quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Crítica: O Francês

 


O FRANCÊS

por Joba Tridente 

Sabe aqueles filmes que você começa a assistir meio assim-assim e quando se dá conta está tão enredado pela narrativa que não consegue nem piscar? Então, o filme russo O Francês (Француз, 2019), roteirizado e dirigido por Andrei Smirnov, é desse gênero. A história, que se passa em 1957 (no auge da “desestalinização”), é centrada no estudante Pierre Durand (Anton Rival), membro do Partido Comunista Francês e a favor do colonialismo francês na Argélia, que vai a Moscou para um estágio na Universidade Estatal..., mas o seu objetivo é encontrar o pai, Tatishchev (Aleksandr Baluev, que rouba a cena e o filme), um oficial do exército branco, que foi preso no final dos anos 1930. 

Logo na chegada, o insosso Pierre conhece o engajado fotógrafo Valeriy Uspensky (Evgeniy Tkachuk) e Kira Galkina (Evguenya Obraztsova), bailarina do Teatro Bolshoi, por quem se apaixona (relação pouco convincente, já que o casal não tem a menor química). Na companhia dos dois amigos e de alguns estudantes, com quem divide o quarto no pensionato, aos poucos, ele mergulha na vida cultural oficial e underground de Moscou, e vai descobrindo a cruel realidade por trás da cortina de ferro: censura, espionagem, corrupção, prisão, vigilância de qualquer cidadão (mesmo estrangeiro). Assim, tateando aqui e acolá, entre sonhadores poetas e suas poesias clandestinas, resignados pintores decorativos (com o realismo socialista), bailarinos obediente, música e muita bebida (óbvio!), constrangedoras visitas oficiais e entrevistas com pessoas idosas (o melhor elenco, pela naturalidade) que poderiam ter conhecido o seu pai e talvez saibam do seu paradeiro, o francês é apresentado ao desencanto russo e à confusão (ou seria profusão?) de ideologias (stalinismo, marxismo, trotskismo, leninismo), bem como a fatos importantes (e horripilantes) do país desde a revolução russa de 1917. 


O encanto de O Francês, além do importante texto nas entrelinhas, está no painel que traça da URSS de 1917 a 1957. O drama histórico é repleto de diálogos fascinantes, repercutindo, por exemplo, de forma clara (sem precisar desenhar) a filosofia política russa e a encantadora matemática do ateísmo (nunca ouvi ou li algo parecido). O envolvimento de Pierre com seus novos amigos, desiludidos com os rumos políticos e culturais do país é, sem dúvida, muito interessante. Mas fica em segundo plano, comparado à naturalidade das narrativas cheias de humor e dor, dos personagens mais velhos (elenco excelente). Cujo ponto alto é o magnífico encontro de Pierre com Tatishchev. A sequência toda é simplesmente antológica. A interpretação de Aleksandr Baluev é tão impressionante que você irá desejar um filme único com seu imenso personagem, e não apenas aquele resumo de vida (de uns 20 minutos) sobre o seu “desaparecimento”. 

Enfim, considerando a qualidade do roteiro; a direção eficaz; o elenco; a interpretação notável de Aleksandr Baluev (Tatishchev); a inclusão apenas de música incidental e ausência total nos momentos chaves; a reconstituição de época; cenografia e fotografia de excelência..., ao final de O Francês, esta belíssima homenagem ao jornalista, escritor, ativista dos Direitos Humanos e dissidente russo Alexander Ginzburg (1936-2002), certamente você precisará de alguns minutos para se reconectar com a nossa realidade... Não tem escapatória. Pelo menos por enquanto, por aqui! 

Nota: O filme O Francês, que recebeu os prêmios: Russian Guild of Film Critics 2020 – Melhor Ator Coadjuvante (Aleksandr Baluev) e Melhor Atriz Coadjuvante (Natalya Tenyakova), será exibido no 1º. FESTIVAL DE CINEMA RUSSO - Russian Film Festival (10 a 30 de dezembro de 2020) que acontece online e gratuitamente na plataforma de streaming Spcine Play.

P.S: ..., este belíssimo filme (sem pieguices, sem chatices, sem extremismos), me impressionou tanto (principalmente na sequência final, com Aleksandr Baluev, roubando a cena e o filme) que nem sei se o que escrevi aqui foi uma resenha e ou uma redundância de elogios! Adoro quando um filme não subestima a inteligência do espectador e compartilha reflexões de dar nó!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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