Bingo:
O Rei das Manhãs
por Joba Tridente
O palhaço é um personagem que tanto provoca risos quanto
medo em crianças e adultos. A coulrofobia (medo de palhaços), que não escolhe
público, é bem mais comum do que a maioria das pessoas imagina e ou admite. A
arte do improviso praticada por palhaços, quando compartilhada com a plateia,
geralmente apavora porque tira qualquer espectador (medroso ou não) da sua zona
(poltrona) de conforto, pois não se sabe quem será escolhido para “saco de
pancada” numa situação ridícula. Os mais tímidos (quanto mais inocente mais
constrangimento!) entram em pânico, suam frio, só de pensar em ser vítima da
imprevisibilidade de um ator de cara pintada e em trajes estranhos e de quem é
impossível conhecer as reais intenções. É esse instinto que liga o alerta e faz
com que muita gente fique longe de circos, teatros e até mesmo de festinha
infantil. Nem mesmo a psicologia tem resposta para este medo antigo.
São muitas as histórias que invocam a presença deste
ilustre personagem nas páginas literárias e de hq, nos palcos de teatro e
ópera, nas telas de cinema e de tv, em situações nonsense, lúdicas, tragicômicas
ou macabras. Raramente se conhece ou se reconhece o ator (ou atriz) por trás da
máscara, em ação no palco ou no picadeiro, à vezes tentando cumprir a máxima que
diz: mesmo quando quer chorar o palhaço é “obrigado” a fazer a plateia sorrir
com palhaçadas ou humilhações.
Esse hahaha! todo é apenas para iniciar as minhas
considerações ao filme Bingo: O Rei das
Manhãs, de Daniel Rezende, que
traz para a telona de cinema a história desveladora do artista Arlindo Barreto,
que (fantasiado) foi um fenômeno de popularidade na telinha da tv, nos anos
1980, ao dar corpo e alma ao famoso palhaço Bozo
e (por questões contratuais) obrigado a manter-se incógnito. Tudo o que o
artista de teatro, cinema e tv mais desejava era ser reconhecido pelo seu
trabalho, dar autógrafos, ser cumprimentado na rua, ser orgulho da família e
principalmente do filho ("Você é o
único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo!")... O sonho
do ator Arlindo Barreto, que
acreditou ter tirado a sorte grande ao ser selecionado para interpretar a
versão tupiniquim do palhaço americano criado nos anos 1946, por Alan
Livingston (1917-2009), acabou virando pesadelo quando, envolvido com
drogas, ele perdeu o controle da sua vida e da sua arte. Arlindo foi o Bozo
de 1984 a 1986 e chegou a dividir o palco/picadeiro e o personagem com o cantor
Luis Ricardo Monteiro.
A biografia de Arlindo Barreto daria um documentário
e tanto, assim como deu o desconcertante e melancólico artigo O Palhaço de
Deus, de Raquel Freire Zangrandi para a edição 15 da Revista Piauí (2007),
que despertou o interesse de Rezende pelo ilustre personagem. Para quem tem
dificuldades com as entrelinhas, nunca é demais lembrar que Bingo: O Rei das Manhãs é “apenas”
inspirado na vida de Barreto. Assim, qualquer semelhança com pessoas vivas ou
mortas e com fatos relevantes sobre os bastidores da televisão brasileira nos
anos de 1980, terá sido mera "coincidência"..., ainda que qualquer espectador
antenado detecte Bozo em Bingo/Augusto
Mendes (Vladimir Brichta); os
canais televisivos Rede Globo na prateada Mundial
e SBT na iniciante TVP; a apresentadora Xuxa em Lulu; as atrizes Márcia de Windsor em Marta Mendes (Ana Lúcia
Torre) e Angelina Muniz (Tainá
Müller) em Angélica; a diretora
do programa Bozo, Elisabete Locatelli, em Lúcia
(Leandra Leal); o dono da marca
Bozo, Larry Harmon, em Peter Olsen (Soren Hellerup); e, no rebolado, Emanuelle Araújo encarnando a única
personagem que não precisou trocar de nome: Gretchen.
A vida intensa (teatro, filmes pornográficos, tv,
evangelização) e polêmica (drogas) de Arlindo Barreto, como pode ser “lida” na
internet, é mote para um dramalhão piegas. Porém, em mãos habilidosas de
Bolognesi e de Rezende, o que até então era espalhafatoso “virou ficção”
lapidada com esmero e muito bem enquadrada, pelo fotógrafo Lula Carvalho, num
drama tragicômico que conta os percalços da vida do ator Augusto Mendes (Brichta) em busca de fama e dinheiro.
Mendes, que é separado da atriz Angélica (Muniz), passa por dificuldades
financeiras e se divide em cuidados para com
o filho Gabriel (Cauã Martins) e a mãe Marta
(Torre), vê a sua vida mudar drasticamente ao ser escolhido para o papel de Bingo, um palhaço americano, animador de
auditório infantil, que será franqueado no Brasil pelo canal TVP. Toda via do sucesso, no entanto, quando maior a fama (anônima) e a
grana, maior o seu afastamento da família, em busca de prazeres fáceis (drogas
e mulheres). Porém, como tudo que sobe fácil pode cair com estardalhaço, um dia
o destino colateral decide cobrar a conta..., ou o dízimo!
Bingo: O Rei
das Manhãs é um filme corajoso e que não se pauta por nenhum exibicionismo
visual..., recurso muito usado hoje em dia para encobrir falhas ou falta de
roteiro. É intenso, direto e acertadamente amoral. Nota-se que Daniel Rezende
ama a história que está contando. Assim como seus protagonistas
(Brichta e Leal), acredita no argumento de perdição e ou de redenção dos seus
personagens e deixa a narrativa fluir divertida e incômoda, na base do "a vida
como ela é" e ou era nos ("perdidos") anos 1980. Não julga e (mestre!) sabe exatamente a hora
certa de cortar as cenas para não ser atropelado pela pieguice grudenta do
gênero. Pelos deuses da sétima arte, o que é aquela sequência do aniversário de
Gabriel?
Daniel Rezende, premiado com o Bafta e indicado ao
Oscar, em 2003, pela montagem de Cidade
de Deus (2002), desta vez deixou o ofício de montador nas mãos, também
experientes, de Marcio Hashimoto (será que teve muito trabalho para editar?) que
entrega uma obra nada redundante. Elenco competente, com participação
especialíssima do grande Domingos
Montagner (1962-2016), na pele do palhaço Aparício, que dá aulas de palhaçada ao Augusto/Bingo; direção de arte admirável na reconstituição de época e
curiosidades sonoras da “década perdida” fazem do espetacular (e por vezes
ferino) Bingo: O Rei das Manhãs um
dos melhores lançamentos cinematográficos do ano. Um filme que emociona e faz a
gente pensar no quanto a vida é cheia de “pegadinha”! Uns se dão bem, outros
recorrem ao Amém!
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
Brilhante e lúcido comentário de quem realmente conhece cinema.
ResponderExcluirParabéns pela crítica!
Arlindo Barreto
..., Olá, Arlindo Barreto, quem honra tê-lo aqui. ..., Gratíssimo pela visita e considerações. ..., Muito sucesso na sua lida sagrada e ao belo filme. ..., Grande Abraço.
Excluir