temos administrativos, manutenção, segurança, projecionistas, porteiros, bilheteiros...

CC: Todo acervo da Cinemateca está restaurado, digitalizado e disponível para empréstimo e ou cessão de imagens?

MSS: Grande parte do nosso acervo, que conta com mais de 2500 entradas em película, já está digitalizado. No momento, o material está disponível para pesquisa. Quanto ao empréstimo e a cessão de imagens, são analisados caso a caso e, uma vez que a propriedade intelectual é inalienável, dependem da autorização dos detentores dos direitos. Seguimos basicamente a Lei de Direitos Autorais brasileira e o Código de Ética proposto pela FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) e das demais cinematecas nacionais. 

CC: Nestes quarenta anos, a Cinemateca editou algum material sobre a sua história e ou acervo?

MSS: Temos o Dicionário do Cinema no Paraná (2005), de Francisco Alves dos Santos, e um Boletim Informativo, ambos editados pela Fundação Cultural de Curitiba em comemoração aos 30 anos da Cinemateca.

CC: Há alguma previsão de uma edição revista e ampliada do Dicionário de Cinema do Paraná?

MSS: Por enquanto não há previsão. Mas existe, sim, a necessidade de mais pesquisas como essa.

Exposição de Cartazes - Acerco/Cinemateca
CC: Aproveitando o gancho, em junho de 2015 a Cinemateca de Curitiba foi homenageada na 10ª Mostra de Cinema de Ouro Preto - CINEOP, e para Curitiba, o que está programado para a comemoração que se estende até o mês de abril de 2016?

MSS: Em 2015 a Cinemateca de Curitiba foi tema de quatro mostras de cartazes que resgatam a sua história e de dois filmes realizados pelos alunos do curso prático de cinema: o curta de ficção Você Foi Avisado e o documentário sobre os 40 Anos da Cinemateca. O documentário, em fase final da edição definitiva, será disponibilizado para todo o país. Para 2016 estão programadas várias mostras de nosso acervo cinematográfico, começando em janeiro com a exibição de curtas realizados nos cursos. Esperamos, também, para o próximo ano, o início da construção de um novo espaço, que contará com duas salas de exibição e áreas especialmente adaptadas para cursos, exposições e palestras.

CC: Marcos, esta pergunta é para o cineasta, acredita que, assim com o Super8, a película também terá seus seguidores num mundo cada vez mais digital?

MSS: Já vi muitas pessoas, principalmente no começo da popularização do vídeo, tentando que seus filmes ficassem com “cara de cinema”. São coisas diferentes. O S-8 está passando por uma retomada e as pessoas fazem filmes em S-8 conscientes das características únicas do suporte. Infelizmente ficará impossível produzir filme em película pela falta de material e equipamentos para processamento. Poucos cinemas mantêm projetores analógicos atualmente. Isto é um problema grave também à preservação de filmes, uma vez que a tecnologia em película é bem mais confiável em termos de durabilidade do que o que temos hoje em digital.

Marcos Stankievicz Saboia: Cinemateca de Curitiba - 40 Anos

A pedido do Claque ou Claquete, o Coordenador da Cinemateca de Curitiba, Marcos Stankievicz Saboia, escreveu o artigo Cinemateca de Curitiba - 40 Anos - Um Breve Panorama e, complementando a matéria, concedeu uma entrevista exclusiva ao blog, que pode ser acessada no link: Entrevista: Marcos Stankievicz Saboia.



