Quando escrevi sobre o filme Bezerra
de Menezes – O Diário de Um Espírito (2010), em um dos parágrafos citei a
estrofe de um poema do escritor inglês William Wordsworth (1770 - 1850), sobre
a morte do Deus Pã: “Oxalá um pagão ainda
eu fosse/ Por velhas ilusões acalentado/ A paisagem seria bem mais doce/ E o
mundo muito menos desolado.” (p.185 d’O Livro de Ouro da Mitologia -
Thomas Bulfinch, tradução de David Jardim Júnior - Edições de Ouro - 1967). Diz
uma lenda que quando Cristo nasceu, um grito de dor ecoou por toda a
Grécia: - Deus Pã está morto! Pã
era o Deus da Natureza, amante da música e inventor da sírinx. Com Pã morreu a
inocência e com o cristianismo nasceu a “abnegação” ampla, geral e irrestrita,
ao custo (ainda) de muitas vidas. Com o cristianismo acabou a alegria de viver
e começou o martírio e a culpa sem fim. O cristão paga tanto pecado (desde
antes de nascer) que nem sabe mais pelo que está pagando..., até parece a carga
tributária brasileira. E ai de quem reclamar!”
Sempre que me chega alguma obra desvelando as
abomináveis caixas pretas do catolicinismo, digo, catolicismo, me lembro desse
poema, que conheci ainda na adolescência e, ai, ai, ai, o mundo católico, sob o
jugo do seu Deus Cruel, me parece ainda mais anticristão, mais desnaturado. Philomena (Philomena, UK, 2013),
dirigido pelo britânico Stephen Frears,
trata de fatos relacionados à vida da irlandesa Philomena Lee (Sophie
Kennedy Clark) que, em 1952, grávida e solteira aos 18 anos, foi “internada”
no Abbey Ross Sean, Convento dirigido pelas Irmãs dos Sagrados Corações de
Jesus e Maria, no Condado de Tipperary, na Irlanda, onde nasceu o seu filho Anthony, que lhe foi tirado (para
adoção) três anos depois. Sob a tutela das malevolentes irmãs que, por certo,
desconheciam a passagem da mitologia judaico-cristã que reza que Jesus era
filho de mãe solteira, ela (que sabia nada sobre sexo) desceu ao Inferno
Católico Apostólico Romano (e Irlandês) para expiar o seu pecado da gravidez
prematura. Alguns anos após “deixou” o Convento, se casou e, em segredo, buscou
pelo filho. Quando este fez 50 anos, Philomena
(Judi Dench) decidiu revelar o seu
“pecaminoso” passado à filha e, com a ajuda do jornalista Martin Sixmith (Steve Coogan),
foi aos EUA em busca de respostas, mas era na Irlanda que estava o sórdido
desfecho de seu drama.
A partir do ponto de vista do jornalista Sixmith, com seu pavio curto e humor
ácido, Frears desenha um impressionante painel do poder do catolicismo na
Irlanda dos anos 1950 (pecado: nascimento de Antony) aos 2000 (perdão: busca por Antony) e o papel vergonhoso dos conventos-maternidade. Não creio
que tais práticas desumanas (como as que se vê na tela) se dessem só ali, já
que em todos os lugares do mundo onde a igreja católica estendeu seus
tentáculos a sexualidade ainda é tabu e mulheres e meninas, vítimas de estupro,
continuam martirizadas. Na verdade as mulheres são martirizadas não apenas pela
igreja, basta ver o papel que lhes cabe na publicidade. Para alguns segmentos
da sociedade elas continuam sendo nada, ou mero bibelô remendado. Tomara que um
dia, cientes, elas deixem de acatar tamanha desordem.
O drama de Philomena,
cujo capítulo da natividade é digno de um conto de Charles Dickens (1812-1870),
é daqueles de “cortar o coração”. Porém a narrativa dribla a pieguice e trata o
assunto com seriedade e indignação que a trama pede e não como dramalhão
novelesco com clichês de ocasião para versões tipo “baseado em história real”. A
tensão é aliviada nos diálogos, mais precisamente nas reflexivas conversas ou
embates sobre religião, sexualidade, ética, compaixão, entre a cristã Philomena e o ateu Sixmith. O texto, evidentemente, não é hilário, mas provoca riso,
pela inesperada franqueza da condescendente mãe e do jornalista cético, ao se
sentirem mais familiarizados também com o caso.
Se é nos pequenos frascos que se encontram os melhores
perfumes, é na sutileza do enredo, ali nas entrelinhas do subtexto (?), que se
encontra o grande mote de Philomena:
tolerância. O tema em pauta (natividade/família/religião/patrimônio) está no átrio,
com perturbadores retratos côncavos e convexos das “filhas de Maria”, todavia, é
na lavanderia que se desenrola a discussão (subjetiva?) mais significativa: os
limites da tolerância (na religião e na mídia). O que significa o (gesto de)
perdão para quem perdoa e ou é perdoado? Magnanimidade ou humilhação? Até onde
a mídia pode ir, sem ser intrusiva, em sua oportuna exploração de “matéria de interesse”
público? Até acabar o financiamento ou até o próximo escândalo? O sim e ou o
não é muito relativo, quando não se é sujeito da questão.
O comovente Philomena,
com bom transito pelo mistério, road movie, denúncia social, vai além do mero interesse
humano em tragédias alheias. Ele chega aos espectadores no mesmo cálice (ou:
cale-se!) de hóstias. A absorção e ou o engasgo vai depender do nível de fé e
senso de justiça de cada um. Em meio a tantos outros escândalos, aos séculos de
mazelas (!) em nome do Todo Poderoso, talvez não provoque a mínima marola nos
sacramentos católicos, mas pode desvendar o fiéis mais carolas. Ao menos dentro
da sala de cinema!
Inspirado no livro The Lost Child of Philomena Lee (2009), de Martin Sixmith, o
roteiro de Steve Coogan e Jeff Pope, ainda que com algumas
liberdades dramáticas (sem desvirtuar a essência do acontecido) é coeso. Vale
lembrar que a obra de Sixmith (anteriormente pensada para veiculação em um tabloide),
além de desvelar o repugnante esquema de adoção praticado pela igreja católica
(sob a proteção do arcebispo John Charles McQuaid e do governo irlandês, nos
anos 1950/60), abriu caminho para que, na Irlanda, milhares de mães e filhos, separados
nesse período, possam um dia se reencontrar. Judi Dench e Steve Coogan, em desempenhos
notáveis, dão veracidade e humanidade aos seus personagens em busca de paz
interior e ou reordenação profissional.
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