quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Crítica: A Odisseia dos Tontos



A ODISSEIA DOS TONTOS
por Joba Tridente

Se você é do tempo dos “caras pintadas” deve se lembrar do desastroso Plano Collor (mais conhecido como “confisco da caderneta de poupança”)..., aquela lambança sem precedentes, do presidente Collor e da sua ministra da economia Zélia, que apavorou o país ao confiscar os ativos financeiros de todos (?) os brasileiros. É claro que a dupla foi odiada desde então e o imbróglio todo, com mais alguns dados gráficos, felizmente não acabou em pizza, mas em impeachment de um e sumiço de outra nos EUA, na década de 1990.

Pois você sabia que dez anos depois, da derrocada aqui, um plano econômico parecido (o corralito) foi implantado na Argentina? Bem, no Brasil o fato desagradável rendeu motivos ao tenso filme Terra Estrangeira (1996), de Walter Salles e Daniella Thomas. Na Argentina, motivou a deliciosa dramédia A Odisseia dos Tontos (La odisea de los Giles, 2019), de Sebastián Borensztein (Um Conto Chinês e Kóblic)..., uma envolvente história de ação e reação anárquica (ou seria de revanche?) que pode fazer você se perguntar: “Por que não pensei nisso na época, camarada?.


Baseado no livro La Noche de la Usina, de Eduardo Sacheri (La pregunta de sus ojos / O Segredo dos seus olhos), e no roteiro do próprio Borensztein, a trama de A Odisseia dos Tontos, como toda boa odisseia, ousa vários gêneros (drama, comédia, suspense, ação, aventura) para contar a louca história de um heróico grupo de moradores de uma vila da província de Buenos Aires que, no ano de 2001, às vésperas do confisco bancário corralito, perde todo o dinheiro juntado para montar uma cooperativa, num golpe armado pelo corrupto gerente do banco e um inescrupuloso advogado, e decide arquitetar um plano para tentar recuperar o dinheiro. Giles (tonto ou tolo): pessoas ingênuas que são facilmente enganadas por empregadores, manipuladas por autoridades e exploradas por políticos etc...

Ao abrir A Odisseia dos Tontos com a bela valsa O Danúbio Azul (1866), de Johann Strauss II (1825-1899), acompanhando uma explosão que lança pro alto um amontoado de ferragem, reverenciando a famosa elipse do filme 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick (1928-1999), em que, logo após descobrir o uso de uma “arma” que lhe dará domínio sobre outras espécies, um macaco pensante lança um osso/nave ao espaço, Sebastián Borensztein já diz a que veio, não apenas por começar situando a sua saga no emblemático ano 2001, o mais explosivo ano político e econômico argentino, que culminou com cerca de quarenta mortos e cinco troca de presidente em duas semanas do mês de dezembro..., mas também para mostrar como um grupo de amigos (mais ou menos pensantes), vitimado pelo corralito e também favorecido pelo acaso, encontrou uma solução brilhante para seus problemas financeiros e empresariais. Essa explosão espetacular, que será vista novamente e no contexto real, por um ângulo mais irônico, no terceiro ato, também tem a ver com a evolução dos macacos de Kubrick, mas é melhor você desvelar (e rir) por conta própria. Ah, e se for atento(a) perceberá outras minúcias curiosas na cenografia, bem como na trilha sonora.


A Odisseia dos Tontos tem uma narração nada redundante de Fermín Perlassi (Ricardo Darín), do prólogo ao epílogo, que ilustra mais a alma do que os passos dos seus parceiros de jornada em busca de justiça (com as próprias mãos e ou com o quê estiver à mão). A ação de caça ao tesouro pessoal (os dólares economizados) parece insano, mas o desespero dos enganados é o combustível (ops!) que alavanca muitas iniciativas, para o bem dos amigos (montar uma cooperativa para empregar um bocado de gente do vilarejo) ou para o mal dos espertalhões (guardar dólares roubados para se dar bem no pós-crise econômica).