Cinemateca de Curitiba - 40 anos
Um Breve Panorama
Marcos Stankievicz Saboia

Como é recorrente na história do cinema, a cinematografia paranaense do período silencioso sofreu perdas inestimáveis. A quase totalidade da obra de Annibal Requião (1875-1929) foi perdida no trágico incêndio da Fundação Cinemateca Brasileira em 1957, ali arderam filmes como o Desfile de 15 de Novembro e a “Chegada do Primeiro Automóvel em Curityba”. Dos cerca de 300 filmes realizados por ele, restaram apenas Panorama de Curityba (1909) e Carnaval em Curityba (1910). Outro pioneiro do cinema do Paraná, João Baptista Groff (1897-1970), teve parte de sua obra perdida no mesmo incêndio que consumiu as obras de Requião. Outra parte desapareceu em um segundo incêndio, no final dos anos 1960, em um depósito que ficava nos fundos da casa de Groff. Dentre suas obras estão Zeppelin em Curitiba (1936), Comício Integralista (1937) e, destacando-se como o principal filme do período silencioso do Paraná, Pátria Redimida (1930). A partir dos anos 1930, o cinema paranaense esteve circunscrito à produção de cinejornais.  A produção ficcional paranaense surge apenas por volta de meados dos anos 1960, através de iniciativas individuais.

Entretanto, movimentos cinematográficos no Paraná manifestam-se já a partir de 1948, através do cineclubismo, com seu auge no começo dos anos 1970. Destaca-se também a produção em super-8 e a realização de vários festivais desta bitola em Curitiba. Estas iniciativas foram apoiadas pela Fundação Cultural de Curitiba já a partir de sua criação, em 1973. Surgiram assim condições que favoreceram a criação, em abril de 1975, da Cinemateca de Curitiba, idealizada por Valêncio Xavier e inspirada pela sua estadia em Paris e tendo como modelo a Cinemateca Francesa.

Foto: Marcos Campos
Na sua fundação, a Cinemateca possuía uma sala de cinema com pouco mais de 100 lugares e projeções em 16 e 35 mm, com sessões de terça a domingo, um pequeno depósito de filmes e uma sala de administração. Funcionava anexa ao Museu Guido Viaro, daí sua primeira denominação de Cinemateca do Museu Guido Viaro.  Seu regulamento trazia explicita a missão de “incentivar a prática e o progresso do filme experimental” e “realizar e produzir películas cinematográficas”. Apesar do espaço exíguo, a liberdade de debate, naqueles anos de repressão, fez com que a Cinemateca se tornasse um dos poucos pontos disponíveis na cidade para o encontro de intelectuais, críticos e interessados em cinema. A participação da Cinemateca no movimento cineclubista paranaense, como a promoção do Primeiro Encontro de Cineclubes do Paraná, por exemplo, que resultou na criação da Federação Paranaense de Cineclubes e oferta de vagas em seus cursos à cineclubistas, demonstra a clara intenção de não só preservar e difundir o cinema, mas também de fomentar diretamente a formação de novos cineastas e a produção local.

Foto: Marcos Campos
Contando com realizadores reconhecidos, como Fernando Severo, e iniciativas como o I Festival Brasileiro do Filme S-8, idealizado pelo cineasta Sylvio Back, o movimento de produção em S-8, de Curitiba, teve na Cinemateca do Museu Guido Viaro um importante aliado que, na forma de cursos de formação e empréstimo de equipamentos, impulsionou o surgimento de novos realizadores como: Irmãos Wagner, atuantes na animação, Rui Vezaro, Peter Lorenzo, Nivaldo Lopes, Yanko Del Pino, Pedro Merege, entre outros. O convênio com o MEC, na década de 1970, possibilitou a aquisição de equipamentos, como câmera e moviola 16 mm, colocados à disposição dos cineastas, e também a realização, em escolas municipais, do Projeto Criança e Cinema de Animação, (1978-1979), envolvendo alunos de 7 a 11 anos, em dezenas de animações em S-8.

Foto: Marcos Campos
Para orientar cursos e fazer palestras, a Cinemateca do Museu Guido Viaro trouxe a Curitiba os cineastas Ozualdo Candeias, Eduardo Escorel, Rogério Sganzerla, Walter Carvalho, Silvio Tendler, Thomas Farkas, Vladimir Carvalho, Jean-Claude Bernadet. Já no final dos anos 1970, a oferta dos cursos práticos de cinema fez surgir a chamada “Geração Cinemateca”, grupo de cineastas que, além dos superoitistas, contava com nomes como Beto Carminatti, Lu Rufalco, Josina Melo, Berenice Mendes, Homero de Carvalho, e também criou as condições para o surgimento da “Turma do Balão Mágico”, que frequentava e lotava diariamente a pequena sala de trabalho da Cinemateca, da qual faziam parte, além do já citado Nivaldo Lopes, Paulo Friebe, Willy e Werner Schumann, Altenir Silva, Geraldo Pioli.

