domingo, 20 de agosto de 2017

Crítica: Bingo: O Rei das Manhãs

Bingo: O Rei das Manhãs
por Joba Tridente

O palhaço é um personagem que tanto provoca risos quanto medo em crianças e adultos. A coulrofobia (medo de palhaços), que não escolhe público, é bem mais comum do que a maioria das pessoas imagina e ou admite. A arte do improviso praticada por palhaços, quando compartilhada com a plateia, geralmente apavora porque tira qualquer espectador (medroso ou não) da sua zona (poltrona) de conforto, pois não se sabe quem será escolhido para “saco de pancada” numa situação ridícula. Os mais tímidos (quanto mais inocente mais constrangimento!) entram em pânico, suam frio, só de pensar em ser vítima da imprevisibilidade de um ator de cara pintada e em trajes estranhos e de quem é impossível conhecer as reais intenções. É esse instinto que liga o alerta e faz com que muita gente fique longe de circos, teatros e até mesmo de festinha infantil. Nem mesmo a psicologia tem resposta para este medo antigo.

São muitas as histórias que invocam a presença deste ilustre personagem nas páginas literárias e de hq, nos palcos de teatro e ópera, nas telas de cinema e de tv, em situações nonsense, lúdicas, tragicômicas ou macabras. Raramente se conhece ou se reconhece o ator (ou atriz) por trás da máscara, em ação no palco ou no picadeiro, à vezes tentando cumprir a máxima que diz: mesmo quando quer chorar o palhaço é “obrigado” a fazer a plateia sorrir com palhaçadas ou humilhações.


Esse hahaha! todo é apenas para iniciar as minhas considerações ao filme Bingo: O Rei das Manhãs, de Daniel Rezende, que traz para a telona de cinema a história desveladora do artista Arlindo Barreto, que (fantasiado) foi um fenômeno de popularidade na telinha da tv, nos anos 1980, ao dar corpo e alma ao famoso palhaço Bozo e (por questões contratuais) obrigado a manter-se incógnito. Tudo o que o artista de teatro, cinema e tv mais desejava era ser reconhecido pelo seu trabalho, dar autógrafos, ser cumprimentado na rua, ser orgulho da família e principalmente do filho ("Você é o único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo!")... O sonho do ator Arlindo Barreto, que acreditou ter tirado a sorte grande ao ser selecionado para interpretar a versão tupiniquim do palhaço americano criado nos anos 1946, por Alan Livingston (1917-2009), acabou virando pesadelo quando, envolvido com drogas, ele perdeu o controle da sua vida e da sua arte. Arlindo foi o Bozo de 1984 a 1986 e chegou a dividir o palco/picadeiro e o personagem com o cantor Luis Ricardo Monteiro.


A biografia de Arlindo Barreto daria um documentário e tanto, assim como deu o desconcertante e melancólico artigo O Palhaço de Deus, de Raquel Freire Zangrandi para a edição 15 da Revista Piauí (2007), que despertou o interesse de Rezende pelo ilustre personagem. Para quem tem dificuldades com as entrelinhas, nunca é demais lembrar que Bingo: O Rei das Manhãs é “apenas” inspirado na vida de Barreto. Assim, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas e com fatos relevantes sobre os bastidores da televisão brasileira nos anos de 1980, terá sido mera "coincidência"..., ainda que qualquer espectador antenado detecte Bozo em Bingo/Augusto Mendes (Vladimir Brichta); os canais televisivos Rede Globo na prateada Mundial e SBT na iniciante TVP; a apresentadora Xuxa em Lulu; as atrizes Márcia de Windsor em Marta Mendes (Ana Lúcia Torre) e Angelina Muniz (Tainá Müller) em Angélica; a diretora do programa Bozo, Elisabete Locatelli, em Lúcia (Leandra Leal); o dono da marca Bozo, Larry Harmon, em Peter Olsen (Soren Hellerup); e, no rebolado, Emanuelle Araújo encarnando a única personagem que não precisou trocar de nome: Gretchen


A vida intensa (teatro, filmes pornográficos, tv, evangelização) e polêmica (drogas) de Arlindo Barreto, como pode ser “lida” na internet, é mote para um dramalhão piegas. Porém, em mãos habilidosas de Bolognesi e de Rezende, o que até então era espalhafatoso “virou ficção” lapidada com esmero e muito bem enquadrada, pelo fotógrafo Lula Carvalho, num drama tragicômico que conta os percalços da vida do ator Augusto Mendes (Brichta) em busca de fama e dinheiro.

Mendes, que é separado da atriz Angélica (Muniz), passa por dificuldades financeiras e se divide em cuidados para com o filho Gabriel (Cauã Martins) e a mãe Marta (Torre), vê a sua vida mudar drasticamente ao ser escolhido para o papel de Bingo, um palhaço americano, animador de auditório infantil, que será franqueado no Brasil pelo canal TVP. Toda via do sucesso, no entanto, quando maior a fama (anônima) e a grana, maior o seu afastamento da família, em busca de prazeres fáceis (drogas e mulheres). Porém, como tudo que sobe fácil pode cair com estardalhaço, um dia o destino colateral decide cobrar a conta..., ou o dízimo!


Bingo: O Rei das Manhãs é um filme corajoso e que não se pauta por nenhum exibicionismo visual..., recurso muito usado hoje em dia para encobrir falhas ou falta de roteiro. É intenso, direto e acertadamente amoral. Nota-se que Daniel Rezende ama a história que está contando. Assim como seus protagonistas (Brichta e Leal), acredita no argumento de perdição e ou de redenção dos seus personagens e deixa a narrativa fluir divertida e incômoda, na base do "a vida como ela é" e ou era nos ("perdidos") anos 1980. Não julga e (mestre!) sabe exatamente a hora certa de cortar as cenas para não ser atropelado pela pieguice grudenta do gênero. Pelos deuses da sétima arte, o que é aquela sequência do aniversário de Gabriel?


Daniel Rezende, premiado com o Bafta e indicado ao Oscar, em 2003, pela montagem de Cidade de Deus (2002), desta vez deixou o ofício de montador nas mãos, também experientes, de Marcio Hashimoto (será que teve muito trabalho para editar?) que entrega uma obra nada redundante. Elenco competente, com participação especialíssima do grande Domingos Montagner (1962-2016), na pele do palhaço Aparício, que dá aulas de palhaçada ao Augusto/Bingo; direção de arte admirável na reconstituição de época e curiosidades sonoras da “década perdida” fazem do espetacular (e por vezes ferino) Bingo: O Rei das Manhãs um dos melhores lançamentos cinematográficos do ano. Um filme que emociona e faz a gente pensar no quanto a vida é cheia de “pegadinha”! Uns se dão bem, outros recorrem ao Amém!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

2 comentários:

  1. Brilhante e lúcido comentário de quem realmente conhece cinema.
    Parabéns pela crítica!
    Arlindo Barreto

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    Respostas
    1. ..., Olá, Arlindo Barreto, quem honra tê-lo aqui. ..., Gratíssimo pela visita e considerações. ..., Muito sucesso na sua lida sagrada e ao belo filme. ..., Grande Abraço.

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