quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Crítica: Hebe - A Estrela do Brasil



HEBE - A ESTRELA DO BRASIL
por Joba Tridente

O Brasil tem grandes nomes da cultura popular do rádio, teatro, cinema, literatura, televisão, folclore que, sob o olhar certo, resultariam em excelentes documentários e ou cinebiografias dramatizadas (docudramas). Pena que a maioria (e dependendo da ocupação artística!) só ganha reconhecimento cinematográfico após a morte..., talvez porque não tenha como contestar do além-túmulo, caso a adaptação não lhe faça jus e ou extrapole na fantasia (do ouvi dizer) sem comprovação de dados. Há que se atentar também para que a cinebiografia não vire uma cine-hagiografia, confundindo devoção ao artista com devoção ao cinema. A linha é tênue e é preciso cuidar para que não se quebre o encanto dos fãs...

Em geral, as personalidades mais visadas para abrilhantar as telonas são da área do entretenimento musical. Assim, já se destacaram nas salas de cinema os cantores e compositores Cazuza, Zezé de Camargo e Luciano, Gonzação e Gonzaguinha, Erasmo Carlos, Tim Maia, a cantora Elis Regina, o cantor Wilson Simonal. Houve espaço também para o médium Chico Xavier, o médico Bezerra de Menezes, jogador Heleno, a militante alemã Olga Benário. Bem como para os apresentadores de televisão  Bingo (Bozo) e Chacrinha, que agora ganham a companhia iluminada da cantora, atriz e apresentadora Hebe Camargo (1929-2012) em Hebe - A Estrela do Brasil.


Como virou tendência destacar apenas um breve recorte na vida de qualquer cinebiografado, o docudrama Hebe - A Estrela do Brasil, dirigido por Maurício Faria, a partir do roteiro de Carolina Kotscho, traz somente fatos ocorridos nos anos 1980, quando Hebe, com 40 anos de carreira, comprou briga contra a censura, os políticos corruptos, a igreja, os produtores e a televisão, para que tivesse a liberdade de falar o que pensasse e apresentar em seu programa, sempre ao vivo, quem ela quisesse, inclusive transgêneros, como Roberta Close. Nesse período de abertura censurada, ao sentir-se amordaçada e enquadrada em movimentos partidários, já que falava também dos menos favorecidos, clamou: A Hebe não é de direita! A Hebe não é de esquerda! A Hebe é direta!


Além dos atropelos da célebre apresentadora na frente e atrás das câmeras, na televisão, Hebe - A Estrela do Brasil expõe parcialmente um lado menos conhecido de Hebe Camargo (Andréa Beltrão, magnífica): a vida em família, onde o relacionamento harmonioso com o filho Marcelo (Carlos Horowicz) contrasta com a relação conturbada com o abusivo e ciumento marido Lélio (Marco Ricca). Também é tocante o registro sutil da sua solidão, nos bastidores dos holofotes, e a escassa vida social em meio a tanto luxo.

Hebe - A Estrela do Brasil traz, em meio a flashes de histórias paralelas (que podem soar pulverizadas) com o filho, o marido e o sobrinho Cláudio Pessutti (Danton Mello), uma composição interessante e nada monótona da vida da famosa apresentadora, muito bem interpretada (e não imitada!) por Beltrão. Em sua narrativa não faltam as discussões com empresários, a intimidade com os convidados, no famoso sofá, os selinhos (na boca), o figurino e as jóias exuberantes (caríssimas), as polêmicas (por falar o que queria) e as contradições (por falar o que queria) desta que foi considerada a melhor apresentadora de televisão de um Brasil de outros tempos (?). De um Brasil que prometia abertura e não do que insiste na meia volta-volver (!). Dificilmente nesse Brasil do retrocesso a apresentadora teria o brilho de outrora..., já que não parecia ser dada a concessões.


Hebe - A Estrela do Brasil não é um filme hilário, mas tem lá seus breves momentos de humor, num enredo por vezes pesado. A reconstituição de época é excelente. A montagem é ágil e os recortes fotográficos, com Hebe de costas, é genial. O elenco, assim como Andréa Beltrão, não imita, mas interpreta (por exemplo, Roberto Carlos ou Silvio Santos), o que valoriza a personificação. Uma vez que a Globo é a produtora, há que se louvar a liberdade aparentemente incontida das críticas de Hebe a ela e da citação dos canais Bandeirantes e SBT, palcos dos famosos programas. Se bem que não podia ser diferente se o que se busca e dar veracidade ao relato.


Enfim, esta pode não ser aquela cinebiografia ampla, geral e irrestrita, recheada de divertidas fofocas, que todo fã espera dos seus ídolos, mas vale pelo registro de seus dias mais emblemáticos, quando finalmente Hebe vence a hipocrisia política, religiosa e televisiva e conquista definitivamente o seu direito de dar voz a quem bem entendesse. O que não quer dizer que nas décadas seguintes sua vida tenha sido um mar de flores perfumadas.

Vale ressaltar ao espectador que se incomodar com o conteúdo minguado, que talvez  ele encontre um brilho maior de Hebe Camargo na minissérie que a Globo está preparando para 2020, e ou no documentário realizado pela roteirista Carolina Gotscho que será lançado no próximo ano.


