Desde o Nosferatu
(1922), de Murnau, muitos vampiros passaram pelas telas de cinema. A variada fauna
de vampiros já provocou tanto calafrios quanto risos. Os últimos que nos chegam,
com o selo Jim Jarmusch de
qualidade, são intelectuais que preferem a tranquilidade do lar sombrio, ao
burburinho de uma vida noctívaga. Em vez do risco de uma jugular infectada, a
garantia de um puríssimo sangue “O” hospitalar.
Em Amantes
Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013),
Adam (Tom Hiddleston) é um vampiro músico
apaixonado por instrumentos de cordas raros e discos de vinil. Vivendo em uma
Detroit (EUA) em ruínas, conta com a ajuda do simpático humano Ian (Anton Yelchin)
para conseguir suas preciosidades musicais. A sua mulher Eve
(Tilda Swinton), dona de invejável biblioteca, mora em
Tanger (Marrocos). Ali compartilha sangue e filosofia com o dramaturgo Christopher Marlowe (John Hurt), aquele que alguns
acreditam ser o autor dos famosos dramas de Shakespeare. O músico cool e a
leitora voraz vivem uma relação mais espiritual que física. No entanto, sonhos
preocupantes com Ava (Mia
Wasikowska), a irresponsável irmã de Eve, faz com que o erudito casal se reencontre para decifrar suas
aflições.
Amantes
Eternos surpreende por ser um drama romântico, quase trágico, sobre
vampiros. Ele nada tem de terror. O que pode frustrar quem espera ver sangueira
jorrando, corpos despedaçados, morcegos ao entardecer etc, recursos cênicos
tradicionais em filmes populares do gênero. Felizmente, Jarmusch não é
tradicional e muito menos faz o gênero cinema popular que se degusta com combo
e smartphone. O seu público é o espectador pensante que espera se deliciar com
uma história, ainda que gótica, mais reflexiva. E reflexão, entremeada de nonsense e humor negro (óbvio!), é o que
não falta a estes vampiros existencialistas que pelos séculos e séculos
acompanharam a evolução e a derrocada social, econômica, cultural, científica
dos humanos (ou zumbis, como se referem aos homens). Basta um requintado cálice
de sangue entre os dedos para que os dândis soltem a língua (venenosa?) com
ironias sobre grandes nomes da literatura, teatro, música... Quando estão enfastiados de
revisitar o passado, destilam sobre o presente. E vão (sobre)vivendo em meio ao
vintage cult e o descontrole (autoral) tecnológico.
Após a sessão me peguei pensando numa possível sintonia
entre Estranhos no Paraíso (1982) e Amantes Eternos (2013), por um pequeno
detalhe. Lá atrás, Eva (Eszter Balint) chegava da Hungria, para
“agitar” a vida do primo Willie (John Laurie) e seu amigo Eddie (Richard Edson). Agora é Ava
(ou seria Lilith?) quem chega de Los Angeles para “agitar” o Paraíso de Adam (Adão) e Eve (Eva) e, por tabela, provocar o “Anjo da Guarda” Ian. Achei
curiosa e divertida e essa analogia (e ruptura) sobre o Paraíso (Perdido, de
John Milton?), ou o que nos parece ser um Paraíso até que a “tentação” maliciosamente
o enreda. O que distingue ou sobrepõe a Eva
(de ontem) e a Ava (de hoje) eu sei.
Porém, talvez eu esteja viajando num sangue contaminado. Quem quiser tirar a dúvida,
veja os dois filmes e conclua por conta própria.
Não creio que haja um diretor de cinema mais
underground que Jim Jarmusch. Em uma antiga fan page (abandonada em
2011) é possível encontrar em Minhas
Regras de Ouro, e ou atribuídas a ele, um conceito interessante
sobre autenticidade e originalidade. À margem de Hollywood, seu território é
palco de personagens melancólicos e ou entediados com os rumos do mundo. Não há
como ficar indiferente à sua constância ou preferência pelos marginalizados que
vivem por teimosia vagando pelo ermo, pelo submundo americano, ou alçando voos
baixos por outras paragens igualmente soturnas.
Tratados com apaixonada relevância, seus
marginais são sempre convincentes e, por isso, tão arrebatadores quanto a
música que veste particularmente cada um. Música que foge do estereótipo
“trilha sonora” e envolve até a plateia mais sisuda..., se é que público sisudo
se arrisca a ver cinema alternativo. Jarmusch
e música são tão indissociáveis que em Amantes
Eternos ele comparece com o seu trio (indie) Sqürl em números e intervenções arrepiantes..., principalmente para
quem gosta do bom e velho rock. Com certeza esta é umas das trilhas que estará
fácil entre as melhores de 2014.
Enfim, considerando a excelência do elenco; a
provocação e inteligência do roteiro que dribla todos os clichês; a trilha
irretocável que ilumina e aconchega a sombria história; a notável fotografia de
Yorick Le Saux; um Jarmusch ainda surpreendente..., reserve já o seu ingresso.
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