quarta-feira, 9 de junho de 2021

Crítica: A Língua das Mariposas


A LÍNGUA DAS MARIPOSAS

por Joba Tridente 

Tem filmes que fazem história questionando a história sociopolítica e religiosa em uma data específica e (mesmo assim) não ficam datados..., principalmente quando, no viés do caminho trôpego da “humanidade”, em um mundo governado por extremistas e populações submissas, confusas e perdidas em ideologias (como no Brasil, por exemplo), os atos abomináveis da história de ontem semeiam o caos na história de hoje. Rever o drama espanhol A Língua das Mariposas (La Lengua de las Mariposas, 1999), do diretor José Luis Cuerda (1947-2020) é ao mesmo tempo sentir prazer, pelo reencontro com a personagem de um professor, mestre na arte de educar, e sentir terrível frio na espinha, ao relembrar seu destino cruel na trama. 

A liberdade estimula o espírito dos homens fortes 


A Língua das Mariposas, com roteiro de Cuerda, Rafael Azcona e Manuel Rivas, baseado nos contos La Lengua de las Mariposas, Carmiña e Un Saxo na Néboa, de Rivas, costura com zelo exemplar..., através do olhar curioso do menino Moncho (Manuel Lozano), de oito anos, aluno do dedicado professor dom Gregório (Fernando F. Gomes)..., os últimos dias do governo de Manuel Azaña (1936/1939) e os primeiros da Guerra Civil Espanhola (1936/1939), num vilarejo da Galiza. O garoto é filho de Ramón (Gonzalo Martín Uriarte), um alfaiate ateu com ideias republicanas, e de Rosa (Uxía Blanco), uma mãe católica e do lar, e irmão do adolescente Andrés (Alexis de los Santos), aspirante a músico. A família leva uma vida interiorana tranquila..., até que as nuvens escuras da Guerra Civil e do Estado Totalitário começam fazer sombra no lugar e Rosa, temendo consequências para quem ousa pensar social, política e religiosamente diferente, obriga a sua família a tomar uma atitude inacreditável. Num lugarejo onde todos se conhecem, de um dia para outro todos os moradores passam a se temer, sem saber quem é amigo e quem é inimigo ideológico perante o Estado e Deus. 


Ao retratar o dia a dia do pequeno Moncho, que vai aprendendo a viver e a assimilar o mundo ao seu redor conforme ouve, lê e vê em casa, na escola, na rua, na igreja da sua aldeia pobre..., cuja discussão política, religiosa e educacional, entre aldeões católicos (nacionalistas) e ateus (republicanos), parte do jocoso para a animosidade de um futuro nada promissor, José Luis Cuerda (Amanece, que no es Poco, 1988) realiza uma obra-prima (atemporal) que nos faz refletir tanto sobre a pedagogia (que versa sobre a liberdade e a repressão escolar) quanto, em seu perturbador arremate, sobre as armadilhas do medo que acovarda e impede reações de defesa diante do autoritarismo.   

Os livros são como um lar.

Nos livros nossos sonhos se refugiam para não morrer de frio. 


Principalmente por causa da didática (liberdade para aprender) empregada na educação escolar, pelo mestre dom Gregório, o filme A Língua das Mariposas ainda é fruto de estudos e debates saudáveis sobre a relação professor e aluno, aula em sala fechada e aula em campo aberto (natureza). Porém, o que mais impressiona ao (re)assistir a este drama contundente, que vai do bucolismo ao melancólico num piscar de olhos, é se dar conta de quanto o ato final da narrativa (22 anos depois ou 82) assemelha-se aos obscuros dias de hoje, aqui na “América Latrina” (e em outros países do terceiro mundo), onde governos extremistas, que flertam com o fascismo e o nazifascismo, apostam na ignorância educacional, na intervenção evangélica, na negação do conhecimento, da ciência, do desenvolvimento humano, para manter cidadãos asseclas sob seu jugo e ameaçando ou prendendo (sem julgamento) quem é contrário a tal insanidade: tudo pelo poder! 


A Língua das Mariposas, com suas pequenas crônicas de costume e de resiliência de gente humilde (sempre disposta a rever seu conceito de sobrevivência) diante das mudanças sociopolíticas e religiosas e ou de atrocidades do (seu) mundo, é um filme sublime (e subliminar)..., daqueles que, a cada (re)visita, sempre nos surpreendem com as metáforas que se atualizam conforme o (des)governo da ocasião. Elenco brilhante, direção irretocável, músicas regionais deliciosas, cenografia campestre convidativa, tecnicamente exemplar... e com epílogo demolidor que fará você pensar e pensar e pensar muito sobre a intenção e o gesto verbal!   

O espetacular A Língua da Mariposa está em exibição no Festival Volta ao Mundo: Espanha, do streaming Petra Belas Artes à La Carte

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...