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Crítica: O Menino Que Fazia Rir



O MENINO QUE FAZIA RIR
por Joba ridente

Após uma certa idade, a gente sempre acha que o nosso ontem era bem melhor que o nosso hoje..., principalmente em comparação com a infância, antes tão lúdica e agora tão eletrônica. Há uma frase, ou melhor, um questionamento emblemático, feito aos frequentadores das redes sociais, que me arrepia toda vez que penso nele (desde que o encontrei no Face Book) e que, assim como eu, duvido que até mesmo quem o fez tenha a resposta para: “Você se lembra qual foi a última vez em que saiu para brincar com os seus amigos?” Infelizmente não me lembro de quando deixei de ser criança..., das algazarras com a molecada da rua, das visitas aos parentes nos sítios, dos piqueniques e das “pescarias” nos córregos, das frutas colhidas nos pés..., e comecei a trabalhar, ainda adolescente, em uma farmácia, durante o dia e a estudar à noite.

Mas me lembro que, na minha formação, naquele tempo se escutava música brasileira, italiana, espanhola, inglesa e até japonesa no rádio. E no cinema fui aprendendo com filmes italianos, espanhóis, mexicanos, franceses, americanos, ingleses, alemães, japoneses e, claro, com a garra do cinema novo brasileiro, que, para mim, era o melhor do mundo, tamanha a comunhão. Décadas depois, assim como os cinemas de rua, a diversidade cinematográfica foi diminuindo e, com o advento dos cine-shoppings, americanizando. Sobra um festival ou outro ou alguma sala temporariamente desocupada para exibição de filmes não oriundos da monopolizadora terra do Tio Sam. E, é claro, uma caça árdua pela web, atrás de perolas que não chegarão por aqui nem via DVD...


Essa nostalgia toda é para falar do belo drama tragicômico alemão O Menino Que Fazia Rir (Der Junge muss an die frische Luft, 2018), dirigido com maestria por Caroline Link (Lugar Nenhum na África), a partir do precioso roteiro de Ruth Toma, baseado no livro homônimo do aclamado comediante Hape Kerkeling, lançado em 2014 e que vendeu mais de um milhão de exemplares. O versátil artista (comediante, apresentador, cantor, ator, diretor, dublador, escritor) popular alemão está afastado (por decisão própria) dos palcos, ao menos dos grandes shows. Mas, antes de sair de cena, presenteou os seus fãs com a autobiografia Der Junge muss an die frische Luft (O Menino tem que estar ao ar livre) onde fala da sua bem-amada infância e o despertar do seu talento para as artes cênicas no anos 1970.
  

O Menino Que Fazia Rir é permeando por uma narrativa poética (em off), que começa dizendo: “Talvez eu tenha que trabalhar mais...”, feita pelo menino Hans-Peter (o futuro Hape Kerkeling), que cresceu em meio as delícias da vida no campo e viveu no bucólico Vale do Ruhr até os sete anos, quando os seus pais (Margret e Heinz - Luise Heyer e Sönke Möhring) deixaram a casa dos avós paternos (Bertha e Hermann - Ursula Werner e Rudolf Kowalski) para morar com os avós maternos (Willi e Änne - Joachim Król e Hedi Kriegeskotte) na melancólica Recklinghausen. Mudam a luz, a arquitetura, a beleza e a qualidade dos ruídos da iluminada zona rural para o cinza da cidade industrial..., mas o bom humor e os sonhos de artista do pequeno Hans-Peter (Julius Weckauf, impressionante!), de sete anos, continuam o mesmo e pouco mudará nos próximos anos, mesmo com os dissabores da perda de dois entes muito queridos por ele: a avó Änne e a mãe, que sucumbiu à depressão.


Não sei se um diretor seria tão sutil, quanto Caroline Link o é, no contraponto da dor e da alegria..., seja no olhar ingênuo do menino descobrindo os percalços do mundo, seja no cotidiano da sua grande e barulhenta família que, por maior que seja a tristeza pela morte de parentes, segue em frente buscando o seu melhor em encontros festivos. Há momento para se lamentar e momento para se comemorar a vida nessa trama agridoce, repleta de nuances, onde o dramalhão piegas e o humor absurdo não têm vez.

A sutileza na direção de Link também é elogiável na entrega do elenco a seus papéis, levando o espectador a questionar se são atores profissionais e ou personagens reais do livro interpretando a si próprios. Não há um traço sequer de caricatura em quem quer que seja. Nenhum personagem ocupa espaço maior que o necessário ou a sua importância narrativa. Permitindo, assim, que a naturalidade transborde em qualquer sequência, sem sufocar o essencial, que é o mundo circular de Hans, fundamental na sua formação artística. Em um enredo rico em referências setentistas alemãs do pós-guerra interiorano, em momento algum ele é visto como um adulto em miniatura, mas, sim, como um garoto esperto que (dos 7 aos 9 anos), com seu talento nato para o humor brejeiro, está sempre alerta para o gestual e as falas de todos ao seu redor..., colhendo material para as hilárias imitações que alegrava os seus parentes e para a formação de acervo de tipos que viria a usar no futuro.


Enfim, considerando a história envolvente, mesmo a quem não tem referência alguma sobre Hape Kerkeling, mas que vai querer saber mais sobre ele após a sessão; a cenografia, a fascinante reconstituição de época, tangente na belíssima fotografia de Judith Kaufmann; a direção de atores; o elenco sensacional, com destaque para a revelação Julius Weckauf (com seu impecável Hans-Peter) e Luise Heyer (com a sua adorável Margret, que vai da luz à sombra, numa performance impressionante); a nostálgica e harmoniosa trilha sonora; a lembrança de que a Alemanha também pode produzir filme iluminados e divertidos da maior qualidade..., O Menino Que Fazia Rir é simplesmente imperdível, para quem que dar um tempo ao panorama atual, que atravanca as salas de cinema, em busca de uma emocionante contemplação, que você só vai entender no final: “(...) Sou minha mãe, meu pai, meu irmão e meus avós. Sou as risadas e as dores deles. (...) Sou a direção em que a minha mãe empurrava o meu carrinho. Sou a vaca malhada no pasto, o milho amarelo na plantação e a papoula vermelha à beira do caminho. Sou o céu sem nuvens. Estou acordado.”


