quarta-feira, 16 de junho de 2021

Crítica: A Fantástica Viagem de Marona


A FANTÁSTICA VIAGEM DE MARONA

por Joba Tridente

(links: texto em laranja) 

Eu sou de um tempo em que cachorro ou cão era cachorro e ou cão..., e gato era gato. Dava-se nome a eles, que viviam por ali, soltos no quintal e ou perambulando pelas ruas e telhados. Eram animais que comiam o que seus donos comiam. Sou filho do interior. Hoje, cachorro ou cão e gato, entre outros “animais de estimação” que vivem em lar “humano”, são chamados de “pets”, tratados como filhos, usam roupas e comem ração artificial com sabor artificial. Ah, o estrangeirismo moldando vidas subdesenvolvidas... 


O cinema já contou histórias de cães de toda espécie e assunto nunca faltou. Até a morte (e reencarnação) foi explorada. Já na prancheta do desenho animado, os roteiros capricham mesmo é na comédia, no nonsense, no humor negro, no pastelão. O drama fica meio de lado ou escamoteado. A ação e a aventura sempre dão o tom. Animações tematizando a morte, no momento, lembro do primeiro Todos os Cães Merecem o Céu (1989), de Don Bluth. Tal lembrança tem a ver com a estreia, dia 18 de junho, em Super Lançamento, no serviço de streaming Petra Belas Artes À La Carte, da premiada animação francesa A Fantástica Viagem de Marona (L'extraordinaire Voyage de Marona, 2019), da diretora romena Anca Damian. 

..., dói menos dormir. 


Merecedor dos prêmios de Melhor Filme de Animação, do Festival Internacional de Cinema de Animação de Bucheon (2019); do Prêmio do Público de Filme de longa-metragem, do Festival Internacional de Cinema de Gijón (2019); do Prêmio especial do júri para os críticos de cinema de Dublin, do Festival Internacional de Cinema de Dublin (2020); de Filme de longa-metragem de animação - Grande Prêmio, do Tokyo Anime Award (2020)..., A Fantástica Viagem de Marona acompanha as comoventes lembranças de uma cadelinha que é atropelada e, enquanto agoniza, relembra a sua vida como se fosse um filme biográfico. Conforme mergulhamos em suas memórias caninas, somos logo arrebatados pela fascinante narrativa que desvela o quanto ela é graciosa, é esperta e entende a linguagem e os sentimentos contraditórios dos “humanos” bem mais que os “humanos”. 


Filha de um relacionamento relâmpago entre uma “cadela comum” e um “cão de raça”, ao nascer ela recebeu o nome de Nove, dado por sua mãe, que nomeou cada um dos nove filhotes pela ordem de nascimento. Como é comum aos cães de raça indefinida, foi abandonada ainda nova e, entre afagos e rejeições, conviveu com três donos distintos: o artista de rua e acrobata Manole, que lhe deu o nome de Ana; o generoso construtor Istvan, que a chamava de Sara; a garotinha Solange, que a chamou de Marona. Com cada um deles conheceu momentos de alegria (no acolhimento) e de tristeza (na separação). 


Não bastasse a deliciosa arte coloridíssima, que mistura técnicas (manuais e digitais) de animação e brinca com traços psicodélicos (surreais), como se desenhados e recortados por crianças bem imaginativas e que remetem ao adorável desenho animado Yellow Submarine (1968), de George Dunning..., o filme A Fantástica Viagem de Marona surpreende também pela qualidade do roteiro de Anghel Damian, que não subestima a inteligência dos espectadores (de qualquer idade). Se já não é fácil falar de situações de abandono, de fome, de morte (em dramas “humanos”), para um público adulto, imagine (em dramas envolvendo “animais de estimação”) para um público variado, incluindo criança, sem apelar para a pieguice. 


Seu texto/conteúdo potente, bastante verossímil, é capaz de tocar fundo até quem não gosta de “animal de estimação”. Porque, das entrelinhas entre o verbo e a imagem, sobressai a metáfora (inconsciente?) da nossa própria realidade social, que a cada segundo marginaliza mais e mais pessoas. Mendigos, drogados, sem tetos (de estimação) atendidos em momentos de euforia solidária e depois relegados à própria sorte no contexto capital. Claro, é um subtexto perceptível ou não (pelos espectadores)..., mas que faz a gente pensar naqueles (“humanos” ou “animais”) que cativamos em momentos de carência afetiva e depois mudamos de assunto. 


Enfim, se busca um entretenimento de qualidade e que possibilita ir longe na reflexão sobre a nossa relação com os “animais” ao nosso redor/convívio, o desenho animado A Fantástica Viagem de Marona é a pedida, pois vai muito além da mera diversão. É bonito, intenso, por vezes ingênuo, mas nunca gratuito. A sua mensagem sobre amizade, solidariedade, respeito, vaidade, é certeira. Emocionar faz parte da vida (“humana” e “animal”)..., assim como existir é resistir! 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.

 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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