A década de 1980, com a inauguração dos Cines Groof, Ritz e Luz, na região central de Curitiba, e do Cine Guarani, no Centro Cultural do Portão, que se destacaram pela programação direcionada à exibição de mostras e festivais de cinema e de filmes fora do circuito comercial, foi fundamental para a consolidação da Cinemateca como polo difusor cinematográfico do estado. São deste período as exibições de filmes, em 16 e 35 mm, nos bairros periféricos de Curitiba, iniciativas que contribuíram tanto para a formação de plateia crítica quanto para a inclusão sociocultural da região. Por motivos diversos, as salas Groff, Ritz, Guarani e Luz foram paulatinamente fechadas nos anos 2000.

Foto: Nivaldo Lopes
Após um período de peregrinação por diversos espaços, a Cinemateca do Museu Guido Viaro recebeu sua nova sede no ano de 1998, e um novo nome: Cinemateca de Curitiba. Erigida a partir de dois prédios históricos com um anexo moderno, a Cinemateca possui agora, em 1.200 metros quadrados, acervos climatizados, para nitrato e para cópias de segurança, espaços para revisão de filmes, sala de moviola, biblioteca, sala de exibição com 104 lugares, sala para cursos, ilha de edição digital, hall com exibição de equipamentos antigos e espaços administrativos. Seu acervo conta hoje com 2500 entradas em película e outras 2500 em diversas mídias digitais.

Foto: Nivaldo Lopes
Atualmente, a Cinemateca de Curitiba, levando em conta os desafios inerentes a todas as mudanças tecnológicas e sociais, segue os princípios de preservação, difusão, pesquisa e formação que pautaram os primeiros anos. Tem preservados em seus acervos os filmes recuperados de Requião, Groff e de inúmeros outros cineastas que construíram a história do cinema paranaense. À parte da facilidade de acesso aos equipamentos hoje disponíveis, os cursos promovidos pela instituição são bastante concorridos, continuando assim sua tradição de apoiar futuros cineastas. A difusão em bairros afastados do centro continua relevante e cristalizada como política pública.

Brevemente a Fundação Cultural de Curitiba e a Cinemateca de Curitiba ampliarão seus espaços, com um prédio que recuperará duas das salas que foram fechadas, estúdio, salas de curso e debate. O Cine Guarani foi reformado e reaberto em 2012.


Foto: Acervo Marcos S. Saboia
Marcos Stankievicz Saboia é Coordenador da Cinemateca de Curitiba. Graduado em Educação Artística/Música (UNESPAR-FAP), Filosofia (UFPR) e Cinema (UNESPAR-FAP), há mais de uma década atua na área cinematográfica do Paraná, dividindo direção, montagem, produção, roteiro. Em 2008, em parceria com Joba Tridente, dirigiu o curta-metragem CORTEJO, película em 35 mm.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Crítica: As Sufragistas


Acredita-se que houve um tempo em que o mundo, ou pequena parte dele, era governado por mulheres: matriarcado. Desde os tempos desconhecidos sabe-se que o mundo, ou maior parte dele, é governado por homens: patriarcado. Talvez a visão do matriarcado seja futurista e não passadista. Todavia do poder, no entanto, ainda que os movimentos femininos e ou feministas marquem presença, a sociedade continua se submetendo à machofalocracia. Não fosse esse “detalhe” as mulheres não precisariam ir às ruas clamar por direitos iguais (aos dos homens): trabalhistas, sociais, religiosos, políticos etc.  