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Crítica: Predadores Assassinos


PREDADORES ASSASSINOS
por Joba Tridente

Conheci e comecei a gostar de filme trash ainda no tempo do VHS (lembra?) e ampliei meu conhecimento e gosto com o advento da internet. O primeiro deles, O Ataque dos Tomates Assassinos (1978), eu nunca esqueci. Depois vieram o adorável Papai Noel Conquista os Marcianos (1964); Evil Dead - A  Morte do Demônio (1981); Re-Animator - A Volta dos Mortos-Vivos (1985); Carnossauro (1993); Sharknado (2013); entre outros clássicos do gênero. Foi pensando nesse prazer que aflora entre um filme cabeça e um de ação e aventura que decidi dar uma chance ao Predadores Assassinos (Crawl, 2019), após assistir, sem querer, a pedaços do trailer que remetem ao cinema bagaceira.

Como qualquer fã sabe, o cinema trash (de raiz) tem o impacto do horror engraçado e do humor apavorante, que te ganha pelo exagero e deficiência técnica em geral, incluindo a orçamentária. Não é uma arte de fácil domínio, já que tem uma “doutrina” própria que é muito “imitada”, mas poucos realizadores chegam a um resultado satisfatório. O que não quer dizer que famosos diretores (involuntariamente?) não tentem, como o alemão Roland Emmerich (2012, Independence Day - O Ressurgimento).


Digo isso porque não creio que fosse essa a primeira intenção do diretor francês Alexandre Aja e dos roteiristas Michael e Shawn Rasmussen, ao colocar em cena uma jovem estudante universitária e nadadora insegura (bem pensado, hein?!), Haley Keller (Kaya Scodelario), que, em meio ao alarme de um furacão de categoria 5, viaja até a região pantanosa de Coral Lake, na Flórida, enfrentando vento e chuva torrencial, à procura do pai Dave Keller (Barry Pepper) e, quando o encontra, acaba ficando presa com ele e o cachorro Sugar numa casa inundada e rodeada por jacarés imensos. Aí, ou nada ou nada de salvação!

Bem, o argumento pode até ter sido pensado para um filme de terror que fizesse o público (adolescente) sensível quebrar o dedinho, morder o dedão ou arrancar os olhos de tanto medo..., porém, com um enredo que beira o absurdo, em vez de uma trama tensa e apavorante (até tem algumas cenas, mas não é para tanto), o que se assiste é um drama-catástrofe (muito previsível) e até divertido, já que (inconscientemente?) o diretor se apropria de todos os clichês do gênero catástrofe-trash, com algumas situações e diálogos pra lá de estúpidos.


Ora, mesmo quem não é norte-americano ou mora em regiões sujeitas a furações e tornados sabe que atrás da ventania sempre vem uma enchente e ou um tsunami e que, por isso, soa um alarme com certa antecedência para evacuar a população da área de risco o mais rápido possível. Toda via dos moradores teimosos em descumprir a ordem oficial, porém, ou a falta de sinal de advertência, pode gerar consequências que, se bem adaptadas cinematograficamente (e Hollywood nunca perde o foco do quanto pior a tragédia, maior a bilheteria!), podem resultar em bons filmes, como o espanhol O Impossível (2012), de Juan Antonio Bayona, ou em deliciosas bagaceiras, com seus heróicos protagonistas egoístas que só pensam em salvar a própria família. Ah, a família estadunidense e suas tragédias pessoais e patrimoniais!


De volta aos mistérios dos pântanos norte-americanos, segundo minha memória afetiva, Alligator (1980), de Lewis Teague, foi o primeiro bom filme sobre jacarés assassinos que vi e que, se não me engano, abriu caminho para dezenas de produções crocodilianas (já numa pegada mais trash) que vieram depois..., onde incluo Predadores Assassinos.

Explico: embora seus recursos financeiros e efeitos especiais sejam bem melhores que aqueles dos irresistíveis filmes da Asylum, em seu indefectível momento divã, o enredo não deixa de apelar para o “emocionante” acerto de contas em família (disfuncional). Assim como em qualquer filme trash que se preze, na hora mais tensa (com o céu desabando, prédios ruindo, ETs e outros monstros atacando, água no nariz, fogo nas partes íntimas), um pai ausente vai (sempre!) discutir a desconfortável relação com um(a) filho(a) cheio de culpas. Aqui, Haley e Dave também vão precisar curar mágoas passadas e mal-entendidos entre eles e o resto da família. Os jacarés que esperem a sua vez de atacar e ou de se consultar. A hora da psicanálise cinematográfica é sagrada! Primeiro a catarse e o perdão e depois a salvação da família, se der tempo..., geralmente dá!


Por mais que tente (?) se levar a sério, assim como o espanhol Jaume Collet-Serra com o seu tubarão territorialista em Águas Rasas (2016), Alexandre Aja raramente consegue criar um clima de terror convincente, de pânico arrepiante, com seus jacarés gigantes (em CGI) atacando a dupla protagonista (com suas ideias estúpidas de sobrevivência) e os coadjuvantes (com suas ideias estúpidas de se dar bem na vida). A mim, pela enfadonha previsibilidade, os ataques provocaram mais risos do que pavor. Também porque (e não podia ser diferente) o ataque “sangrento” dos répteis varia conforme os elencos: para um, qualquer abocanhada é suportável (?) e, não importando a intensidade e o tamanho do estrago físico, lhe dá mais ânimo e agilidade para lutar heroicamente contra a gigantesca ameaça assassina que vem do pântano; para outro, uma mordiscada é fulminante. Uau! Isso dói! Mas só quando rio no rio!