É nesse divertido corre-corre do grupo, entre acertos e erros, em busca da melhor estratégia para dar uma rasteira de mestre no vilão e recuperar o que é seu, sem ser descoberto, que vamos conhecendo a personalidade de cada um dos onze protagonistas: o ex-jogador de futebol e mentor Fermín Perlassi (Darín), sua mulher idealizadora da cooperativa Lidia (Verónica Llinás) e o filho universitário Rodrigo (Chino Darín), o anarquista convicto Fontana (Luis Brandoni), o maluco resignado Medina (Carlos Belloso), o peronista piadista Belaúnde (Daniel Aráoz), o advogado trapaceiro Fortunato Manzi (Andrés Parra), a empresária Carmen Lorgio (Rita Cortese) e o seu filho sem menosprezado Hernán (Marco Antonio Caponi), os  consumidores de novas tecnologias irmãos Gómez (Ale Gigena e Guillermo Jacubowicz)..., todos muito bem caracterizados e, em meio a risos e alguma comoção, com bom tempo em cena.


Com uma discretíssima e bem-humorada pegada sócio-política, A Odisseia dos Tontos é um filme que ganha fácil qualquer público, tanto pela genialidade do argumento, muito bem desenvolvido no criativo roteiro, quanto pela direção impecável de Sebastián Borensztein.  A performance do elenco é um espetáculo à parte. É impossível ficar imune à empatia das personagens, sejam elas ignorantes e ou bem informadas. Não importa o tempo de tela e ou a quantidade de falas, cada ator/personagem é único no papel e essencial na trama que beira o absurdo e chega a flertar com o pastelão..., mas sem perder a classe cinematográfica argentina. Pode até parecer “inspirado em fatos”, mas, acredite, é (?) pura ficção. Ou será que não?

Enfim, A Odisseia dos Tontos exala calor humano de uma forma muito particular, muito própria do original cinema argentino. Repleta de boas intenções, é uma comédia tocante, emociona, sem ser piegas, e diverte (com situações e diálogos hilários e piadas políticas impagáveis), sem subestimar a inteligência do público que, caso não tenha a menor ideia do assunto, ainda pode aprender sobre cooperação e sobre cooperativa. A trilha, com rocks argentinos, ilustra bem o enredo com seu final apoteótico (se fosse filme cabeça-de-parafuso o fim, possivelmente, seria completamente diferente). Se é fã ou quer conhecer o cinema dos hermanos, acho que deveria arriscar. Vai que gosta. Difícil não gostar! Ah, não custa lembrar que há uma breve sequência logo no início do pós-crédito que dá bem o tom da revolta capital de um personagem!


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Crítica: A Vida Invisível



A Vida Invisível
por Joba tridente

Quanto tempo o tempo leva para abrandar a saudade, esmaecer as lembranças e fazer um elo fraterno virar pó de estrela? Poucos dias ou uma vida inteira para quem carrega consigo uma parte qualquer de um pertence compartilhado? Quem é que sabe?! O tempo é tão fugidio quanto o vento!

A Vida Invisível (2019) é o mais recente filme do premiado diretor Karim Aïnouz (Viajo porque preciso, volto porque te amo). Ganhador do prêmio Un Certain Regard, do Festival de Cannes 2019, e escolhido para representar o Brasil no Oscar 2020, o melodrama fala de laços de fraternidade que não se rompem e de memória que não se desvanece...,  bem como de gente que desaparece de vista (por diversas razões) e de gente que está à vista de todos, mas que (por diversas razões) é tratada como se estivesse invisível (desaparecida).


