por Joba Tridente
Tem filmes que fazem história questionando a história
sociopolítica e religiosa em uma data específica e (mesmo assim) não ficam
datados..., principalmente quando, no viés do caminho trôpego da “humanidade”,
em um mundo governado por extremistas e populações submissas, confusas e
perdidas em ideologias (como no Brasil, por exemplo), os atos abomináveis da
história de ontem semeiam o caos na história de hoje. Rever o drama espanhol A Língua das Mariposas (La Lengua de las Mariposas, 1999), do
diretor José Luis Cuerda (1947-2020)
é ao mesmo tempo sentir prazer, pelo reencontro com a personagem de um
professor, mestre na arte de educar, e sentir terrível frio na espinha, ao
relembrar seu destino cruel na trama.
“A
liberdade estimula o espírito dos homens fortes”
A Língua das
Mariposas, com roteiro de Cuerda,
Rafael Azcona e Manuel Rivas, baseado nos contos La Lengua de las Mariposas, Carmiña
e Un Saxo na Néboa, de Rivas, costura
com zelo exemplar..., através do olhar curioso do menino Moncho (Manuel Lozano), de
oito anos, aluno do dedicado professor dom
Gregório (Fernando F. Gomes)...,
os últimos dias do governo de Manuel Azaña (1936/1939) e os primeiros da Guerra
Civil Espanhola (1936/1939), num vilarejo da Galiza. O garoto é filho de Ramón (Gonzalo Martín Uriarte), um alfaiate ateu com ideias republicanas,
e de Rosa (Uxía Blanco), uma mãe católica e do lar, e irmão do adolescente Andrés (Alexis de los Santos), aspirante
a músico. A família leva uma vida interiorana tranquila..., até que as nuvens
escuras da Guerra Civil e do Estado Totalitário começam fazer sombra no lugar e
Rosa, temendo consequências para quem
ousa pensar social, política e religiosamente diferente, obriga a sua família a
tomar uma atitude inacreditável. Num lugarejo onde todos se conhecem, de um dia
para outro todos os moradores passam a se temer, sem saber quem é amigo e quem
é inimigo ideológico perante o Estado e Deus.
Ao retratar o dia a dia do pequeno Moncho, que vai aprendendo a viver e a
assimilar o mundo ao seu redor conforme ouve, lê e vê em casa, na escola, na
rua, na igreja da sua aldeia pobre..., cuja discussão política, religiosa e
educacional, entre aldeões católicos (nacionalistas) e ateus (republicanos), parte
do jocoso para a animosidade de um futuro nada promissor, José Luis Cuerda (Amanece,
que no es Poco, 1988) realiza uma obra-prima (atemporal) que nos faz
refletir tanto sobre a pedagogia (que versa sobre a liberdade e a repressão
escolar) quanto, em seu perturbador arremate, sobre as armadilhas do medo que acovarda
e impede reações de defesa diante do autoritarismo.
“Os
livros são como um lar.
Nos
livros nossos sonhos se refugiam para não morrer de frio.”
Principalmente por causa da didática (liberdade para
aprender) empregada na educação escolar, pelo mestre dom Gregório, o filme A Língua
das Mariposas ainda é fruto de estudos e debates saudáveis sobre a relação
professor e aluno, aula em sala fechada e aula em campo aberto (natureza).
Porém, o que mais impressiona ao (re)assistir a este drama contundente, que vai
do bucolismo ao melancólico num piscar de olhos, é se dar conta de quanto o ato
final da narrativa (22 anos depois ou 82) assemelha-se aos obscuros dias de
hoje, aqui na “América Latrina” (e em outros países do terceiro mundo), onde
governos extremistas, que flertam com o fascismo e o nazifascismo, apostam na
ignorância educacional, na intervenção evangélica, na negação do conhecimento,
da ciência, do desenvolvimento humano, para manter cidadãos asseclas sob seu
jugo e ameaçando ou prendendo (sem julgamento) quem é contrário a tal
insanidade: tudo pelo poder!
A Língua
das Mariposas, com suas pequenas crônicas de costume e de resiliência de
gente humilde (sempre disposta a rever seu conceito de sobrevivência) diante
das mudanças sociopolíticas e religiosas e ou de atrocidades do (seu) mundo, é
um filme sublime (e subliminar)..., daqueles que, a cada (re)visita, sempre nos
surpreendem com as metáforas que se atualizam conforme o (des)governo da
ocasião. Elenco brilhante, direção irretocável, músicas regionais deliciosas,
cenografia campestre convidativa, tecnicamente exemplar... e com epílogo demolidor
que fará você pensar e pensar e pensar muito sobre a intenção e o gesto verbal!
O espetacular A
Língua da Mariposa está em exibição no Festival Volta ao Mundo: Espanha,
do streaming Petra Belas Artes à La Carte.
NOTA: As considerações acima são pessoais e,
portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de
carteirinha.
Joba
Tridente: O
primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros
videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em
35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e
coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder,
2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
Nenhum comentário:
Postar um comentário