O que não quer dizer que a parte mais sugestionável do público (adolescentes?) não possa se assustar, sentir calafrios, ter pesadelos com corpos destroçados e ou querer ficar longe de rios e pântanos, principalmente se não for um nadador competitivo. Se bem que tenho minhas dúvidas quanto a eficiência do medo induzido pela trilha sonora, já que não é preciso ser nenhum cinéfilo para saber quem vai ser a próxima vítima e de onde virá o ataque dos crocodilos..., principalmente em algumas sequências ridículas (como a da escada). Será que não ter ideias ridículas ajuda? Alguém que não pense tolices pode confundir um jacaré estadunidense, mas será que confundiria um crocodilo norte-americano?


Enfim, considerando o roteiro tosco (quem em sã consciência faria um escoamento de água daquele tamanho e num porão?) e linear, sem nenhuma novidade e ou sequer reviravolta; a infalível mensagem de superação (jornada da heroína por águas infestadas de jacarés: melhor motivação não há); a exaltação dos valores da perseverante família americana; o excesso de clichês que inclui até mesmo um cão de estimação (você nem imagina o que vai acontecer com o pet...); os furos de continuidade e maquiagem; bons efeitos especiais e boa dupla de protagonistas..., ainda que o suspense seja pífio, Predadores Assassinos cumpre o que promete: corpos despedaçados e uma boa dose de sangue para quem não espera muito desse tipo diversão com algum susto (ou vice-versa)!

Ah, e é curtinho, não chega nem a 90 minutos (bem menor que a minha resenha). Para que mais? Cachê de jacaré tá caro, de fazer rolar lágrimas de crocodilo! Sei, essa foi de doer. Mas é pra ir entrando no clima trash de autoajuda insana!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

sábado, 21 de setembro de 2019

Crítica: Project Blue Book



PROJECT BLUE BOOK
por Joba Tridente
Quando era jovem e vivia no Planalto Central do Brasil, sempre que possível, saía cerrado afora em busca de Discos Voadores ou UFOs ou OVNIs. De noite e ou de dia, eu e outros malucos ficávamos à espreita de luzes estranhas e ou de formas estranhas no horizonte seco, sob um céu esplendoroso e sem igual (?) no mais belo bioma do planeta. Quando a viagem de exploração e observação dava em nada, para não perder o tempo, a turma se reunia em torno de uma mesa e tentava se comunicar com os ETs através do copo corrido. Maluquice total! Tinha gente (e ainda tem) que dizia incorporar algum alienígena e começava a psicografar e ou a falar as mesmas mensagens pacificadoras e apocalípticas que rezam até hoje, pedindo que todos os humanos (seus irmãos terrestres) se preparassem para o fim dos tempos que estava próximo etc. Nem sei quantas vezes o mundo já acabou e quantas teorias da conspiração já foram desveladas desde então. Com o tempo fui deixando de lado a diversão paranormal-ufológica, que ia muito além de cair na estrada e ou ficar de mãos dadas ao redor de uma mesa redonda falando com um copo vazio emborcado, e passei a cuidar de outras coisas, mas nunca desdenhando da ficção científica literária e ou cinematográfica, que amo de paixão. Ainda criança, ao que me lembro, o primeiro filme que assisti no cinema foi de ficção científica. Também na infância era fã das séries de televisão Os Invasores, O Túnel do Tempo, Terra de Gigantes, Perdidos no Espaço, entre outros. Adulto, me apaixonei pela clássica Arquivo X, com o intrépido Fox Mulder (David Duchovny) ciente de que a “Verdade Está Lá Fora” dos gabinetes governamentais...

Bem, esse prólogo simplificado está aí só porque assisti e gostaria de comentar que no burocrático e frouxo seriado Project Blue Book o que não falta é clichê e caricatura, numa tentativa inútil de emular o saudoso Arquivo X..., deixando óbvio que a distância qualitativa entre os dois é estratosférica. Arquivo X (1993/2002) era uma série de ficção científica especulando fatos ufológicos, teorias conspiratórias e atividades paranormais, numa bem dosada mistura de suspense, terror, ação, humor, intrigas, ceticismo, fé. Já Project Blue Book (Projeto Livro Azul, 2019) é uma série dramática de não-ficção científica fictícia (se é que me entende!) especulando fatos ufológicos norte-americanos e equilibrando os dados genéricos do seu livreto de anotações “verídicas” secretas num "thriller" repleto de lugares comuns e muito borbulhantes. Ploft! Ploft! Ploft! Não importa a cena, você (por mais leigo que seja) já sabe exatamente o que vai acontecer. É capaz até mesmo de antecipar os diálogos ridículos, principalmente os femininos.


O alerta inicial diz que a série é baseada em eventos reais..., estudados pelo Capitão Michael Quinn (Michael Malarkey), personagem inspirado no Capitão da USAF Edward J. Ruppelt, e o astrônomo Dr. J. Allen Hynek (Aidan Gillen) que, na série, além de especialista em ufologia, tendo criado a sigla OVNI, para se referir a Objetos Voadores Não Identificados, também tem conhecimentos práticos de medicina, antropologia, paleontologia, mitologia, misticismo, hipnotismo, farmacologia etc. Um gênio que, até ser convocado pelo governo norte-americano para decifrar e desqualificar eventos ufológicos, era professor de astronomia na Northwestern University.