Não li o livro A Vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha, mas, pelos resumos e resenhas da obra literária na web, parece que os roteiristas Aïnouz, Murilo Hauser e Inés Bortagaray deram uma boa enxugada na história e nas personagens. Ao excluir tramas paralelas, o enredo ganhou agilidade e metragem para falar apenas da ousada Guida (Julia Stockler) e da recatada e talentosa Eurídice (Carol Duarte e Fernanda Montenegro), que sonhavam grande ao entrar na vida adulta nos, ainda (?) conservadores, anos 1950. Porém, a vida real tem lá seus percalços e, quando se tem um pai austero (António Fonseca) e uma mãe submissa (Flávia Gusmão), um sonho pode muito bem virar um pesadelo. Aí, ou você se arrisca, como fez Guida, que, levada pela paixão, se envolveu com um marinheiro estrangeiro e, no vai e vem das marés, acabou trazendo pra casa um incômodo “presente de grego”. Ou se sujeita à “tradição familiar”, como fez Eurídice, de 18 anos, que viu seu sonho de estudar piano em Viena ir teclas abaixo, ao se casar com Antenor (Gregório Duvivier).


Toda via da felicidade incerta, no entanto, as irmãs que, da noite pro dia, se separaram e cujas vidas tomaram rumos inesperados, não perderam a esperança de se reencontrarem. Perto da memória, mas longe dos olhos, embora morando na cidade do Rio de Janeiro, ambas imaginam que a realização dos seus sonhos juvenis as levaram para longe uma da outra. Guida acredita que a irmã está feliz estudando piano na Áustria. Eurídice acredita que a irmã está feliz com o seu amor na Grécia. A saudade as corrói, mas a esperança de um breve reencontro lhes dá força para enfrentar a sociedade repressora e macho-falocrata em que vivem.

Situado nos primeiros oito anos da década de 1950, A Vida Invisível busca foco na carência afetiva e no cotidiano inconstante das resilientes irmãs. A narrativa é comedida na exposição (incômoda) de algumas situações de violência contra a mulher e parece evitar qualquer virtual alívio cômico. Até há uma ou outra “piada picante”, mas, de tão antiga (do tempo do onça), passa batida. O que prevalece mesmo é o tom melancólico, que beira o claustrofóbico, fielmente detectado pela fotografia de Hélène Louvart. Os personagens são verossímeis, a química de todo elenco é excelente e a reconstituição de época é um primor.


Enfim, com a presença marcante de Fernanda Montenegro, na pele da idosa Eurídice, dando os últimos pontos na trama, A Vida Invisível deve comover, principalmente aquele público cujo familiar se “perdeu” (na vida pessoal e ou profissional) mundo afora. É um filme bonito, com uma história básica sobre laços fraternos, que fará os espectadores mais suscetíveis deixar algumas lágrimas na sala de cinema...


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Crítica: Maria do Caritó



 MARIA DO CARITÓ
por Joba Tridente

Em sua belíssima canção Trem das Cores (1982), Caetano Veloso canta: “(...) As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar/ Os dois lados da janela/ E aquela num tom de azul quase inexistente, azul que não há/ Azul que é pura memória de algum lugar”..., versos que nunca esqueci, pela felicidade do “azul quase inexistente, azul que não há, azul que é pura memória de algum lugar” aninhado na minha memória afetiva de interiorano paulista...


Eu sabia absolutamente nada da trama (sequer li a sinopse) de Maria do Caritó, mas ao ouvir a diva Maria Bethânia cantando Santo Antônio (2010), de J, Velloso, na bela abertura (em tons de azul que não há) da nostálgica comédia romântica circense Maria do Caritó, abri um grato sorriso. Daí, ao ver os tons “sagrados” de azul (que é pura memória) se espalhando pela tela e se misturando às cores “profanas” dos cenários e ao sentir a cantilena das falas em verso (Meu Santo Antônio querido, eu vos peço por quem sois, dai-me o primeiro marido, que o outro eu arranjo depois.) e prosa (Caritó é uma pequena prateleira no alto da parede, ou nicho nas casas de taipa, onde as mulheres escondem, fora do alcance das crianças, o carretel de linha, o pente, o pedaço de fumo, o cachimbo. O termo “caritó” também é usado para falar da moça que ficou na prateleira, sem uso, esquecida, guardada intacta...), se acomodando agradavelmente em meus ouvidos, me deixei arrebatar e saboreei, por 90 minutos, sem perder o riso, uma deliciosa história repleta de sentimentos de liberdade e de humor ingênuo que não perde o viço.


