segunda-feira, 29 de março de 2021

Crítica: A Despedida

 


A DESPEDIDA

por Joba Tridente

No universo artístico, conforme o tratamento recebido, a enfermidade, em geral, resulta em curiosa reflexão (sobre a fragilidade da vida) para o espectador saudável, e ou (até) a conformidade para o doente. Quanto mais grave a doença explorada, maiores os percalços do realizador da obra (cinematográfica, teatral, literária, plástica). Pois, dependo da posologia de sentimento, ela pode ter sucesso, ir pra encubação do amanhã ou ser totalmente ignorada até pelos hipocondríacos.

O cinema já falou de alcoolismo, surdez, cegueira, mudez, tabagismo, virose, depressão, psicopatia, câncer, Alzheimer, aids, autismo, esclerose... E também já expôs o drama de quem sofre de doença degenerativa e opta pela eutanásia (Amor; O Escafandro e a Borboleta; Mar Adentro; Menina de Ouro). Mas há sempre alguma variante, no glossário da medicina, a ser consultada. Não exatamente a variante da doença, mas a variante humana, a do doente atingido por uma enfermidade degenerativa e como ele se relaciona com a moléstia que aos poucos o deixa incapacitado, vegetando, apodrecendo numa cama e totalmente dependente de algum cuidador da família e ou não...


Em tempo de perdas humanas imensuráveis, ocasionadas pela pestilência do coronavírus, está chegando simultaneamente às salas de cinema e ao streaming uma história que, pela abordagem da eutanásia, há de emocionar e incomodar muita gente..., dos simpatizantes aos opositores: A Despedida. Dirigida pelo britânico Roger Michell (Notting Hill; Chá com as Damas), a narrativa acompanha os preparativos de Lily (Susan Sarandon) e de seu marido Paul (Sam Neill) para um grande final de semana em família. Lily, que sofre com a evolução da esclerose lateral amiotrófica e decidiu submeter-se a um suicídio assistido, espera se despedir da vida e da família em grande estilo. É a sua vontade, enquanto tem condições físicas e mentais de decisão, que espera ser respeitada por todos ao seu redor. Ela quer morrer em paz, se possível. Porém, suas filhas, a controladora Jennifer (Kate Winslet) - casada com Michael (Rainn Wilson) e mãe do adolescente Jonathan (Anson Boon), e a frágil Anna (Mia Wasikowska) - que mantém relação homoafetiva com Chris (Bex Taylor-Klaus), divergem sobre o desejo de eutanásia da mãe. Ou seja, como em toda via de comemoração, na vida ou na arte, o espectador há que se preparar para os indefectíveis atropelos de última hora: confissões avassaladoras, acusações fraternas, mágoas, mea-culpa etc. Quem também se junta ao grupo nesse momento de emoções conflitantes, e acaba prisioneira das discussões alheias, é Liz (Lindsay Duncan), a melhor amiga de Lily.


Cada cultura tem a sua forma de lidar com a morte. Algumas a veem como algo natural, e até comemoram a passagem de um ente querido, outras a escandalizam de tal forma que suas almas ficam penando por séculos. Quando se trata de suicídio e ou de eutanásia, então, a grita de religiosos e familiares egoístas é ensurdecedora. Bom senso e respeito aos mortos, nesta hora, nem pensar. O ódio daqueles que preferem ver um parente apodrecendo numa cama, gastando o que não tem com tratamento sem eficácia, em vez de morto, é maior que a lógica da decência. A discussão do tema, no filme em questão, é, digamos, mais civilizada.

A Despedida (Blackbird, 2019) é a versão melodramática anglo-americana (ao gosto hollywoodiano) para o premiado drama dinamarquês Stille Hjerte (Coração Mudo, 2014), do diretor Bille August (Pelle, o ConquistadorAs Melhores Intenções)..., aproveitando, inclusive, com algumas discutíveis atualizações, o mesmo roteiro do também dinamarquês Christian Torpe. Quem assistiu ao Coração Mudo não ficará indiferente à esta (desnecessária) releitura, com suas idiossincrasias anglo-americanas contemporâneas. Pois, ainda que razoavelmente parecidas, há sempre algo na bela cenografia, nos ótimos diálogos, na história crível, nas escolhas da direção, a se comparar nas duas produções.

Em Coração Mudo, o drama frio, direto e praticamente sem trilha sonora, espreme-se pela casa aconchegante..., cujo clima de inquietação, que beira o claustrofóbico, relando em um e outro visitante, a faz parecer pequena para os convidados, sempre “amontoados” com suas dores e mágoas e a forçada cordialidade. Em A Despedida, o melodrama espalha-se pela imensa casa, embalado por trilha sonora chorosa, alcança todos os recantos de sua beleza gélida e individualiza os convidados egocentrados em seus traumas, como se parte da decoração, distanciando a cordialidade. Entre o conter e o ostentar, o melancólico perde espaço para o melodrama e a recente tendência cinematográfica (acrescentando nada ao enredo) assume as “novas” relações amorosas: sai o casal (Sanne/Dennis) e entra o par lésbico (Hoje em dia é chique ter uma lésbica na família!) Anna/Chris..., fazendo soar falsa a reação puritana ao álcool e ao fumo à mesa da última ceia anglo-americana. Deste modo, a impressão é a de que a (desnecessária) mexida de Christian Torpe, em seu próprio roteiro, tenha sido tão somente para tornar a trama mais palatável (adocicada) ao gosto americano, também alheio às legendas. Cortou aqui, acrescentou acolá, mas o importante é que não mudou a essência: o desejo de eutanásia de Lily e o acerto de contas familiares. O motivo que pode mudar o rumo dos acontecimentos, nas duas produções, não é dos mais críveis, mas acaba funcionando no arremate (na versão dinamarquesa o epílogo é mais interessante). Em um o suporte é a razão. No outro, a emoção. Em ambos, a preocupação em questionar o tema com ternura e humanidade..., e longe de qualquer resquício moralizante.


Enfim, A Despedida tem uma história tocante e, independente da oportuna discussão, certamente vai levar parte do público às lágrimas. O elenco é excelente e cada um tem seu tempo performático. A produção é irretocável, a direção correta e o assunto adulto desvela-se respeitosamente, de forma a manter a atenção e o senso crítico do espectador. Clichês à parte, embora tenha sequências tensas e até de confrontos (convencionais), não é um filme pesado ou sequer deprimente. Quanto ao título original Blackbird, não vi referência e ou sequer metáfora relacionada à vida e ou à morte. Seria interessante que obras com foco na eutanásia servissem de mola propulsora para que a sociedade (ainda) retrógada deixasse o egoísmo de lado e, pensando na dignidade, na dor do outro, discutisse o pertencimento do próprio corpo.

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.

*Estreia prevista para 31.03.2021, nas salas de cinema e no Now, iTunes, Google Play, Youtube Filmes, Vivo Play e Sky Play.

 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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