Já a sua mulher Mimi (Laura Mennel) é vista como uma imbecil e mãe negligente. Em plena Guerra Fria (EUA versus União Soviética), enquanto o marido caça OVNIs, ela, que parece conhecer ninguém na vida, além do ocupado marido e do superativo filho Joel (Nicholas Holmes), torna-se amiga de uma serigaita (loira fatal), Susie Miller (Ksenia Solo), numa loja de departamento, e imediatamente sente a língua coçando para compartilhar Segredos de Estado (“que ela não pode falar”) do importante Dr. Hyneck (é assim que ele se apresenta para as pessoas simples que veem coisas que não devem ver no céu e ou na terra)..., como se o título de Dr. lhe desse autoridade sobre qualquer assunto. É preciso dizer quem e ou o quê faz a tal loira, que apareceu “do nada”? Quais são as suas reais intenções nesse quibrocó do pesquisador doido e roteirista sem noção e ou imaginação escorregando no quiabo com maionese?


Criado por David O'Leary e produzido por Robert Zemeckis (De Volta Para o Futuro) para o canal History, o enredo é uma bagunça fantasiosa que seria cômica não fosse dramática. É difícil saber qual é o objetivo da pretensiosa série situada nos anos 1950: farsa ou paródia ufológica em meio à paranoia da Guerra Fria? Como se não bastasse a indefinição, não há uma personagem sequer que desperte um mínimo de simpatia. Quem não é arrogante ou prepotente é idiota ou tratado como ignorante. Ainda que a reconstituição de época e dos avistamentos seja muito boa, as histórias “reais” dos OVNIs (cada capítulo uma “ameaça” nova) e dos alienígenas não empolgam, principalmente por causa das descartáveis “histórias” paralelas tapa-fotograma que a todo instante interrompem a trama.

A série se leva tão a sério que até declina do contato imediato com o humor de qualquer grau. Enquanto a narrativa se arrasta, a relação absurda das duas mulheres, que mal se conhecem e já são amigas desde criancinhas, se torna tão chata e os seus diálogos tão estúpidos que você há de querer correr (no controle remoto) as sequências em que elas aparecem..., ou ainda desejar que sejam sequestradas por algum extraterrestre alucinado. Ah, e certamente você vai perguntar muito em qual buraco da minhoca, não catalogado pelo projeto, se esconde o menino Joel quando não está (?) em casa. 


Enfim, com seu suspense forçado na trilha sonora enfadonha, a série deve interessar mais ao espectador (pouco exigente) que aprecia a temática Discos Voadores e gostaria de “saber” algo sobre o Projeto Livro Azul (1952 a 1970) da Força Aérea dos Estados Unidos, que buscava descobrir (ou encobrir) a periculosidade (ou a origem) dos OVNIs, do que ao espectador com mais vivência no assunto e que se lembra de outras séries explorando o mesmo tema, como a Project U.F.O (1978/1979), também baseada em arquivos do Project Blue Book.

Dos dez capítulos, o penúltimo me pareceu o pior. Embora o foco abdução seja curioso, ele tem absolutamente nada a ver com os episódios anteriores, já que a reação dos dois caçadores oficiais de OVNIs, diante de um fato realmente novo e instigante, é totalmente contraditória (para não dizer improvável!) com os esforços que vinham fazendo para certificar os eventos. Se bem que o último capítulo da primeira temporada é muito mais estranho no contexto mal encaixotado do espaço sideral. Bom, isso se você não relevar o ET na Proveta do Von Braun, os soturnos e “invisíveis” Homens de Preto e outros penduricalhos que é melhor que descubra e julgue por conta própria. Arrisque no piloto! Se não gostar, desista da viagem! Se gostar, aperte o cinto e caia na estrada ou pegue carona num caça e desfrute, porque, segundo as mensagens, “o fim está próximo”!

Nota: O material ufológico recolhido pelo governo norte-americano é farto. Porém, dos mais de 12.000 eventos, apenas uns 700 não teriam explicação lógica. Quem tiver paciência pode pesquisar na web sobre os casos mais famosos do Project Blue Book e inclusive fazer download.



*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Crítica: Heróis Modestos



HERÓIS MODESTOS
por Joba Tridente

Parece que, após o sucesso da adorável animação em longa-metragem Mary e a Flor da Bruxa (2017), o novo estúdio japonês Ponoc, criado por Yoshiaki Nishimura para produzir desenhos animados infantis que agradem a espectadores de todas as idades, não vai ter muito empecilho para se estabelecer num mercado global tão concorrido. Ao menos é o que indica o volume um do seu festival de curtas-metragens intitulado Heróis Modestos (Chiisana Eiyuu: Kani to Tamago to Toumei Ningen, 2018), que estreou recentemente na Netflix, trazendo três fascinantes animações: Kanini & Kanino, de Hiromasa Yonebayashi; A Vida Não Se Perderá, de Yoshiyuki Momose; Invisível, de Akihiko Yamashita. Assim como Nishimura, os três diretores são “crias” do famoso Studio Ghibli, do mestre Hayao Miyazaki. Os temas tratados nos três curtas são originais e não subestimam a inteligência da criançada e muito menos a de qualquer jovem ou adulto que ame desenho animado e uma história de excelência..., ao falar de relacionamento familiar, alergia e invisibilidade social.


