Falar da própria aldeia e alcançar a
universalidade pode não ser tão fácil como pregava Léon Tosltói. É preciso,
antes de mais nada, saber sobre o quê e ou quem falar. O verbo pode se tornar uma
faca de dois gumes, se o autor não souber decifrar o conteúdo das entrelinhas
diárias dos seus vizinhos. A cultura japonesa, possivelmente, é a mais fechada
e indecifrável a um gaijin, mesmo em sua própria terra. Foi o que comprovou a
recente revelação de documentos sobre as atividades criminosas da Shindô-Renmei
no Brasil.
Corações
Sujos, dirigido por Vicente
Amorim, é um drama inspirado em eventos relatados no livro homônimo do
escritor Fernando Morais, lançado em 2000, que trata dos atos terroristas da
organização Shindô-Renmei, nas colônias japonesas do interior de São Paulo,
após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Neste mesmo ano foi publicado,
dentro da Coleção Inventário DEOPS, Shindô-Renmei
- Terrorismo e Repressão, de Rogério Dezem, uma obra que resgata importantes
documentos guardados nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de
São Paulo (Deops), provenientes da investigação sobre as mesmas atividades criminosas
da Shindô-Renmei (Liga do Caminho dos Súditos), entre 1945 e 1953. Parece que,
de uma hora para outra, em meio aos preparativos da comemoração dos 100 anos da
imigração japonesa (1908 - 2008), as portas da aldeia nipônica foram arrombadas
e o silencio que era de ouro virou prata na palavra dos nisseis.
Baseado no roteiro de David França Mendes, Corações Sujos conta a história fictícia
do fotógrafo Takahashi (Tsuyoshi Ihara), um imigrante japonês que
vive com a esposa Miyuki (Takako Tokiwa) numa pequena cidade do
interior paulista e, em 1946, após um incidente envolvendo soldados brasileiros
e membros da colônia japonesa, é convencido a integrar o grupo Shindô-Renmei
(Liga do Caminho dos Súditos). A organização, liderada por Watanabe (Eiji Okuda),
um coronel reformado do Exército Imperial Japonês, é a responsável pelo
“julgamento” e execução de japoneses considerados “traidores” do Império
Japonês, por não acreditarem e ou duvidarem que o Japão tenha saído vitorioso da
Segunda Guerra Mundial. Watanabe, que
lutou na Guerra da Manchúria e não aceita a derrota do seu país de origem, é um
hábil manipulador. É ele quem decide sobre a vida dos kachigumi (vitoristas) e ou
morte dos makegumi (traidores - corações sujos), e quem transforma Takahashi em um assassino cruel.
Corações
Sujos é impactante e corajoso ao tratar, com imparcialidade, um assunto extremamente complexo e até controverso para alguns nisseis. Ele não esgota e tampouco aprofunda o tema, passando uma ideia errônea de
apenas tangenciar fatos até recentemente desconhecidos da grande maioria dos
brasileiros e dos japoneses. Uma infeliz escorregadela no roteiro também contribui
para dar a impressão de que a história contada é maior do que a mostrada na
tela. A sensação (de furo) é causada (principalmente) pela “presença” e
“ausência” do subdelegado (Eduardo Moscovis) em momentos cruciais da trama.
Fora isso, parece acertada a opção em falar apenas do Inferno (Shindô-Renmei) dentro
do Inferno (Governo Vargas), logo após a Segunda Guerra, já que a repressão
aos imigrantes alemães, italianos e japoneses, no período, é mais conhecida do
que esta entre os próprios japoneses.
Corações
Sujos não é uma tese de mestrado ou sequer um documentário sobre a
Shindô-Renmei. Mas um filme de ficção que utiliza informações sobre uma
organização criminosa real, como precioso pano de fundo, para contar uma interessante
e envolvente história de amor e dor, vivida por estrangeiros em uma terra onde não
se reconhecem nem mesmo estre os seus compatriotas. Se, enquanto cinema, chamar
a atenção do público para o assunto polêmico, provocando acaloradas discussões socioculturais
sobre o deveres patrióticos, honra, fé, tradição, justiça, valores humanos..., já
terá valido o esforço.
A excelência do elenco, formado pelos maiores
nomes do cinema japonês, em atuações impecáveis, dão à produção um invejável selo
de qualidade. Vale destacar as performances de pelo menos três atores: Takako,
no papel da compassiva esposa de Takahashi,
emociona sem dizer uma palavra..., ela é toda e apenas olhar. A sequência em
que “dialoga” com a cesta de milho, a casa e as galinhas pode ser considerada
uma das mais fascinantes do cinema brasileiro; Tsuyoshi surpreende o espectador
com a precisa transformação do jovial fotógrafo em um ensandecido e sanguinário
“samurai”; O veterano Eiji Okuda, na pele de um “fundamentalista” que impõe a “sua
verdade” aos colonos e age instintivamente em obediência cega ao Imperador Hiroíto
e à tradição japonesa, provoca calafrios.
Corações
Sujos tem uma excelente direção de arte de Daniel Flaksman e a
fotografia de Rodrigo Monte, mesmo com um incômodo efeito de distorção
(alegoria ou afetação?), é belíssima..., em alguns momentos beira o sublime. Quanto
à música de Akihiko Matsumoto, ela é muito bonita, mas poderia se menos intrusiva.
Nota: Uma
pergunta que não quer calar: O cartaz de Corações
Sujos, criado pela Agência Ana França Design, é uma “homenagem” ao
emblemático cartaz de Rogério Duarte para Deus
e O Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, ou é mera “coincidência”
de ideia?
Para saber mais sobre a Shindô-Renmei:
No prefácio do livro Shindô-Renmei - Terrorismo e Repressão, de Rogério Dezem, o Prof.
Dr. Sedi Hirano escreveu: “A tragédia
ocorrida na sociedade dos imigrantes radicados no Brasil não poderia - jamais -
ser compreendida de forma alguma no Japão, nem mesmo pelos jornalistas, ainda
que estes estivessem sempre na vanguarda dos tempos. O sentimento dos
imigrantes que na própria terra natal foram chamados de ignorantes, desprezados
por serem desatualizados e que se envolveram em tramas devida ao único pecado
que cometeram - o de serem súditos leais e submissos e de acreditarem
incondicionalmente no país de sua origem - não poderia ser compreendido por
ninguém, a não ser por aqueles que conheceram a história da imigração e que
sofreram as mesmas privações num país estrangeiro. Essa aventura da Shindô-Renmei,
na verdade, é uma parte do lado trágico da história da imigração japonesa no
Brasil. Ela deixou marcas profundas entre os imigrantes japoneses, necessitando
ser desvendada e conhecida em profundidade.” O prefácio, na íntegra,
pode ser lido aqui: Shindô-Renmei
Artigo (link): Realidade
alterada: o poder da Shindo Renmei
Nenhum comentário:
Postar um comentário