Baseada na aclamada peça teatral homônima, de Newton Moreno, que dividiu a roteirização com José Carvalho, a envolvente história de Maria do Caritó, dirigida por João Paulo Jabur, gira ao redor de Maria (Lilia Cabral) que, ao sobreviver a um parto de risco, que culminou com a morte da mãe, foi prometida pelo pai (Fernando Zylber) ao Santo Djalminha. Acontece que, aos 50 anos, a ardorosa solteirona anda a cada dia mais desejosa de um homem que lhe tire a virgindade prometida ao tal santo.  Maria quer um amor real em vida e não uma alegoria pós-morte. Toda via amorosa dos calores da menopausa, no entanto, na pequena Úrsula, onde mora e é venerada como milagreira, não é fácil driblar os sacrossantos interesses financeiros e político-religiosos do pai, do Coronel (Leopoldo Pacheco) e do Monsenhor (Fernando Neves) e muito menos conseguir um marido para a sua “santitude”. Porém, enquanto ela e sua amiga e confidente Fininha (Kelzy Ecard) atormentam Santo Antônio, na esperança de um milagre (humano) que aquiete os desejos da carne, a chegada de um Circo Mambembe naquela cidadezinha mergulhada na fé cega, trazendo em seu elenco o Galã Russo Anatoli (Gustavo Vaz), o Palhaço Fonsequinha (Fernando Sampaio), a atriz Ingênua (Priscila Steinman) e a proprietária Teodora (Juliana Carneiro da Cunha), pode botar aquele lugar de pernas pro ar... Será que “fé demais não cheira bem”? Ôps!


Maria Caritó, com seu humor brejeiro, é o tipo de filme que me parece fazer diferença (e falta!) no atual cenário cinematográfico (e quiçá político) brasileiro. O enredo é singelo, porém extremamente cativante, com seu clima bucólico, piadas inocentes (ou caipiras) que provocam um riso fácil (sem jamais subestimar a inteligência de qualquer espectador) e mensagens subliminares (sobre política, cultura e religião) muito mais eficientes do que aquelas dos filmes cabeça-de-parafuso tão em moda (e que não vêm com um compêndio do cinéfilo).

Por sua brasileirice,  a narrativa nordestina poderia ganhar vida e forma em qualquer lugar do país (a mim lembrou Minas Gerais), com suas cores de cidade do interior, predominadas pelo azul arrepiante (cuja intensidade emociona), ao embaralhar o cordel com a poesia marota, o teatro com o circo, o causo com a crônica de costumes, fragmentando a fantasia e desnudando a realidade dos sagrados palcos de papel..., e ou de Babel.


Ainda que exale um frescor agradável a todos os espectadores, Maria do Caritó, com pitadas Fellinianas aqui e resquícios do inesquecível A Marvada Carne (1985), de André Klotzel, acolá, deve extasiar principalmente o público mais velho. Quanto ao público mais novo (que perder o lugar no trem do lirismo e ignorar (?) os efeitos da catequese), pode até encarar o trauma de Maria com algum ceticismo, mas certamente não ficará imune ao humor leve (e sem escatologia) da boa trama.  

Enfim, pelo roteiro redondo e a excelência de todos os memoráveis tons de azul na arte de Sérgio Silveira e figurinos de Rô Nascimento, muito bem emoldurados pela fotografia de André Horta; pelo elenco se divertindo com a caipirice (caricatura ou canastrice) das personagens; pela performance irretocável de Lilia Cabral; pelo ritmo narrativo e trilha sonora; pela versatilidade dos diálogos em verso e prosa; pelo humor saudável e levemente “picante”;  pela hora e meia (que voa) de ótimo entretenimento..., espero que Maria do Caritó, que já encantou muita gente no teatro, agora encante um público ainda maior nas salas de cinema!