Kanini & Kanino, dirigido por Hiromasa Yonebayashi (As Memórias de Marnie; O Mundo Secreto de Arrietty; Ponyo - Uma Amizade que Veio do Mar; Mary e a Flor da Bruxa) conta a história de dois pequeninos irmãos anfíbios que vivem e aprendem a caçar com o pai em um córrego, onde estão sujeitos a vários perigos, já que podem ser levados por uma correnteza mais forte e ou abocanhado por animais maiores, inclusive peixes. Quando um incidente os afasta do pai, as duas crianças partem à sua procura... Embora tenha uma pitadinha de suspense, a natureza exuberante deste mundo fantástico e o tom bucólico, com o ruído da água entre as pedras, é até relaxante. Praticamente sem diálogo, com algumas boas pontuações da trilha e o gestual dos personagens graciosos, em um traçado limpo (clássico!), o curta Kanini & Kanino, com seu roteiro redondinho, encanta (qualquer público) do princípio ao fim! É pura magia!


A Vida Não Se Perderá, do diretor Yoshiyuki Momose, é uma das mais originais histórias animadas que já vi. Nunca imaginei que um tema como alergia a certos alimentos pudesse gerar uma animação tão instigante. Essa narrativa singela, baseada em fatos, acompanha o dia a dia do pequeno e apaixonante Shun, um garoto vigoroso que, desde cedo, aprendeu a lidar com a sua alergia. Porém, por mais atentos que a mãe superprotetora e ele estejam, um vacilo na leitura de um rótulo alimentar pode fazer a diferença entre a vida e a morte. A Vida Não Se Perderá é um filme que traz a bela luz da primavera e do verão num traçado simples e deliciosamente colorido. O roteiro tem todos os elementos para escorregar na pieguice...; porém, a direção sóbria jamais tangencia o dramalhão. A sequência final impressiona e arrepia pela intensidade. Mas, a cena em que Shun acredita que se conseguir acabar com o alimento que lhe causa alergia os seus problemas estarão resolvidos é um achado precioso. Enfim, uma pérola que, com certeza vai emocionar crianças e adultos! Lindo demais!


Invisível, com direção de Akihiko Yamashita, é uma brilhante metáfora sobre a invisibilidade social. Nele acompanhamos um dia na vida de um homem que, por mais capacitado e gentil que seja, é totalmente invisível aos olhos dos colegas de trabalho, dos comerciantes, dos pedestres, dos motoristas ao seu redor. Seu corpo e sua alma são tão leves, que ele precisa carregar algum objeto pesado para conseguir se movimentar entre as pessoas..., para se sentir um humano entre humanos. Mas não é fácil quando se vive em um mundo de aparências e em que cada um só enxerga aquilo que lhe interessa (principalmente o próprio umbigo). Toda via da ignorância visual, no entanto, quando a vida lhe parece não ter mais sentido algum, a compreensão e a cumplicidade podem vir do olhar de alguém que ele menos espera... Magnífico! Ainda que melancólico, Invisível é de uma beleza perturbadora, no traçado ágil (e bota agilidade nisso!) e no roteiro inteligente que nos convida a refletir profundamente sobre a solidão individual e coletiva também nas redes sociais, onde cada carinha (anônima ou não) fica à espera de uma curtida e ou um cutucão que talvez jamais receba. Provavelmente muitas carinhas do mesmo livro passarão umas pelas outras (nas ruas, calçadas, praças) sem se reconhecerem e ou sequer se cumprimentarem...

Sugiro que, após se deleitar com esta excelente seleção de curtas japoneses, que distingue três modestas formas de heroísmo, você assista também à entrevista de Yoshiaki Nishimura, que fala da produtora Ponoc, dos três diretores convidados e do processo de criação das animações!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Crítica: O Cristal Encantado: A Era da Resistência



O Cristal Encantado: A Era da Resistência
por Joba Tridente

Creio que uma das minhas memórias cinematográficas afetivas mais significativas é a do fascinante filme O Cristal Encantado (1982), fantasia dirigida pelo mestre das marionetes Jim Henson (1936-1990), que também dirigiu o mágico Labirinto (1986) e diversos filmes para a tv e cinema das suas famosas criações: Os Muppetts e Vila Sésamo..., e por Frank Oz (Pequena Loja de Horrores, 1986; Os Safados, 1988; Nosso Querido Bob?, 1991; Será Que Ele é?, 1997; Os Picaretas, 1999; A Carta Final, 2001; Morte no Funeral, 2007, entre outros, incluindo séries para televisão).

A razão de tal memória é porque (na época) estava vivendo uma fase de pesquisas míticas (não confundir com místicas) e o surpreendente final da trama sombria (quando os urRu (bem) e os Skeksis (mal) se fundem e voltam a ser unos e divinos UrSkeks) me levou a fazer uma analogia ao discurso de Aristófanes (447a.C.-385a.C.), proferido em O Banquete (385 a.C.- 380 a.C.), de Platão (428 a.C.-348 a.C.), sobre o amor/desejo, em que ele discorre sobre o mito da  unidade primitiva (ou o princípio uno dos seres humanos duplos de si mesmos) e sua posterior mutilação (separação), sujeitando o homem a passar a vida à procura da sua (cara) metade contrária e, ao encontrá-la, fundir-se novamente num só ser e reencontrar o perfeito equilíbrio com a natureza... Daí o meu entusiasmo com a série O Cristal Encantado: A Era da Resistência (The Dark Crystal: Age of Resistance, 2019), que mistura artesania da melhor qualidade na criação de bonecos belíssimos e tecnologia de ponta (CGI) nos detalhamentos para uma releitura deslumbrante do filme de  Henson e Oz.


