quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Crítica: Ela


Nos anos 1970, o genial jornalista e escritor TT Catalão, autor de frases antológicas, lapidou aquela que, para mim, é a mais desconcertante: “cada um cada vez mais cada um”, que adoro citar, conforme o contexto. Aqui ela está mais atual que nunca.

Entre as décadas de 1970/80/90, as mídias portáteis chegaram, facilitando a vida de muitos profissionais (jornalistas, músicos, escritores)..., e fazendo a alegria, principalmente, dos jovens. Muito antes da febre dos “i”, houve a dos walkmans (anos 1980) e dos cd players (anos 1990). Um tempo em que as pessoas, com suas mídias portáteis, andavam “ensimesmadas” pelas ruas, “solitárias” com seus enormes fones de ouvido (os headphones também já diminuíram de tamanho, de quase desaparecer, e agora são enormes novamente). Na TV, matérias falavam da novidade, dizendo que os jovens não estavam falando sozinhos, mas cantarolando a música que ouviam etc.

Hoje, a maioria das pessoas anda por aí conectada aos seus smartphones, gps, mp, “i”, redes...,  sem prestar atenção em quem ou o quê está ao seu redor, inclusive provocando acidentes fatais. Tem até quem converse, via celular, com um “amigo” ao lado. Não há sigilo do que é dito e ouvido ou sequer respeito ao ouvido alheio. A cada dia mais isolado (mais cada um!), o cidadão tropeça em bits, se segura em bytes, se apoia em wireless para abocanhar o Wi-Fi dentro e fora de casa. O mundo ao redor é mero detalhe para um instantâneo logo esquecido numa rede social de amigos que nem se conhecem ao vivo e a cores. Amigos que não são amigos, apenas fazem número no álbum. O upgrade de toda e qualquer tecnologia se faz cada vez mais urgente e o usuário se acredita cada vez mais obsoleto.


Ela (Her, EUA, 2013), escrito e dirigido primorosamente por Spike Jonze, é um palpável conto futurista. A cidade de Los Angeles expandiu para o “alto e avante”, feito a nova Xangai. O que não interessava ao futuro desapareceu (carros, pobreza) em prol do conforto, da beleza, da segurança (inclusive) tecnológica que conecta a todos. Um lugar onde a TI está em constante evolução, o sexo a dois ainda é viável, todavia, quem não quer se comprometer fisicamente, ou discutir a relação, pode optar naturalmente pelo sexo virtual.

É nesse amanhã asséptico, num gabinete estilo anos 1950/1960, que Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) trabalha, ditando bonitas cartas a um computador. São cartas sentimentais, encomendadas por clientes (sem inspiração) querendo impressionar o destinatário. Theodore se veste bem, calças de cintura ata (tendência retrô) e belas camisas. Suas elogiadas cartas sugerem um sujeito amoroso, tranquilo, de bem com a vida na paradisíaca Los Angeles. E é..., pelo menos enquanto está no trabalho. No seu apartamento agradável, inconformado com o fim de um longo relacionamento, é tomado pela melancolia, que nem a paisagem, games de última geração ou “alucinado” sexo virtual aplacam.

Theodore não gosta de se sentir solitário, mas tenta se acostumar ao vazio. Um dia ele instala em seu PC um avançado sistema operacional intuitivo, controlado por voz, que evolui conforme a interação com o usuário, e, ao formatar o programa, conhece a sofisticada inteligência artificial Samantha (Scarlett Johansson). Amigável e confidente, sempre disponível para troca de ideias, ela organiza seus arquivos e também palpita na sua vida pessoal. Logo se tornam interdependentes e nem mesmo suas plataformas diferentes são empecilhos para viverem uma paixão avassaladora. O irônico é que SamanthaTheodore através da câmera de um minidispositivo, a ele cabe apenas a imaginação para lhe dar corpo. Quem não conhece Johansson também vai dar asas à imaginação nessa complexa (?) relação entre o concreto e o abstrato.


Ela fascina e apavora com a realidade que sugere: conectividade e solidão (cada um cada vez mais cada um!), ou vice-versa. Conectado, o cidadão se isola. Solitário, o cidadão se conecta. Uma conexão desconexa! Na utópica LA de Jonze cabem todas as estranhezas do amor e do sexo, até mesmo entre humanos e softwares..., também sujeitos às intempéries de qualquer romance. O amor do excêntrico casal descompassa nossos sentidos, não porque foge às regras, mas porque dispensa o anonimato. O amor é imprevisível. Apaixonar é conectar-se a algo ou alguém indiferente à razão.  Ela é uma fantasia provocativa: - e se?!; - por que não?!

Narrativa envolvente, texto afiado, direção soberba e Joaquin Phoenix, em excepcional momento, dando sabor pra lá de especial a um roteiro de sutilezas. O ator, que na maior parte da trama contracena apenas com uma voz em um dispositivo, dá um show de interpretação e expressividade. A vontade é a de aplaudir as cenas. A performance vocal de Scarlett não é fácil, mas ela encontra um curioso tom para Samantha, num misto de mistério e de femme fatale. A produção (fotografia, arte, figurino) é puro capricho e a trilha da genial banda de indie rock canadense Arcade Fire pode surpreender os fãs.

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