terça-feira, 9 de março de 2021

Crítica: Proibido Nascer no Paraíso


 PROIBIDO NASCER NO PARAÍSO

por Joba Tridente

A busca pela justiça e o resgate da cidadania é o foco de dois pertinentes documentários que serão lançados brevemente: América Armada (em plataformas de streaming: 11.03.2021 no NOW, Vivo Play, Oi Play e, em 25.04.2021, na Globo News) e Proibido Nascer no Paraíso (ainda sem data).

Não sei se o que acontece em Fernando de Noronha é comum em outros lugares privilegiados pela natureza, mas já maculados pela gana humana, onde o nascimento de um nativo pode colocar em risco os interesses capitalistas de um imigrante (colonizador) em terras alheias. Algo mais próximo do que você verá em Proibido Nascer no Paraíso, assisti no documentário belga “Ma'Ohi Nui” (Bélgica, 2018), de Annick Ghijzelings, exibido na 9ª Mostra Ecofalante, em agosto de 2020: “Por trinta anos, no final do século XX, o povo do Taiti sobreviveu a dezenas de testes nucleares do governo francês em sua costa. Desde que o país foi colonizado, em 1880, as explosões deixaram o povo taitiano vasculhando os restos de suas ilhas e cultura, em um esforço para manter vivos seus conhecimentos tradicionais. O filme oferece um vislumbre poético do Taiti contemporâneo e das lutas coloniais que seu povo ainda enfrenta, enquanto resiste para sustentar seu modo de vida.” Porém, em se tratando do Brasil, com o tempo, até os atos mais insanos acabam parecendo normais.


Na primeira vez em que esteve em Fernando de Noronha e ouviu que era proibido o nascimento de crianças na ilha, a documentarista Joana Nin (Visita Íntima e Cativas) ficou tão surpresa que decidiu mergulhar fundo na questão e o que trouxe à tona é estarrecedor. Ali, as mulheres grávidas são obrigadas a ir para Recife (com as despesas pagas) algumas semanas antes do parto, pois o único hospital em Noronha deixou de realizar procedimentos obstetrícios em 2004. “Conversando com pessoas da comunidade, entendi que, quem vive lá, há muitos anos, acredita que os nascimentos foram suspensos para evitar que estes bebês reivindiquem direitos no futuro. Como as terras são públicas, os terrenos não podem ser oficialmente vendidos. Eles são concedidos por meio de um Termo de Permissão de Uso – TPU, um documento muitíssimo cobiçado. E nativos têm direito a solicitar a inclusão de seu nome numa lista do programa de habitação local, em busca do mesmo espaço disputado por empresários do turismo.”..., observa Nin.

Para mostrar tamanho absurdo, Joana Nin acompanha o dia-a-dia de Ione, Harlene e Babalu, três gestantes cujas famílias vivem em Fernando de Noronha há décadas, mas que serão obrigadas (mesmo!) a viajar para Recife, para terem seus filhos com toda segurança e atendimento médico. Como salienta Joana: “Fernando de Noronha, um lugar dentro do Brasil com uma lógica própria, não é um município, é um distrito estadual de Pernambuco, o administrador é um cargo nomeado pelo governador, assim como todo pessoal de apoio. A única instância local com eleição democrática é o Conselho Distrital, que não tem função legislativa. A ilha até hoje funciona, de certa forma, como um presídio ou um quartel, a população é tutelada. Tudo é controlado pelo “Palácio”, como os moradores chamam a sede da administração na ilha. E assim é com a política habitacional, moradores permanentes – com mais de 10 anos de ilha – podem pôr o nome em uma lista e esperar pelo recebimento de um terreno, ou uma casa, já que oficialmente não há compra e venda de imóveis.