A primeira temporada da imersiva série, já disponível na Netflix, em dez episódios dirigidos pelo francês Louis Leterrier (que melhorou muito desde os esquecíveis Fúria de Titãs e Truque de Mestre), e que conta com a inestimável participação do genial ilustrador inglês Brian Fround (O Cristal Encantado e Labirinto) na criação e arte das marionetes, expande maravilhosamente o universo do Planeta Thra..., onde sete distintos clãs de inocentes Gelflings e um de graciosos Podlings estão submetidos à “proteção” dos perversos Skeksis, guardiões do poderoso Cristal da Verdade, o Coração de Thra, enquanto a anciã e ex-guardiã Mãe Aughra perscruta o universo em seu potente observatório.

Além das espécies citadas, Thra está repleta de plantas e animais fantásticos. Porém, quando o planeta começa a apresentar sinais de desequilíbrio, escasseando a sua energia natural, afetando principalmente a vida dos Gelflings, e a verdade sobre as intenções malignas dos asquerosos reptilianos abutres Skeksis vem à tona, os pacatos elfos precisarão deixar as suas diferenças pessoais e ou tribais de lado e lutar pelo bem comum de todos os que vivem nos arredores da temível fortaleza dos dominadores..., sem saber se poderão contar com a ajuda do grande oráculo Mãe Aughra, mas cientes de que muitos deles podem não sobreviver. Acredite, algumas perdas você não vai se conformar de jeito nenhum.


O Cristal Encantado: A Era da Resistência que se passa antes dos fatos narrados no cultuado filme O Cristal Encantado, é potencialmente matriarcal e ou feminista. Cada clã é administrado por uma Gelfling Maudra e entre os três protagonistas Gelfings selecionados para encontrar uma forma de reequilibrar o planeta e derrotar os Skeksis, estão o intrépido guerreiro Rian (marionetista: Neil Sterenberg, voz: Taron Egerton , a erudita Princesa Brea (marionetista: Alice Dinnean, voz: Anya Taylor-Joy), com sua insaciável fome de saber e entender o mundo ao seu redor, e a adorável e inesquecível pacifista das cavernas Deet (marionetista: Beccy Henderson, voz: Nathalie Emmanuel). Os três, em performances incríveis de seus manipuladores e dubladores, divertem e emocionam profundamente o público. Não há como ficar indiferente à ingenuidade e ao pavor deles diante do mal desconhecido e da coragem inigualável para enfrentar a força maléfica dos Skeksis. Aí, em certos momentos íntimos ou sequências de ação espetacular, a arte dos bonecos é tão precisa que a gente, absorvido pelo contexto, nem lembra que quem está em cena são marionetes e não atores de carne e osso...


É claro que uma produção impecável, de cair o queixo, como essa, não ia deixar barato, e contratou os melhores marionetistas do mercado e um time de ótimos atores e atrizes jovens e tarimbados para dar vida e voz aos bonecos que, em algumas cenas, com poucos movimentos, interpretam melhor que muita gente por aí. Eles têm reações humanas, choram, e nas cenas de ação mirabolante até dispensam os dublês.

A mim, os mais expressivos são a inesquecível e apaixonante Deet (maravilhosa) e a impaciente ogro Mãe Auhgra. Mas, no geral, todos os bonecos são carismáticos, inclusive os literalmente repugnantes e por vezes divertidos (com seu humor negro) Skeksis. Como o elenco é imenso, caso se interesse, confira a lista de marionetistas e atores aqui e as características dos personagens aqui. A sinopse de cada episódio você conhece no próprio canal. Cada capítulo tem a metragem certa para o desenvolvimento da trama e dos personagens com suas inacreditáveis idiossincrasias.


Consciente ou não, o roteiro escrito por Jeffrey Addiss e Will Matthews, deixa escapar em suas entrelinhas, críticas ao sistema capitalista e ao consumo desenfreado de combustível fóssil, ao agronegócio, ao aquecimento global, à intolerância, ao fascismo e ao “analfabeto útil” que acata ordens sem (ter coragem de) questionar. Aqui, ainda não é o discurso de Aristófanes sobre a unidade que chama a atenção, mas o Mito da Caverna, do diálogo entre Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) e Glauco em A República (380 a.C.), de Platão. No enredo da série, Deet sai da profundeza da caverna onde vive com seu povo, para conhecer a realidade e o desequilíbrio de Thra, enquanto a insegura e intransigente Princesa Seladon (marionetista: Helena Smee, voz: Gugu Mbatha-Raw), ignorando a realidade exterior, onde vive, penetra na caverna sombria dos dissimulados Skeksis em busca de uma verdade tranquilizadora...


Enfim, é preciso tomar cuidado ao falar de O Cristal Encantado: A Era da Resistência para não cometer algum spoiler, já que cada capítulo traz surpresas nas reviravoltas sensacionais do drama e revelações impactante da personalidade de cada personagem, principalmente dos imorais Skeksis, mexendo com os conceitos do espectador. Comenta-se que a segunda temporada, talvez mais trágica, já está acertada. Porém, independente dela ser realizada ou não, esta maravilha que está no ar e que faria Jim Henson se orgulhar dos filhos que tem e dos amigos artistas que cultivou em vida, esta fantasia sublime, de realismo impressionante e técnica irretocável, ao meu ver, merece todos os prêmios possíveis do ano. Ah, não deixe de assistir, grudado no último episódio, ao Making, que mostra todo o processo de criação da série, incluindo roteiro, cenários, bonecos, CGI, set, filmagem, figurino, trilha sonora etc. É isso! Me desculpe se adjetivei (ou filosofei) mais que resenhei!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Crítica: Michelangelo Infinito



Michelangelo Infinito
por Joba Tridente

As coisas que sempre me incomodaram (e ainda incomodam!) em matérias televisivas e impressas, bem como em documentários sobre arte, são o tempo e o espaço imensos ocupados pela figura do artista (como se ele fosse mais importante que o seu conceituado trabalho) e o curto tempo e o pequeno espaço dedicados ao que realmente interessa: as obras em exposição (plásticas, fotografia, teatro, dança, literatura etc). O mesmo acontece com documentários sobre a natureza, onde todo som natural (rios, cachoeiras, animais, vento etc) é substituído ou sobreposto (o que é ainda pior!) por insuportáveis trilhas musicais chorosas, não bastassem o texto e as narrativas feitas por gente de dicção comprometedora.