As Sufragistas (Sufragette, 2015), dirigido por Sarah Gravon, a partir do roteiro de Abi Morgan, é um drama social fictício, mas inspirado em fatos e personagens que por quase 60 anos (1870-1929) provocaram grande ebulição na Grã-Bretanha conservadora. Embora discurse (no subtexto) sobre questões trabalhistas e assédio sexual, o seu foco é a luta - que começou pacífica e se tornou violenta - das inglesas pelo direito de votar e fazer diferença nas decisões parlamentares.


O enredo, à beira do melodrama, acompanha o envolvimento da sofrida Maud Watts (Carey Mulligan), funcionária de uma lavanderia, com a União Social e Política das Mulheres (Women's Social and Political Union - WSPU), o atuante e radical Movimento Sufragista na Grã-Bretanha do começo do século vinte. Sabe aquela história do tudo ou nada? Então, Maud levava uma vida miserável e conformada (digna de Dickens) na companhia do marido Sonny (Ben Whisshaw) e do filho George (Adam Michael Dodd), até que uma mera e ocasional gota d’água quente no poço de mágoas a colocou no meio do furacão das reivindicações femininas (“Votos para as Mulheres!”) e num caminho (praticamente) sem volta e de alto custo para ela e suas companheiras ativistas mais radicais, como a farmacêutica Edith Ellyn (Helena Bonham Carter), Violet (Anne-Marie Duff), Emily Davison (Natalie Press) e a líder Emmeline Pankhurst (Meryl Streep). Praticar a desobediência civil pode ser uma forma de chamar a atenção para a causa, mas requer bem menos coragem que a necessária para enfrentar o ambíguo investigador Arthur Steed (Brendan Gleeson), o caçador de Sufragistas.


Embora o assunto “Votos para as Mulheres!” a cada dia pareça uma evocação de um mundo médio-oriente mais distante, há, na pauta global cotidiana, muitas questões delicadas pertinentes ao universo feminino a serem discutidas por mulheres e não monopolizadas por homens: educação, família, salário, filhos... Questões que estão na costura de fundo de As Sufragistas, mas que, assim como a história real das personagens e do movimento, acabam se perdendo na ênfase sentimentaloide da ficção adaptada ao ponto de vista proletário de Maud, ainda que pese a ação panfletária das outras ativistas.

As Sufragistas é um filme imbuído de boas intenções, mas não o suficiente para vencer a linearidade e tornar o espectador conivente com a extremada (ou seria explosiva?) causa feminina inglesa. O fato centenário tem a sua relevância histórica para as mulheres da Grã-Bretanha, mas o enredo piegas não vai muito além de um registro distante e sentimental, onde a emoção (ou coração de mãe) conta mais que a insensatez feminina e masculina. Assim, nessa confidência de última hora, a impressão é a de que nem tudo está sendo revelado e, portanto, enquanto a fumaça não dissipa, o melhor é esperar a próxima (re)ação e ou eventual manchete de jornal.


Enfim, considerando que, na trama, de real há apenas a líder Emmeline Pankhurst (1858-1928) e Emily Davison (1872-1913), uma vez que a farmacêutica Edith Ellyn é uma homenagem à famosa sufragista Edith Garrud (1872-1971), especialista em artes marciais; que, excetuando a “obsessão” pelo direito de votar , quase nada se sabe da motivação e ou da vida das ativistas fictícias e ou reais; que o elenco é excelente e a produção está impecável na reconstituição de época (sépia-sombria); que, embora seja um filme com apelo feminino (produzido, escrito e dirigido por mulheres), não deve motivar as espectadoras mais radicais a sair explodindo coisas no retorno para casa..., vale como curiosidade meio-histórica, já que o que se vê é meia verdade.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Crítica: IVÁN


Num tempo em que a roda do infortúnio migratório humano dá mais uma das suas contundentes voltas, e homens, mulheres e crianças perdem-se no próprio rasto, fundindo-se ao próprio pó, em busca de paz e melhores condições de vida, numa fuga alucinada por mar e terra, rumo a uma Europa em vias de colapso..., chega aos cinemas o bonito e emocionante documentário IVÁN, do cineasta paranaense Guto Pasko.