É impossível não se comover com a saga destas mulheres que gostariam de ter os seus filhos em Fernando de Noronha, sem precisar deixar seus familiares e afazeres, mas cuja vontade acaba vencida pela burocracia (que cumpre ordens) e pela chantagem emocional (braba!) em ligações administrativas diárias: “Nós nos preocupamos com a criança que está na sua barriga.” Até mesmo o Conselho Tutelar é acionado para convencer as grávidas de que o melhor a se fazer é pegar o avião para o continente, desembarcar no Recife e ficar à disposição do corpo médico até uns dois meses após o nascimento do bebê. Isso tudo, para segurança da criança. Como desabafa Babalu, a mais inconformada com toda a situação em torno da sua gravidez e a mais decidia a ter o seu filho em Noronha: “As mulheres perdem o direito sobre seus corpos quando engravidam e seus filhos o direito de reivindicar a permissão de uso da terra nativa de seus pais, pois, no registro, constará que o nascimento se deu (por desejo da mãe) na capital pernambucana.” E Nin complementa: “A mulher sequer é considerada, parece ser propriedade de terceiros. Isso tem a ver com um movimento iniciado na década de 1940, quando a gestação passou a ser um tema médico, equiparado a uma doença, e não mais um assunto feminino familiar, como era até então.”

Quando a narrativa busca dados além da “gravidez do estado”, um retrato mais íntimo e nada paradisíaco da Ilha de Fernando de Noronha se desvela. Acompanhando a sua história, a estratégica posição geográfica e as atuais condições sociopolíticas, de um lado, vemos moradores vivendo precariamente em casas velhas que necessitam de reformas urgentes, mas que são negadas pela administração local, que cria todo tipo de empecilho (na esperança de que cansados, os nativos deixem a ilha?)..., e de outro, pousadas luxuosas com licença para reformar e expandir. O próprio hospital da ilha não está equipado para atendimentos graves. Ou seja, nativo ou turista, se o caso for grave e não der tempo de pegar um avião para o continente, é melhor se conformar com a morte certa. Portanto, nada de ficar doente no Paraíso. Joana Nin arremata: “Isso faz sentido numa ilha de turismo aventura que fica a 1h ou mais de voo do continente? Não faz. Um local com arrecadação própria, inclusive. É preciso pensar melhor esta estrutura, e também em como acolher nativas que querem parir perto de casa, um desejo mais do que legítimo. Um dos objetivos do filme é fazer o turista entender que a ele também faltará atendimento emergencial, caso precise. É triste pensar isso, mas visitantes tem muito mais poder de barganha do que as mulheres da comunidade.”


Proibido Nascer no Paraíso tem um roteiro sólido e imparcial, que vai muito além do tema (direito à gravidez e à cidadania) ao dar espaço para outras vozes se manifestarem sobre o cotidiano na famosa ilha que, segundo Babalu, ainda vai acabar virando uma “Ilha de Caras”, só para milionários. Ainda que explicite em primeiro plano a angústia dessas mulheres que (mesmo sabendo das “normas”) optaram ou não pela gravidez e, por isso “pagam o preço”, Nin não julga, apenas ouve, registra, constata, apura os fatos e espera fazer eco capaz de sensibilizar (?) autoridades e turistas cinéfilos: O número de gestantes é pequeno para a abertura de uma maternidade, e nem todas as grávidas querem ficar. Mas, não seria possível manter uma sala de parto – como existiu até 2004 - com atendimento obstétrico e uma emergência geral melhor aparelhada? Como aceitar que nativas não possam ter filhos nativos? É revelador sobre o quanto ainda teremos que lutar para fazer valer nossos direitos, para ver respeitados nossos desejos. Espero que o filme contribua para essa reflexão e ajude, de alguma forma, em um processo de transformação desta realidade. Para que gestar e parir sejam atos mais respeitosos com as mulheres no futuro.”


Enfim, Proibido Nascer no Paraíso é um documentário surpreendente A direção é segura e a pesquisa histórica, política e social é excelente. Os personagens reais desta crônica absurda não são meras cabeças falantes (tão comum em documentários), mas gente de corpo inteiro que, “cumprindo ordens” e ou se submetendo a “elas”, não se intimida diante da câmera nem para se posicionar contrária aos ditames (de duas medidas?) da Ilha de Fernando de Noronha. O roteiro passa longe da pieguice em busca de lacrimejo e a trilha sonora não incomoda. A bela fotografia, enquadra os contrastes e os confrontos daquele magnífico arquipélago (ao alcance de poucos, nativos ou não) de uma forma que embevece e perturba o espectador atento aos pequenos prazeres e aos grandes dramas humanos..., mas sem confundir (o que é mais importante) seu senso crítico. E suas metáforas são pérolas a rolar pelas praias..., valiosas o suficiente para ressignificar o “Nascer no Paraíso”.  

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.

 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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