terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Crítica: O Homem que Surpreendeu a Todos

 


O HOMEM QUE SURPREENDEU A TODOS

por Joba Tridente 

A cultura da oralidade é algo que sempre surpreende a quem a cultiva. Quanto mais se acredita nativa, mais se descobre resquícios e variações dela na ponta da língua de outros povos. É o que acontece com uma divertida história folclórica brasileira (?), às vezes resumida como piada, de um homem que decide enganar a Morte, para permanecer vivo por muito mais tempo além do combinado, servindo de base para a releitura dramática, beirando o trágico, no perturbador filme russo O Homem que Surpreendeu a Todos. Ou seja, a origem dessa história se perdeu no conto a conto dos imigrantes mundo afora. Cada povo com sua variação. 

O Homem que Surpreendeu a Todos, roteirizado e dirigido por Natasha Merkulova e Aleksey Chupov, é daqueles dramas de suspense que, mesmo sinalizando a previsibilidade, vai te dar um arrepio gelado na coluna, tamanha a frieza, a ambiguidade e a fúria de algumas sequências. No enredo muito bem desenvolvido por Merkulova e Chupov, com resquícios do excelente Deliverance (1972), de John Boorman, e do conto do Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perraut, acompanhamos a resignação do destemido guarda-florestal da taiga siberiana Egor (Evgeniy Tsyganov, num papel dificílimo), ao receber a notícia de que está com uma doença terminal e a sua corajosa mudança de personalidade ao colocar em prática a idéia de um conto sobre um pato que se disfarçou para não ser encontrado pela Morte. 



Simplificado assim, o roteiro, parece uma história boba ou tosca, mas acredite, ela é tão atordoante quanto comovente. Egor é um cara querido na cidade, o pai amável e o bom marido que deixa tudo arranjado para que a família não passe necessidades após a sua morte. Mas, quando casualmente ouve a história do pato que se cobriu de lama para enganar a morte, fica tão tocado por ela que decide provar a sua veracidade disfarçando-se em outra pessoa para ser poupado. Em seu desespero para enganar a Morte, porém, ao decidir por uma mudança tão radical e sem comunicar algo a quem quer que seja, não pensa nas consequências, que podem ser drásticas tanto para ele quanto para a sua família. 

Mais calado que um túmulo, para que a Morte não saiba que ele é o querido guarda-florestal, boa gente, condenado à morte por uma doença, Egor mantém-se firme no seu disfarce enfrentando todo tipo de censura e de humilhação e o diagnóstico é um soco na boca do estômago. Vale ressaltar que, ainda que tenha por base um conto folclórico divertido, o intenso drama O Homem que Surpreendeu a Todos não é um filme para crianças. Pode até ser considerado um conto de pavor e (muita) dor, mas é dirigido ao público adulto. Uma narrativa incômoda, carregada no suspense e com sequências violentíssimas (jamais gratuitas), para reflexão sobre o desdobramento dos preconceitos que vêm à tona quando menos se espera e de quem menos se espera. O silêncio do cidadão que pensa e age fora casinha padronizada, incomoda e amplia o preconceito daqueles falastrões que vivem encasulados. 

Nota: O filme O Homem que Surpreendeu a Todos será exibido no 1º. FESTIVAL DE CINEMA RUSSO - Russian Film Festival (10 a 30 de dezembro de 2020) que acontece online e gratuitamente na plataforma de streaming Spcine Play.


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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