terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Crítica: Clube de Compra Dallas


Um assunto recorrente em Hollywood é o da dependência química ou psíquica. O comércio de fármacos é tão promissor quanto o da advocacia. Se bem que onde há discussão sobre uso e ou abuso ou efeitos colaterais de medicamentos, há advogado no meio. Geralmente, um e outro resultam em obras, no mínimo, curiosas.

Em Clube de Compra Dallas o remédio receitado é o AZT, em seu primórdio, e em segunda opção, os produtos similares ou genéricos. Na década de 1980, a SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) e ou AIDS era considerada doença (maldição!) gay, pelos governos, igrejas, entidades médicas e heterossexuais convictos. Mas a síndrome, desconhecendo o (pré)conceito e indiferente à preferência sexual, espalhava-se pelo mundo, contaminando muitos incautos (via sexual, transfusão de sangue, seringas infectadas).


Nessa época a imprensa explorava, com sofreguidão, ao que chamava de praga gay, expondo imagens chocantes e deprimentes de pacientes aidéticos, principalmente de celebridades em estado terminal. No Brasil, abusando da criatividade, assaltantes usavam, como arma, seringas carregadas com algo viscoso, dizendo ser sangue contaminado. Qualquer indivíduo magro (demais) e ou gripado (demais), e ou tossindo (demais) era suspeito, era isolado até mesmo pela própria família.

As pessoas “saudáveis”, inclusive médicos (que se vestiam como se fossem a uma guerra química e não ao atendimento a um paciente), temiam conversar, tocar em aidéticos. Os infectados, em seu martírio, sequer recebiam um beijo, um abraço, um aperto de mão dos amigos mais próximos. Conforme aumentava o conhecimento da síndrome e especulava-se o seu ponto de origem (África), apareciam campanhas (na mídia) “ensinando” como se pegava AIDS: compartilhando seringa, sexo sem preservativo..., e como não se pegava AIDS: abraçando, compartilhando talheres etc. Eram dias cinzentos, o mundo gay continuou gay, mas não tão funny.


Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club, EUA, 2013), dirigido com fervor por Jean-Marc Vallée, é um drama inspirado na biografia de Ron Woodroof (Matthew McConaughey), um eletricista texano, heterossexual e homofóbico convicto, que, em 1985, diagnosticado com AIDS e a “garantia” de um mês de vida, decide que não vai se deixar morrer tão fácil. HIV positivo, amaldiçoado pelos amigos e não incluído no programa de teste do “milagroso” AZT, ele foi à luta. Começou a estudar o assunto e descobriu novas formas de tratamento, fora dos EUA. Desempregado e precisando de grana para bancar os remédios, acabou se associando ao transexual Rayon (Jared Leto) e criando o Clube de Compra Dallas, cujos sócios pagavam uma taxa anual para receber a droga “salvadora” que ele traficava do México e de outros países.

Clube de Compras Dallas é um filme denso e que, por vezes, soa datado. Não que se tenha esgotado o assunto AIDS e ou as controvérsias sobre os efeitos colaterais do AZT (e a sua milionária patente). Porém, hoje, além do acesso facilitado aos novos remédios, os aidéticos têm uma sobrevida muito maior. A visão trágica de corpos e mentes definhando, ficou um pouco lá atrás.


Os excelentes McConaughey e Leto, literalmente no físico de seus complexos personagens, fazem um contraponto interessante, rico em nuances, que vai além do clichê dupla antagônica. Ainda que suas personagens tenham muitos nós a desatar, talvez pela aparente linearidade de Rayon (Leto), centrada na sua muito bem definida sexualidade, quem cresce em cena é o rude e controverso Ron (McConaughey), principalmente a um passo da domesticação. Egoísta, mas longe de ser antipático, ao compreender o processo da sua tragédia pessoal, refletida na dor e marginalização do outro (avesso a ele) Ron ganha a simpatia dos espectadores. Na fatalidade da doença a moral iguala os “imorais”. 

Clube de Compra Dallas, baseado no roteiro escrito em 1990 por Craig Borten, é um ótimo drama, incômodo, é verdade, mas ainda pertinente. A narrativa (um pouco extensa) varia feito as cactáceas, as mais espinhentas produzem as mais belas flores. Vallée evita as armadilhas do dramalhão choramingas aliviando a tensão do tema (via-sacra) com bons diálogos e alguns breves momentos de humor leve. O assunto, evidentemente, não é de agrado de todos os públicos, mas quem se deixar seduzir e arriscar a dar uma boa olhada, além de perturbadora viagem no tempo, vai se embasbacar com as apaixonantes atuações de McConaughey e Leto.

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