Há muitos anos havia uma coleção de figurinhas com
textos curtos e estampas coloridas cujo tema era “amor”. Conheci uma garota que
colecionava. A frase mais famosa (ainda hoje) era: Amar é jamais ter de pedir perdão.
Quando garoto, além dos livros, eu adorava gibis
e minhas irmãs (mais velhas) não abriam mão das fotonovelas. Eu não achava a
menor graça em fotonovelas, mas, por conta dos comentários delas, de vez em
quando, pegava alguma para ler escondido e matar a curiosidade sobre “certos
assuntos proibidos” para a minha idade. Foi assim que, quase adolescente, li
uma frase, numa capa dessas revistas, que me chamou a atenção e que me persegue
até hoje quando o assunto é “amor”. Era algo tipo: Você seria capaz de fazer o que Manon fez por amor? Não me lembro
se a Manon era a Lescaut, de Abade de Prévost. Não importa! O que retive na memória,
qual um trauma, é a palavra “sacrifício
por amor”, implícito na frase. Era pré-adolescente e quase nada entendia de
amor ou se sacrifícios. Adulto, descobri, de maneira desconfortável, o quanto é
difícil significar as palavras amor e sacrifício. E o quanto a semântica faz tudo
parecer muito maior quando se é sujeito: (a)mor x mor(te).
O filme Amor
(Amour, França, Alemanha, Áustria,
2012) de Michael Haneke, é um álbum
completo e com figurinhas premiadas sobre a essência de amar e ser amado. É a
frase feita tornando-se frase perfeita na reciprocidade do amor e da dor. Haneke
não é o primeiro e nem será o último diretor a falar de AVC ou de Alzheimer (Sarah
Poley, em Longe Dela, e Richard Eyre,
em Iris), mas talvez seja o mais
sincero e o mais radical em sua catarse desesperada de atingir o espectador.
Não é um eco fácil de se multiplicar, mas é um verbo fácil de se conjugar,
porque tem apenas dois tempos: vida (vegetativa) e morte (digna) no futuro que é o único
pretérito de todos nós.
No prólogo de Amor, um prenúncio de morte. No decurso da trama, um drama presente
no cotidiano de muitos espectadores. O admirável e culto casal Anne (Emmanuelle Riva) e George
(Jean-Louis Trintignant) partilha profissão
(pianistas) e gostos culturais refinados (teatro, literatura, música). Após um AVC
que deixou o lado direito de Anne
paralisado e afetou a sua memória, irá partilhar novos sentimentos. Aos poucos,
na drástica mudança de rotina e de humor, ela, o marido, a família, os amigos,
a casa..., serão engolidos pelas brumas vespertinas que despertam fantasmas.
Porém, antes que a doença se agrave, Anne
pede a George que jamais a interne em
uma clínica. A única rima possível no hermético verso que sela o destino de
ambos, é o corajoso e perturbador ato de amor de George.
Amor fala
de algo raro nos dias de hoje: amor verdadeiro comungado numa vida a dois para
um sempre que não acaba. Soa piegas porque em tempos de descarte, um amor fugaz
não dura o tempo de um resfriado ou de uma gargalhada. Hoje, evita-se comungar
até mesmo os prazeres sexuais. O genial Henfil dizia que o problema do mundo
era a falta de relamento. As pessoas não se relam mais, abstraem-se até mesmo nos
transportes públicos. Talvez porque confundam o relar com o assédio sexual. Georges e Anne não são apenas marido e mulher, cujo amor foi se fortalecendo
com o tempo, são companheiros para todas as horas, com as idiossincrasias
pertinentes a qualquer casal. São o tipo de gente que apavora os covardes,
porque, fora da ordem estabelecida (por quem?), na saúde e na doença, tomam
suas vidas nas mãos..., afinal elas lhes pertencem. Ou não?!
Amor é um
filme pungente (mas não é cruel!). A sua narrativa, aparentemente fria, tem o
peso do tema focado: a fragilidade humana frente aos acidentes de percurso no
envelhecimento. O futuro, para qualquer um, é tão imprevisível quanto a pomba que
insiste em invadir a casa tomada pela melancolia do casal. Não há música
choramingas para embalar e ampliar o sofrimento e a dor, tão tocantes na
soberba interpretação de Trintignant e Riva. Não há concessões à dor
alheia, porque não há como mensurar a dor do outro. Assim é a vida, se lhe
parece na mesma situação. A impotência de um parente cuidador de alguma vitima
de AVC e ou Alzheimer é indescritível..., e constrangedora para o visitante.
Pessoa alguma merece tamanho sofrimento.
Há um movimento, ainda incipiente, a favor do
indivíduo e contra o estado e a igreja que se acham fiéis depositários da vida
humana (enquanto render impostos/dízimos, é claro) até que o cérebro desligue
tudo. Vivemos numa sociedade pautada pela mediocridade religiosa, pela
hipocrisia religiosa moldada à vontade de um deus-quem-quer, onde um nobre gesto
de amor (comungado na alegria e na tristeza), como o de George, pode soar como blasfêmia.
E você, teria coragem de fazer o que George fez por amor?
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