A retomada do
cinema brasileiro (de qualidade!) tem feito o espectador (re)conhecer e se (re)descobrir
parte de um país de contrastes e de confrontos socioculturais que volta a
mostrar a sua cara nas mais diversas leituras e linguagens. Viva o Brasil no
cinema de novo! No cinema que não tem vergonha de ser dramático, musical,
polêmico ou cômico..., sem perder a classe! É claro que tem aquele telepúblico que
(ao trocar a sala de casa pela do cinema) ainda prefere comédia padrão-lixo-tv,
só para falar mal. Mas..., quem sabe um dia ele acaba entrando numa sala errada
(eu vivo dizendo isso!) e dá de cara com um filme que realmente faça valer o
preço do ingresso, como o excelente Gonzaga
- De pai pra filho.
Dirigido por Breno Silveira (de Os 2 Filhos de Francisco), que lançou recentemente o comovente À Beira do Caminho
(inspirado em músicas de Roberto Carlos), Gonzaga
- De pai pra filho (Brasil, 2012), é a cinebiografia de dois ícones da musica
brasileira: Luiz Gonzaga do Nascimento (1912 - 1989), o Gonzagão, e Luiz
Gonzaga do Nascimento Junior (1945 - 1991), o Gonzaguinha. Cada um, a seu
tempo, viveu intensamente a sua vida (nos palcos e, às vezes, em família) numa
época (?) de mandos e desmandos (da sova ao cala-boca!). Uma história de amor e
de dúvidas sobre um pai e um filho separados e unidos pela música e pela vida
estradeira, que precisaram de décadas para curar mágoas e, finalmente se
conhecerem. Um filme onde o DNA é o que menos importa.
Para Breno
Silveira, que novamente se debruça sobre um assunto musical: Não são biografias que me interessam, mas
boas histórias, que emocionem e toquem em questões universais, sentimentos que
digam respeito a todas as pessoas. Eu gosto de falar de laços. Há sete anos, a
Marcia Braga, produtora, e a Maria Hernandez, idealizadora do projeto, me
procuraram com umas fitas cassetes gravadas pelo Gonzaguinha, em que ele
tentava resgatar a história do pai, através de 15 horas de conversa entre os
dois. Quando eu comecei a escutar, em cada fita eu percebia a emoção deles e ia
me emocionando também. Fiquei impressionado ao entender que pai e filho estavam
se conhecendo ali. Até que, numa das últimas fitas, o Gonzaguinha dizia: “Estou
entrando no sertão, sertão que era do meu pai. À minha direita tem uma lua...
Deve ser ele, o Velho Lua me olhando... Eu não conheci meu pai direito e,
amanhã, é o enterro dele”. Fiquei
emocionado e com vontade de contar essa história.
Livremente
inspirado pelas biografias de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha e pela obra Gonzaguinha e Gonzagão, Uma História
Brasileira, de Regina Echeverria, o filme se passa entre os anos 1920 e
1980. O roteiro de Patrícia Andrade traça um perfil abrangente (e comovente) da
carreira musical de Luiz Gonzaga e parte da carreira de Gonzaguinha, com
pinceladas significativas das suas conturbadas vidas em família, no sertão
(Exu-PE) e na favela (São Carlos-RJ). O grande foco da narrativa, que abre luz
para a carreira de Luiz Gonzaga, é a discussão da relação e o acerto de contas
entre o pai (inconstante), sonhando em conquistar o mundo, e o filho (amargurado),
querendo sumir no mundo.
O ótimo elenco traz
atores profissionais e não-atores em desempenhos fascinantes. Para viver os
músicos foram escolhidos seis atores: Land
Vieira (Gonzaga: 17/23); Chambinho
do Acordeon (Gonzaga: 27/50); Adélio
Lima (Gonzaga: 70); e Alison Santos
(Gonzaguinha: 10/12); Giancarlo Di
Tommaso (Gonzaguinha: 17/22); Júlio
Andrade (Gonzaguinha: 35/40). O sorriso iluminado da cada Gonzaga emociona,
mas a caracterização mais impressionante ficou com Júlio Andrade, perfeito como
Gonzaguinha.
