A FANTÁSTICA VIAGEM DE MARONA
por Joba Tridente
(links: texto em laranja)
Eu sou de um tempo em que cachorro ou cão era
cachorro e ou cão..., e gato era gato. Dava-se nome a eles, que viviam por ali,
soltos no quintal e ou perambulando pelas ruas e telhados. Eram animais que
comiam o que seus donos comiam. Sou filho do interior. Hoje, cachorro ou cão e
gato, entre outros “animais de estimação” que vivem em lar “humano”, são
chamados de “pets”, tratados como
filhos, usam roupas e comem ração artificial com sabor artificial. Ah, o estrangeirismo
moldando vidas subdesenvolvidas...
O cinema já contou histórias de cães de toda espécie
e assunto nunca faltou. Até a morte (e reencarnação) foi explorada. Já na
prancheta do desenho animado, os roteiros capricham mesmo é na comédia, no nonsense, no humor negro, no pastelão. O
drama fica meio de lado ou escamoteado. A ação e a aventura sempre dão o tom.
Animações tematizando a morte, no momento, lembro do primeiro Todos os Cães Merecem o Céu (1989), de
Don Bluth. Tal lembrança tem a ver com a estreia, dia 18 de junho, em Super Lançamento, no
serviço de streaming Petra Belas Artes À La
Carte, da premiada animação francesa A
Fantástica Viagem de Marona (L'extraordinaire
Voyage de Marona, 2019), da diretora romena Anca Damian.
..., dói
menos dormir.
Merecedor dos prêmios de Melhor Filme de Animação, do Festival Internacional de Cinema de
Animação de Bucheon (2019); do Prêmio do
Público de Filme de longa-metragem, do Festival Internacional de Cinema de
Gijón (2019); do Prêmio especial do júri
para os críticos de cinema de Dublin, do Festival Internacional de Cinema
de Dublin (2020); de Filme de
longa-metragem de animação - Grande Prêmio, do Tokyo Anime Award (2020)...,
A Fantástica Viagem de Marona acompanha
as comoventes lembranças de uma cadelinha que é atropelada e, enquanto agoniza,
relembra a sua vida como se fosse um filme biográfico. Conforme mergulhamos em
suas memórias caninas, somos logo arrebatados pela fascinante narrativa que desvela
o quanto ela é graciosa, é esperta e entende a linguagem e os sentimentos
contraditórios dos “humanos” bem mais que os “humanos”.
Filha de um relacionamento relâmpago entre uma “cadela
comum” e um “cão de raça”, ao nascer ela recebeu o nome de Nove, dado por sua mãe, que nomeou cada um dos nove filhotes pela
ordem de nascimento. Como é comum aos cães de raça indefinida, foi abandonada
ainda nova e, entre afagos e rejeições, conviveu com três donos distintos: o
artista de rua e acrobata Manole, que
lhe deu o nome de Ana; o generoso
construtor Istvan, que a chamava de Sara; a garotinha Solange, que a chamou de Marona.
Com cada um deles conheceu momentos de alegria (no acolhimento) e de tristeza
(na separação).
Não bastasse a deliciosa arte coloridíssima, que
mistura técnicas (manuais e digitais) de animação e brinca com traços
psicodélicos (surreais), como se desenhados e recortados por crianças bem
imaginativas e que remetem ao adorável desenho animado Yellow Submarine (1968), de George Dunning..., o filme A Fantástica Viagem de Marona surpreende
também pela qualidade do roteiro de Anghel Damian, que não subestima a inteligência
dos espectadores (de qualquer idade). Se já não é fácil falar de situações de
abandono, de fome, de morte (em dramas “humanos”), para um público adulto,
imagine (em dramas envolvendo “animais de estimação”) para um público variado,
incluindo criança, sem apelar para a pieguice.
Seu texto/conteúdo potente, bastante verossímil, é
capaz de tocar fundo até quem não gosta de “animal de estimação”. Porque, das
entrelinhas entre o verbo e a imagem, sobressai a metáfora (inconsciente?) da nossa
própria realidade social, que a cada segundo marginaliza mais e mais pessoas.
Mendigos, drogados, sem tetos (de estimação) atendidos em momentos de euforia
solidária e depois relegados à própria sorte no contexto capital. Claro, é um
subtexto perceptível ou não (pelos espectadores)..., mas que faz a gente pensar
naqueles (“humanos” ou “animais”) que cativamos em momentos de carência afetiva
e depois mudamos de assunto.
Enfim, se busca um entretenimento de qualidade e que
possibilita ir longe na reflexão sobre a nossa relação com os “animais” ao
nosso redor/convívio, o desenho animado A
Fantástica Viagem de Marona é a pedida, pois vai muito além da mera
diversão. É bonito, intenso, por vezes ingênuo, mas nunca gratuito. A sua
mensagem sobre amizade, solidariedade, respeito, vaidade, é certeira. Emocionar
faz parte da vida (“humana” e “animal”)..., assim como existir é resistir!
NOTA: As considerações acima são pessoais
e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de
carteirinha.
Joba
Tridente: O
primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros
videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em
35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e
coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder,
2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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