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

domingo, 13 de outubro de 2019

Crítica: A Cidade dos Piratas



A Cidade dos Piratas
por Joba Tridente

Quando se fala em desenho animado, a referência do grande público é a de entretenimento para crianças, com bichinhos e objetos falantes, canções grudentas e histórias edificantes. Mas, no submundo das pranchetas, há muita história ao gosto dos espectadores adultos, que chegou às salas de cinema e ou pode ser encontrada na web, como Psiconautas - As Crianças Esquecidas; Uma Grande Aventura; Anomalisa; Túmulo dos Vaga-lumes; In This Corner of the World; Persépolis; Mary & Max - Uma Amizade Diferente; Rugas; Quando o Vento Sopra; A Festa da Salsicha; Chico e Rita; Fritz, O Gato; O Homem Duplo; Waking Life; Valsa com Balshir; A Ganha-Pão; Perfect Blue; Akira; Heavy Metal; As Bicicletas de Belleville; O Congresso Futurista; Idiots and Angels; O Menino e o Mundo; Uma História de Amor e Fúria; Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’roll... Não há desculpas para quem gosta de animação-cabeça, com temática (sexual, social, política, religiosa) contemporânea, achar que apenas o público infantil é priorizado.


Isso posto, vamos ao que interessa: A Cidade dos Piratas. Quem conhece os filmes do cineasta gaúcho Otto Guerra talvez já saiba (será?) o que esperar da sua mais recente animação em longa-metragem A Cidade dos Piratas. Porém, o espectador de primeiro desenho animado e ou o que só sabe da sua desconcertante obra cinematográfica apenas de ouvir falar e ou, ainda, no momento, está curioso por causa das célebres tiras Piratas do Tietê, da quadrinista Laerte Coutinho, que serviu de inspiração para o filme, vai ter uma baita surpresa..., é capaz até de ficar sem chão. Os machos convictos que se cuidem!

É que, longe da sua zona de conforto de mero espectador, alinhavar a balbúrdia, com tanto assunto polêmico (e muito pertinente no Brasil do retrocesso!)..., como transexualidade e homofobia; bissexualidade e preconceito sexual; machismo e feminismo; assédio e lavagem cerebral; poesia e palavrão; poluição urbana e mental; criatividade, desenvolvimento de roteiro e produção cinematográfica; agruras do câncer de cólon de Otto..., mixado a várias entrevistas reais de Laerte, é nada fácil.


Pelo bom uso e anárquico abuso da metalinguagem, ousaria dizer que Otto faz da animação A Cidade dos Piratas, o seu 8 ½, de Fellini..., uma vez que (diretor e personagem na trama) ele discorre com amargura e humor corrosivo sobre os obstáculos que precisou vencer, do início do projeto, em 1993, quando a ideia era simplesmente animar as tiras Piratas do Tiête, até a mudança de gênero (também sexual) de Laerte, que já não se sentia mais à vontade para adaptar o passado machista e tortuoso de seus personagens saqueadores e acabou turvando as águas do rio-esgoto Tietê, alterando, assim, completamente o curso de navegação do desenho animado.

Toda via do tumultuado tráfego n’A Cidade dos Piratas, no entanto, é bom frisar que, nesse ir e vir de piratas por tintas nunca antes navegadas, os roteiristas Rodrigo John, Laerte Coutinho, Thomas Créus e Otto Guerra não desembarcaram e tampouco desterram completamente os velhos piratas das tirinhas..., apenas atenuaram seu protagonismo. No noves fora da embarcação da discórdia, entre mortos e feridos, após um prólogo cruel, quem marca maior presença no enredo é o Capitão. Os demais aparecem em flashes e ou reconfigurados em outras personagens bem consistentes (político rancoroso, empresário enrustido, crossdresser etc), que soam como metáfora do nosso cotidiano (retrógrado) em busca do poder ou da felicidade.


