Nos anos 1970, o genial jornalista e escritor TT
Catalão, autor de frases antológicas, lapidou aquela que, para mim, é a mais
desconcertante: “cada um cada vez mais
cada um”, que adoro citar, conforme o contexto. Aqui ela está mais atual que
nunca.
Entre as décadas de 1970/80/90, as mídias
portáteis chegaram, facilitando a vida de muitos profissionais (jornalistas,
músicos, escritores)..., e fazendo a alegria, principalmente, dos jovens. Muito
antes da febre dos “i”, houve a dos walkmans (anos 1980) e dos cd players (anos 1990). Um tempo em que
as pessoas, com suas mídias portáteis, andavam “ensimesmadas” pelas ruas, “solitárias”
com seus enormes fones de ouvido (os headphones também já diminuíram de
tamanho, de quase desaparecer, e agora são enormes novamente). Na TV, matérias
falavam da novidade, dizendo que os jovens não estavam falando sozinhos, mas
cantarolando a música que ouviam etc.
Hoje, a maioria das pessoas anda por aí conectada
aos seus smartphones, gps, mp,
“i”, redes..., sem prestar atenção em quem ou o quê está ao
seu redor, inclusive provocando acidentes fatais. Tem até quem converse, via celular,
com um “amigo” ao lado. Não há sigilo do que é dito e ouvido ou sequer respeito
ao ouvido alheio. A cada dia mais isolado (mais cada um!), o cidadão tropeça em
bits, se segura em bytes, se apoia em wireless para abocanhar o Wi-Fi
dentro e fora de casa. O mundo ao redor é mero detalhe para um instantâneo
logo esquecido numa rede social de amigos que nem se conhecem ao vivo e a
cores. Amigos que não são amigos, apenas fazem número no álbum. O upgrade de toda e qualquer tecnologia se
faz cada vez mais urgente e o usuário se acredita cada vez mais obsoleto.
Ela (Her, EUA, 2013), escrito e dirigido
primorosamente por Spike Jonze, é um
palpável conto futurista. A cidade de Los Angeles expandiu para o “alto e
avante”, feito a nova Xangai. O que não interessava ao futuro desapareceu (carros,
pobreza) em prol do conforto, da beleza, da segurança (inclusive) tecnológica
que conecta a todos. Um lugar onde a TI está em constante evolução, o sexo a
dois ainda é viável, todavia, quem não quer se comprometer fisicamente, ou
discutir a relação, pode optar naturalmente pelo sexo virtual.
É nesse amanhã asséptico, num gabinete estilo anos
1950/1960, que Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) trabalha, ditando bonitas
cartas a um computador. São cartas sentimentais, encomendadas por clientes (sem
inspiração) querendo impressionar o destinatário. Theodore se veste bem, calças de cintura ata (tendência retrô) e
belas camisas. Suas elogiadas cartas sugerem um sujeito amoroso, tranquilo, de
bem com a vida na paradisíaca Los Angeles. E é..., pelo menos enquanto está no trabalho.
No seu apartamento agradável, inconformado com o fim de um longo relacionamento,
é tomado pela melancolia, que nem a paisagem, games de última geração ou “alucinado” sexo virtual aplacam.
Theodore não
gosta de se sentir solitário, mas tenta se acostumar ao vazio. Um dia ele instala
em seu PC um avançado sistema operacional intuitivo, controlado por voz, que
evolui conforme a interação com o usuário, e, ao formatar o programa, conhece a
sofisticada inteligência artificial Samantha
(Scarlett Johansson). Amigável e
confidente, sempre disponível para troca de ideias, ela organiza seus arquivos e
também palpita na sua vida pessoal. Logo se tornam interdependentes e nem mesmo
suas plataformas diferentes são empecilhos para viverem uma paixão
avassaladora. O irônico é que Samantha
vê Theodore através da câmera de um
minidispositivo, a ele cabe apenas a imaginação para lhe dar corpo. Quem não
conhece Johansson também vai dar asas
à imaginação nessa complexa (?) relação entre o concreto e o abstrato.
Ela fascina e apavora com a realidade que sugere: conectividade e
solidão (cada um cada vez mais cada um!),
ou vice-versa. Conectado, o cidadão se isola. Solitário, o cidadão se conecta. Uma
conexão desconexa! Na utópica LA de Jonze cabem todas as estranhezas do amor e
do sexo, até mesmo entre humanos e softwares...,
também sujeitos às intempéries de qualquer romance. O amor do excêntrico casal descompassa
nossos sentidos, não porque foge às regras, mas porque dispensa o anonimato. O amor
é imprevisível. Apaixonar é conectar-se a algo ou alguém indiferente à razão. Ela é uma fantasia provocativa: - e se?!; - por que não?!
Narrativa envolvente, texto afiado,
direção soberba e Joaquin Phoenix, em excepcional momento, dando sabor pra lá
de especial a um roteiro de sutilezas. O ator, que na maior parte da trama contracena
apenas com uma voz em um dispositivo, dá um show de interpretação e
expressividade. A vontade é a de aplaudir as cenas. A performance vocal de Scarlett
não é fácil, mas ela encontra um curioso tom para Samantha, num misto de mistério e de femme fatale. A produção (fotografia, arte, figurino) é puro
capricho e a trilha da genial banda de indie rock canadense Arcade Fire pode
surpreender os fãs.
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