Aliás, Júlio é
protagonista de um fato interessante que merece constar no folclore
cinematográfico. Segundo Breno: No
primeiro dia de testes, adentrou o estúdio um cara igual ao Gonzaguinha. Com
jeito arrogante, cigarro na mão, magro, barbudo, ele perguntou: “Posso
cantar?”. Eu disse que sim, claro. Para minha surpresa, a voz, o jeito,
tudo era igual ao do personagem. Achei que tinham levado um sósia para lá. Mas
quando dirigi a primeira cena, entendi que eu estava de frente para um grande
ator. Só depois fui saber que era o Júlio Andrade, que se caracterizou para ganhar
o papel. E segundo Andrade: Há cinco
anos eu conheci a Maria Hernandez, que me contou sobre o projeto do filme. Eu
tenho todos os discos do Gonzaguinha, queria muito fazer esse trabalho. Era um
fã querendo fazer seu ídolo. E eu comecei a falar isso para todo mundo, até que
meu nome chegou aos ouvidos dos produtores de elenco que me chamaram para o
teste. No dia, fui de barba, sobrancelha cortada, peruca, roupa anos 80 e
sandália. Eu não conhecia o Breno e cheguei lá com uma postura arrogante e ele
só me olhava e ria. Contei da minha história com a obra do Gonzaguinha e cantei
a música 'Feliz'. Dois dias depois, a Cibele Santa Cruz disse que o papel era
meu. Foi a maior alegria da minha vida.
No afinado
elenco também se destacam: Claudio
Jaborandy, encarnando o sofrido Januário,
pai de Gonzaga; Nanda Costa, como Odaléia Guedes, primeira esposa de
Gonzaga e mãe de Gonzaguinha e Roberta Gualda
no papel de Helena Cavalcanti, segunda
esposa de Gonzaga; a linda Cecília Dassi
faz uma graciosa Nazinha, primeira
namorada de Gonzaga, e Silvia Buarque
vive a sofrida e bondosa Dina,
madrinha-mãe de Gonzaguinha que, na companhia de Xavier Pinheiro (Luciano
Quirino), o primeiro parceiro de Gonzaga, criou o menino. Dina recebeu uma bela homenagem de
Gonzaguinha em: Com a perna no mundo
(Gonzaguinha da Vida, 1979): Acreditava
na vida/ Na alegria de ser/ Nas coisas do coração/ Nas mãos um muito fazer
(...) Sentava bem lá no alto/ Pivete
olhando a cidade/ Sentindo o cheiro do asfalto/ Desceu por necessidade
(...) O Dina/ Teu menino desceu o São
Carlos/ Pegou um sonho e partiu/ Pensava que era um guerreiro/ Com terras e
gente a conquistar/ Havia um fogo em seus olhos/ Um fogo de não se apagar
(...) Diz lá pra Dina que eu volto/ Que
seu guri não fugiu/ Só quis saber como é/ Qual é/ Perna no mundo sumiu (...)
E hoje/ Depois de tantas batalhas/ A lama
dos sapatos/ É a medalha/ Que ele tem pra mostrar (...) Passado/ É um pé no
chão e um sabiá/ Presente/ É a porta aberta/ E futuro é o que virá, mas, e daí?
(...) ô ô ô e á/ O moleque acabou de
chegar/ ô ô ô e á/ Nessa cama é que eu quero sonhar/ ô ô ô e á/ Amanhã bato a
perna no mundo/ ô ô ô e á/ É que o mundo é que é meu lugar.
Do baião ao
popular, Gonzaga - De pai pra filho traz
no seu repertório uma bela seleção da música (sem fronteira) dos dois
protagonistas. O pai gonzagueando o baião e o filho gonzagueando a canção. Ritmos
norteando gerações. O sentimento de protesto em dois pontos de vista. A seca na
sanfona retirante. A grita estudantil no violão. Duras realidades. Duas
realidades. As 15 músicas de Gonzaga (o único Rei do Baião) e as 3 de Gonzaguinha dispensam comentários.
Antes que o espectador fã de Gonzaguinha reclame que, de tantas pérolas do
compositor, apenas 3 fazem parte do colar melódico, não custa lembrar que o
grande foco da biografia cabe ao seu pai.
A superprodução, com excelente reconstituição de época, é muito bem emoldurada
pela exuberante fotografia de Adrian Teijido. Um filme para matar saudades e
preconceitos!
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