Uma vez que a trama (com suas histórias paralelas) expõe um panorama intenso, embora íntimo e pessoal, do tumultuado processo fílmico do desenho animado, incluindo a separação profissional do diretor com a produtora Marta Machado e a discussão com a equipe de animadores, bem como o desnudamento de Larte (de certo modo já visto em Larte-se), é difícil classificar o gênero cinematográfico de A Cidade dos Piratas, com seu toque documental e biográfico, em meio aos traços uniformes de ficção e realidade.

Talvez, com a opção de costurar retalhos de várias narrativas (não necessariamente do universo dos Piratas do Tiête, mas sem perder a relevância) numa cidade-labirinto autofágica, onde reina um antropomórfico Minotauro, diria que A Cidade dos Piratas é uma animação híbrida em todos os sentidos. Cada um vai senti-la à sua maneira. Este é o papel da arte! Independente do que eu diga e ou do que o espectador verá na telona, a experiência do cinéfilo será sempre única. O que não quer dizer que não possa ser compartilhada e discutida com um público maior.


Enfim, com ou sem definição precisa de gênero, a provocativa animação A Cidade dos Piratas, de Otto Guerra (Rocky e Hudson: Os Caubóis Gays; Wood e Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’roll; Até que a Sbórnia nos Separe), tem a leveza e a sutileza de um rinoceronte numa loja de cristais finos. Portanto, esteja preparado mais para o desconforto do que para o riso (raríssimo), mesmo diante de cenas escatológicas. Se por um lado é tecnicamente irretocável, com suas sequências em preto e branco e ou coloridas, gags-cartuns animadas, excelente montagem (sem perder o ritmo e ou atropelar a narrativa, com a inserção das entrevistas de Laerte ao Roda Viva e Marília Gabriela, entre outros programas)..., por outro, a dublagem (principalmente de Marco Ricca) deixa a desejar. Às vezes é difícil entender as falas das personagens..., mas isso não impede saborear alguns diálogos inteligente e a poesia de Fernando Pessoa, bem como os desabafos de Laerte sobre a sua sexualidade (da adolescência à terceira idade).

Não é um filme de fácil digestão, pela quantidade de temas apresentados, mas deve encontrar um público adulto receptivo hoje, e amanhã, possivelmente um pesquisador interessado em nossos medos presentes. Como diz Laerte: O negrume do medo surge ao nos vermos sem a proteção de uma dor que possa ser curada. Estreia dia 31 de Outubro de 2019.


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Crítica: Coringa



C O R I N G A
por Joba Tridente

Advertência: Se você é um espectador que está ansioso para assistir à mais nova versão “biográfica” do Coringa, no cinema (que é onde deve ser visto), é bom esquecer tudo aquilo que você conhece e ou que pensa conhecer e ou, ainda, o que ouviu falar sobre o icônico arquiinimigo do Batman..., pois esta história de origem, sem o homem-morcego por perto, pode dar um nó “irreversível” no seu cérebro, principalmente se tiver coulrofobia (medo de palhaços).


Coringa (Joker, 2019), estrelado, ou melhor, incorporado com maestria por Joaquin Phoenix, sob direção minuciosa de Todd Phillips, traz uma leitura incômoda da personagem que, levada pelas circunstâncias e a esquizofrenia, passa de um palhaço lúdico, de sonho de criança ("Minha mãe sempre me diz para sorrir e fazer uma cara feliz. Ela me disse que eu tinha um propósito: trazer risos e alegria ao mundo"), a um palhaço amedrontador, de pesadelo (“Só o que eu tenho são pensamentos negativos.”), e que espectador algum vai querer encontrar pelas ruas do seu sono. Se, como cantou Caetano Veloso em Vaca Profana (1984), “De perto ninguém é normal.”, quanto mais nos aproximamos e tentamos decifrar este “novo” Coringa (ou Arthur Fleck, seu nome de batismo), mais enigmático e real ele nos parece no alto (ou no interior) de sua paranóia homicida (norte-americana?).