IVÁN conta a história do simpático Iván Bojko, um refugiado da Ucrânia que, após três anos (1942-1945) de trabalhos forçados na Alemanha Nazista, encontrou asilo no Brasil, em 1948, e seis décadas depois, aos 91 anos de idade, retornou ao seu país para rever os familiares e amigos que foi obrigado a deixar para trás.

O projeto do documentário começou em 2006, quando Iván entregou os seus diários a Guto, e o diretor, também descendente de ucranianos, anteviu ali, na pungência dos relatos daquele sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, uma história de repercussão internacional, por tratar de migração e apátridas. Questões delicadas (invisíveis?) e atualmente em grande ebulição nos continentes africano e europeu, regidos por capitalismo (escapista) ou socialismo (de ocasião) ou democracia (de fachada) ou ditadura (de terror) ou um “estilo” qualquer que não prioriza o humano...


Ao dar a luz às anotações de Bojko, num resgate tocante dos dramas e tragédias que o afligiram desde a juventude, Pasko ilumina também as histórias anônimas ou jamais reveladas de milhões de outros homens obrigados a buscar uma nova (e impossível!) identidade em terras estranhas. Como o fazem, por exemplo, em outro contexto, mas de igual gravidade, os brasileiros sobreviventes da catástrofe de Bento Rodrigues, em Minas Gerais, devastado pela avalanche de lama da Samarco Vale. Quase nada restou da memória do distrito de Bento Rodrigues coberto pelo rejeito de minério. Já às suas antigas lembranças, Iván Bojko juntou novas e não menos dramáticas e angustiantes recordações guardadas por seus parentes e vizinhos de aldeia. Algumas que, talvez, quisesse esquecidas ou inexistentes.


A tessitura de IVÁN é composta de sensíveis fragmentos de memória, que vão preenchendo lapsos cavados pelo tempo na Ucrânia e no Brasil, no antes e no pós-guerra, às vezes abrandados pelo som dolente de uma bandura artesanal ou industrial, instrumento importante na trova que canta a história de luta de um povo ante a opressão. Um filme que cativa, umedece os olhos pela sinceridade dos seus personagens (tantos querendo falar e questionar a um), belas locações e respeito às tradições ucranianas..., como o gesto nobre de Iván Bojko ao vestir terno e gravata para visitar os amigos do “desconhecido” lugarejo. Antigo costume em novos tempos, mesmo em lugares quase esquecidos. As oferendas de boas-vindas são de arrepiar...



Embora norteado pelos diários escritos durante décadas, IVÁN não se trata da biografia de um sobrevivente de guerra, praticamente anônimo em terras brasileiras e ucranianas, mas de uma narrativa comprometida com o sentimento de pertencimento de cada um de nós, que um dia migrou da sua cidade, estado ou país, atrás de um sonho ou fugindo de um pesadelo. Como se diz, podemos até deixar a nossa aldeia, mas a nossa aldeia jamais nos deixará.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Crítica: No Coração do Mar


Até chegar aos cinemas, a história revista do gigantesco cachalote (26 metros), batizado de Moby Dick (1851), por Herman Melville (1819-1891), tem uma rota curiosa. O primeiro relato desta fascinante e sinistra “aventura”, vivida pelos marinheiros do baleeiro Essex, em 20 de novembro 1820, está no livro Narrative of the Most Extraordinary and Distressing Shipwreck of the Whale-Ship Essex, do primeiro imediato Owen Chase (1797-1869), publicado em 1821 e que serviu de inspiração à Melville. Outro tripulante do Essex, Thomas Gibson Nickerson (1805-1883), que aos 14 anos servia como grumete no baleeiro, a pedido do insistente escritor Leon Lewis, escreveu, em 1876, também as suas memórias do trágico acontecimento..., porém, os seus originais ficaram perdidos até 1960 e, após autenticação em 1980, ganharam uma versão resumida, com o título The Loss of the Ship "Essex" Sunk by a Whale and the Ordeal of the Crew in Open Boats, publicada pela Associação Histórica de Nantucket, em 1984, e inspirou In the Heart of the Sea (2000), de Nathaniel Philbrick..., que, por sua vez, é a base do filme homônimo dirigido por Ron Howard.


