terça-feira, 15 de junho de 2021

Crítica: A Boa Esposa

A BOA ESPOSA

por Joba Tridente 

Hoje em dia, por mais que se ressalte as conquistas das mulheres no predominante universo macho-falocrata, sabe-se que (por mais competência, conhecimento, preparação que tenham) ainda são muitas a barreiras a serem quebradas para se alcançar uma desejável sociedade igualitária em todo o mundo. A cada dia, mais e mais se desvela a participação milenar da mulher (ocultada pelo homem) na história cultural da “humanidade”. Qual será a face da mulher nas enciclopédias do amanhã? Certamente muito mais respeitável do que aquela que a representava aprisionada no Manual Ilustrado da Boa Esposa, divulgado nos anos 1950 e 1960 (e facilmente encontrado na internet), com normas absurdas, determinadas (é claro) por homens, sobre o papel (submisso) da mulher na sociedade e principalmente no lar (doce lar)..., inspirado em cartilhas dos séculos 19 e 20. 

Não bastassem os tais manuais e ou cartilhas, as famílias de “posse” ainda matriculavam suas filhas nos Cursos de Prendas Domésticas, oferecidos por institutos de educação paralela, que se incumbiam de domesticar as garotas para bem servirem seus maridos. Na França dos anos 1960 as escolas preparatórias de futuras esposas ainda prosperavam. Ao menos até 1967, ano escolhido para passar a limpo a trama de A Boa Esposa (La bonne épouse, 2019), do diretor francês Martin Provost (Séraphine, Violette), que desenvolveu o roteiro em parceria com Séverine Werba. 


Situada em Bitche, na Alsácia, a narrativa acompanha a rotina de dezoito alunas adolescentes da Escola de Prendas Domésticas, dirigida pelo lascivo Robert Van der Beck (François Berléand), marido de Paulette Van der Beck (Juliette Binoche) que, ao lado da sua cunhada solteirona Gilberte Van der Beck (Yolande Moreau) e da austera freira Marie-Thérèse (Noémie Lvovsky), tendo por base os sete mandamentos (ou sete pilares) do guia para se tornar uma dona de casa exemplar, prepara as garotas para o casamento..., que é o destino que lhes cabe naquele lugar provinciano. Bem, nem todas as garotas concordam com seus destinos arranjados pelos pais e, se possível, o instinto as fará ensaiar seus próprios voos curtos ou longos para escapar da enfadonha vida de boa esposa. O que não é fácil, pois, foram educadas para a subserviência doméstica. 


O foco de Paulette, Gilberte e Marie-Thérèse é a formação rígida das garotas (arte culinária, bordado, etiqueta), porém, com a morte repentina de Robert, elas descobrem que estão afundadas em dívidas deixadas pelo péssimo administrador. Para evitar a falência, a viúva Paulette, que entende nada de finanças, decide ir até o banco negociar a dívida e, para sua surpresa, o gerente é André Grunvald (Édouard Baer), seu grande amor da juventude e que ela acreditava ter morrido na guerra. A partir daí, a recatada viúva Van der Beck vai ter de lidar com sentimentos contraditórios (viver da memória do marido morto e ou se entregar a uma grande paixão?). É óbvio que os sete pilares da boa esposa vão ser abalados..., mas, será que ficarão em pé com os ventos que sopram forte de Paris, trazendo na quentura dos protestos as reinvindicações sociopolíticas do mês Maio de 1968? 


A Boa Esposa é um filme cujo enredo tangencia a comédia (sem graça), o drama (sem peso) e o romance (forçado). A história é curiosa (ainda que datada) e talvez resultasse melhor num documentário e ou drama intenso com final apoteótico..., mas, no gênero inclassificável em que se encontra, ao falar de opressão doméstica (que ainda subsiste por aí), de desejo sexual, de libido, de carência afetiva, de repressão familiar no cenário feminino, deve encontrar bom diálogo com as mulheres. Se bem que, por conta do material antigo (Guia Ilustrado da Boa Esposa) que o inspirou, talvez seja apreciado (também por elas) mais como uma curiosidade histórica. Pois, conforme a gente situa a mulher no ciclo evolutivo da “humanidade”, nota que muitas questões (rasas e ou em aberto), no roteiro de Provost, atravancam a narrativa frágil e confusa. A facilidade com que os “problemas” são resolvidos seria risível (se fosse uma boa comédia), mas falta humor, ironia. Uma situação de suicídio juvenil, por exemplo, não passa de um “oh!”. E tem nada a ver com o fato de uma mulher frígida, uma solteirona e uma freira orientarem suas pupilas sobre sexualidade, procriação, casamento, prendas domésticas, nos anos 1960, numa cidadezinha onde as informações da capital e do mundo chegam via rádio de pilha e jornal. É como se um pedaço da trama tivesse ficado na mesa de edição e o filme fosse apenas a ilustração de uma cartilha. Talvez seja apenas isso! 


Enfim, a sensação é a de que o panorama geral oscila. O chute no pau da barraca (na esperança do novo amanhecer), a descoberta tardia de mulheres geniais que fizeram história (por que tão poucas?) e não foram estudadas em sala de aula, soa artificial, desbotado. Parece que a citação de seus nomes (por que de tão poucas?) na canção (da independência feminina) é apenas para não estragar a coreografia (ou será para mostrar que num estalar de dedos alunas e professoras viraram mulheres cultas, bem informadas e revolucionárias?). A tomada de consciência de Paulette chega ser ridícula. Então basta uma mulher vestir calças compridas (a sua bunda fica bem torneada nestas calças) para conquistar a liberdade e se igualar aos homens (que usam calça comprida)? Basta mesmo um homem saber cozinhar e cuidar da casa para acabar com as guerras conjugais? O amor perdoa até as medidas tolas do apaixonado gerente do banco? No troca-troca de avental ou de vestidos por calças, a impressão é a de que o enredo de pouca substância, previsível, pontilhado de clichês (de situação) e contradições (sociais) subestima e muito o publico. Desde que se pense a respeito do feminismo sessentista (?), evidentemente. Caso contrário, ainda que distante, A Boa Esposa satisfaz o alvo. No bom elenco se destacam as premiadas Yolande Moreau e Noémie Lvovsky. 

A estreia de A Boa Esposa, exibido no Festival Varilux de Cinema, em dezembro de 2020, está prevista para 17.06.2021, nas salas de cinema. 

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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