É impossível não sentir empatia pelo dedicado Arthur Fleck/Coringa, principalmente no primeiro ato ("Sou só eu, ou as pessoas estão ficando mais loucas lá fora?"), vivendo uma vida miserável, cuidando da mãe (Frances Conroy) enferma, enfrentando todo tipo de humilhação, na rua e no trabalho, e, entre um transtorno e outro, escrevendo seu show stand-up (a sua tábua de salvação), que sonha em apresentar no programa televisivo de Murray Franklin (Robert De Niro) e se tornar tão famoso quanto o seu ídolo (e quem sabe ser perdoado por suas falhas morais). Assim como..., em uma cidade cheia de nãos, aos menos favorecidos social e mentalmente, feito a caótica Gothan City, tomada por ratos e pelo lixo doméstico e humano..., é fácil entender a razão das suas ações e reações insanas, que vão aflorando no seu cotidiano perverso e crescendo rumo ao apoteótico terceiro ato.

Possivelmente, por causa da acentuada presença do astro De Niro, como apresentador de tv, os cinéfilos mais antigos veem na trama visceral de Coringa, em que a ficção ganha ares de realidade (contemporânea), referências aos filmes O Rei da Comédia (no que tange à fama a qualquer preço) e Taxi Driver (no que tange à justiça a qualquer preço), ambos de Martin Scorsese. Toda via das referências, porém, não me parece que estas reverências causem ruídos (ou demérito) na trama original, escrita por Scott Silver e Todd Phillips, que não muda o caráter de Arthur Fleck/Coringa, mas acentua o desequilíbrio mental do futuro vilão (vítima da sociedade?) idiossincrático. Ainda que conte com a presença dos Wayne, mais precisamente na figura de Thomas Wayne (Brett Cullen) que, por conta de um desfecho clássico, torna-se uma piada mortal, na visão do inconstante Coringa (com seu angustiante tique do riso), não deixa de ser uma história autônoma.


Enfim, não creio que Coringa, premiado com o Leão de Ouro, no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2019, seja a senha para qualquer maluco (psicopata ou não) se inspirar e sair fazendo justiça com as próprias mãos (se não falhar o dedo no gatilho), afinal, por mais semelhanças que tenha com a realidade (da impunidade) é uma ficção com base em elementos quadrinescos. O que não quer dizer que as HQs não possam refletir o cotidiano das terras do tio Sam e d’outras paragens terráqueas.

Então, considerando o fascinante estudo de personagem; a performance tão arrebatadora quão assustadora de Joaquin Phoenix; a perspicácia do roteiro que, mesmo com duas sequências previsíveis, magnetiza o espectador; a violência psicológica, que é muito mais perturbadora que a violência (explícita) física; a neurose de um mundo (real) comandado por criminosos; as apavorantes sequências dentro do metrô, com destaque para a derradeira, insuportavelmente opressiva; a válvula de escape do humor mínima; o cinismo à flor da pele e à luz dos olhos; a trilha sonora tensa; a cenografia (claustrofóbica); o vistoso figurino do Coringa; a sensacional fotografia detalhista de Lawrence Sher..., o filme Coringa vai fazer você querer menos realismo e mais ficção no cinema.


Portanto, se você tem coulrofobia (medo de palhaço), surtos psicóticos, toma remédio controlado (psicotrópico, tarja preta), é sugestionável, é criança, passe longe (muito longe!) de Coringa. Caso contrário, boa sessão! Pois, como disse o mestre Charles Chaplin: “A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe.” Será?!


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...