No Coração do Mar (In the Heart of the Sea, 2015) é um fascinante épico de ação e aventura marítima que reconstitui (em estilo documental) a grande tragédia do baleeiro Essex que, abalroado por uma gigantesca baleia cachalote, em novembro de 1820 naufragou e deixou 21 homens, em três barcos, à deriva no mar, de onde, ao final de 94 dias das mais terríveis provações, incluindo canibalismo, só 8 foram resgatados vivos.

A partir do roteiro compacto de Charles Levitt, a narrativa acompanha o doloroso relato do velho marinheiro Tom Nickerson (Brendan Gleeson) a Herman Melville (Ben Whishaw). Nickerson era um adolescente (Tom Holland) cheio de sonhos, quando embarcou para a sua primeira viagem no Essex, cuja tripulação era comandada pelo inexperiente e orgulhoso capitão George Pollard (Benjamin Walker), que se sentia desconfortável diante da segurança e conhecimento do imediato Owen Chase (Chris Hemsworth), respeitado pelos marinheiros. O que o garoto Tom Nickerson testemunhou nessa tumultuada e fatídica viagem, cheia de desavenças e principalmente horror, após o ataque da baleia, se tornaria um pesadelo que o atormentaria por toda a sua vida.


Com produção de encher os olhos, No Coração do Mar seduz o espectador não apenas por trazer um ponto de vista mais visceral e incômodo à história (também de crueldade) contada por Melville, em Moby Dick, mas também pela grandiosidade da produção rica em efeitos especiais que dão maior veracidade à narrativa. O enredo acerta ao privilegiar apenas o essencial (isso está virando tendência em Hollywood!) do livro de Nathaniel Philbrick: o drama (que não é pouca coisa) da tripulação do Essex, deixando meio de lado as referências à economia baleeira que movimentava o cotidiano do povoado de Nantucket, de onde saíram. Assim, evita as sempre descartáveis histórias paralelas de comida para bagre que, no fundo, não servem nem de isca para moreia.

A direção Ron Howard é admirável. A trama tem excelente fluência..., começa leve, num clima romântico, e antes que se perceba o tom já é de aventura e conforme o vento sopra as velas, a ação ganha o mar até o movimento das águas trazer a tragédia jamais prevista e arrebatar o coração de cada um à deriva sob o olhar (justiceiro?) da cachalote. Nem mesmo as paradas (técnicas) para reabastecimento de informações (flashback) na entrevista de Nickerson a Melville faz o drama perder o ritmo e a intensidade. Na verdade lhe injeta mais ar, já que é esta conversa tensa e fragmentada que conduz a envolvente história (sem a necessidade de insuportável narrador/off) e ao final justifica a versão sombria e quase fictícia de Herman Melville em Moby Dick.


Enfim, considerando que a profundidade do drama nos faz refletir sobre os valores morais do ser humano diante de tragédias e sobre o instinto de sobrevivência das espécies; que Hovard explora todas as nuances do ótimo roteiro, sem jamais cair na pieguice ou se tornar refém do clichê fácil do susto, optando por sugerir e não explicitar algumas situações incômodas; que o carismático e equilibrado elenco navega muito bem em águas turvas; que as cenas com a baleia cachalote impressionam pelo realismo; que o 3D de profundidade é bom; que a edição ágil de Mike Hill impressiona e a fotografia de Anthony Don Mantle  (alheia aos efeitos especiais?) é primorosa e em algumas cenas lembra grandes pinturas a óleo..., acredito que se você gostou das versões cinematográficas de Moby Dick, também vai gostar deste outro lado da história, onde o maior protagonista é o homem e suas mazelas.

Não sei se No Coração do Mar vai se tornar um clássico ou um mero número na coleção de filmes do gênero, mas, por enquanto, é um belo espetáculo em alto mar e terra firme!

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