Desde criança gosto de documentários..., mas, a cada dia da maturidade, a impressão é a de que perdem o dinamismo em prol do oportunismo, do exaustivo (e indiscriminado) uso das famosas e também de duvidosas cabeças falantes, que ocultam falhas técnicas, falta de material, e resultam em filmes pouco ou nada envolventes. Há mais veracidade no registro fotográfico (por exemplo) de fatos, do que em depoimentos sobre fatos, já que sempre se corre o risco da traição da memória..., ou da parcialidade.


No ritual dos documentários há, entre outros, o estilo docudrama, onde o (a) protagonista-tema, interpretado(a) por ator e ou atriz, “relata” a própria saga..., como é o caso do italiano Michelangelo Infinito (2018), que, através de dois monólogos (que se entrelaçam) e um texto narrado, traça um panorama da vida e obra do grande arquiteto, escultor, pintor e poeta renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Nele, acompanhamos Michelangelo (Enrico Lo Verso), como se estivesse sendo entrevistado, falando (diretamente para o espectador) da sua adolescência à vida adulta, da obsessão pela arte escultórica e da angústia religiosa, do relacionamento com o alto clero e (quase inexistente) com outros artistas...; o biógrafo  Giorgio Vasari (Ivano Marescotti) contando (diretamente para o espectador) da sua admiração por Michelangelo e fazendo observações pessoais sobre o artista...; e, alinhavando os dois monólogos, a voz/off do ator e dublador Simone D’Andrea complementando os relatos com informações outras (posteriores aos fatos).


Como não há crédito algum de referência, além da presença de Vasari, acredita-se que o documentário dirigido por Emanuele Imbucci, que colaborou no roteiro a três cabeças pensantes, seja inspirado na biografia de Michelangelo, escrita pelo pintor, arquiteto e historiador da arte Giorgio Vasari (1511-1574), publicada em “As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos” (Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori, 1550). Excetuando a dramatização teatral, com suas excelentes reconstituições episódicas, Michelangelo - Infinito é um filme que soa um tanto acadêmico-didático e um tanto galeria-tour, na exposição do riquíssimo conteúdo..., informando e ilustrando ao público qual teria sido a razão e como teria sido a realização das mais importantes obras do gênio renascentista, como Madonna da Escada; Centauromaquia; BacoPietáDaviTondo Doni; Batalha de Cascina; teto da Capela Sistina e mural O Juízo Final; Moisés/Túmulo de Júlio II; Pietá Rondanini; Túmulos de Lorenzo de Médici e Giuliano de Médici...


A belíssima fotografia de Maurizio Calvesi, que emoldura a narrativa, tanto enaltece as iluminadas pinturas quanto (contraditoriamente, já que Michelangelo preferia a escultura à pintura) obscurece as esculturas, que são mostradas com mais sombras que luz e, preferencialmente, em breves closes, ressaltando alguns detalhes em detrimento da beleza do todo. Se o espectador piscar, perdeu a magnitude “das almas libertas da pedra”. Já às pinturas do teto da Capela Sistina e do mural O Juízo Final e aos estudos para Batalha de Cascina e esboços na sala subterrânea da Basílica de San Lorenzo (descobertos em 1975) o tempo dedicado à apreciação é (aparentemente) muito maior e o detalhamento também faz mais sentido. Ou seja, tecnicamente, o filme te dá e te tira o prazer de apreciar algumas obras por completo. Como tem patrocínio do Museu e da Mídia do Vaticano, possivelmente a ideia seja a de dar ao público (e potencial turista) um bom aperitivo, a fim de despertar a fome de conhecer as obras in loco nos palácios-galerias católicos. A bonita trilha sonora de Matteo Curallo pontua bem o enredo, sem parecer invasiva e ou irritante.


Entre a “certeza” e a “incerteza” dos fatos sobre a vida pessoal e artística de Michelangelo, que nos chegaram e ainda causam controvérsia séculos depois, independente das características técnicas ficarem entre o televisivo e o cinematográfico e do toque ficcional (?) às vezes incômodo (ou inverossímil) nos monólogos, Michelangelo Infinito é um documentário limpo, redondo (enciclopédico?), rico em imagens e cuja cadência (melodramática ou não) é acessível a qualquer público iniciado ou leigo em obras do artista (algumas peças eu mesmo desconhecia). Pode até carecer de espaço (?) para aprofundar questões político-religiosas (se é que havia essa intenção!) e maiores considerações sobre Michelangelo e sua época, que abrigava outros gênios como Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520), Botticelli (1445-1510)..., porém, não me pareceu aborrecido e ou grandiloquente e, ainda que espelhe a imensa devoção do diretor pelo grande mestre de Florença e Roma, não se trata de uma hagiografia.

Enfim, este é um documentário para se ver sem compromisso e com os olhos bem abertos para apreciar tanta beleza plástica. Quanto aos monólogos, se incomodarem, relegue-os. Sabe-se lá se o que ouvir eram realmente os pensamentos de Michelangelo em confronto ou conflito com o seu deus interior e ou exterior...




*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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