sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Crítica: Corações Sujos



Falar da própria aldeia e alcançar a universalidade pode não ser tão fácil como pregava Léon Tosltói. É preciso, antes de mais nada, saber sobre o quê e ou quem falar. O verbo pode se tornar uma faca de dois gumes, se o autor não souber decifrar o conteúdo das entrelinhas diárias dos seus vizinhos. A cultura japonesa, possivelmente, é a mais fechada e indecifrável a um gaijin, mesmo em sua própria terra. Foi o que comprovou a recente revelação de documentos sobre as atividades criminosas da Shindô-Renmei no Brasil.

Corações Sujos, dirigido por Vicente Amorim, é um drama inspirado em eventos relatados no livro homônimo do escritor Fernando Morais, lançado em 2000, que trata dos atos terroristas da organização Shindô-Renmei, nas colônias japonesas do interior de São Paulo, após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Neste mesmo ano foi publicado, dentro da Coleção Inventário DEOPS, Shindô-Renmei - Terrorismo e Repressão, de Rogério Dezem, uma obra que resgata importantes documentos guardados nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), provenientes da investigação sobre as mesmas atividades criminosas da Shindô-Renmei (Liga do Caminho dos Súditos), entre 1945 e 1953. Parece que, de uma hora para outra, em meio aos preparativos da comemoração dos 100 anos da imigração japonesa (1908 - 2008), as portas da aldeia nipônica foram arrombadas e o silencio que era de ouro virou prata na palavra dos nisseis.


Baseado no roteiro de David França Mendes, Corações Sujos conta a história fictícia do fotógrafo Takahashi (Tsuyoshi Ihara), um imigrante japonês que vive com a esposa Miyuki (Takako Tokiwa) numa pequena cidade do interior paulista e, em 1946, após um incidente envolvendo soldados brasileiros e membros da colônia japonesa, é convencido a integrar o grupo Shindô-Renmei (Liga do Caminho dos Súditos). A organização, liderada por Watanabe (Eiji Okuda), um coronel reformado do Exército Imperial Japonês, é a responsável pelo “julgamento” e execução de japoneses considerados “traidores” do Império Japonês, por não acreditarem e ou duvidarem que o Japão tenha saído vitorioso da Segunda Guerra Mundial. Watanabe, que lutou na Guerra da Manchúria e não aceita a derrota do seu país de origem, é um hábil manipulador. É ele quem decide sobre a vida dos kachigumi (vitoristas) e ou morte dos makegumi (traidores - corações sujos), e quem transforma Takahashi em um assassino cruel.

Corações Sujos é impactante e corajoso ao tratar, com imparcialidade, um assunto  extremamente complexo e até controverso para alguns nisseis. Ele não esgota e tampouco aprofunda o tema, passando uma ideia errônea de apenas tangenciar fatos até recentemente desconhecidos da grande maioria dos brasileiros e dos japoneses. Uma infeliz escorregadela no roteiro também contribui para dar a impressão de que a história contada é maior do que a mostrada na tela. A sensação (de furo) é causada (principalmente) pela “presença” e “ausência” do subdelegado (Eduardo Moscovis) em momentos cruciais da trama. Fora isso, parece acertada a opção em falar apenas do Inferno (Shindô-Renmei) dentro do Inferno (Governo Vargas), logo após a Segunda Guerra, já que a repressão aos imigrantes alemães, italianos e japoneses, no período, é mais conhecida do que esta entre os próprios japoneses.


Corações Sujos não é uma tese de mestrado ou sequer um documentário sobre a Shindô-Renmei. Mas um filme de ficção que utiliza informações sobre uma organização criminosa real, como precioso pano de fundo, para contar uma interessante e envolvente história de amor e dor, vivida por estrangeiros em uma terra onde não se reconhecem nem mesmo estre os seus compatriotas. Se, enquanto cinema, chamar a atenção do público para o assunto polêmico, provocando acaloradas discussões socioculturais sobre o deveres patrióticos, honra, fé, tradição, justiça, valores humanos..., já terá valido o esforço.

A excelência do elenco, formado pelos maiores nomes do cinema japonês, em atuações impecáveis, dão à produção um invejável selo de qualidade. Vale destacar as performances de pelo menos três atores: Takako, no papel da compassiva esposa de Takahashi, emociona sem dizer uma palavra..., ela é toda e apenas olhar. A sequência em que “dialoga” com a cesta de milho, a casa e as galinhas pode ser considerada uma das mais fascinantes do cinema brasileiro; Tsuyoshi surpreende o espectador com a precisa transformação do jovial fotógrafo em um ensandecido e sanguinário “samurai”; O veterano Eiji Okuda, na pele de um “fundamentalista” que impõe a “sua verdade” aos colonos e age instintivamente em obediência cega ao Imperador Hiroíto e à tradição japonesa, provoca calafrios.

Corações Sujos tem uma excelente direção de arte de Daniel Flaksman e a fotografia de Rodrigo Monte, mesmo com um incômodo efeito de distorção (alegoria ou afetação?), é belíssima..., em alguns momentos beira o sublime. Quanto à música de Akihiko Matsumoto, ela é muito bonita, mas poderia se menos intrusiva.


Nota: Uma pergunta que não quer calar: O cartaz de Corações Sujos, criado pela Agência Ana França Design, é uma “homenagem” ao emblemático cartaz de Rogério Duarte para Deus e O Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, ou é mera “coincidência” de ideia?

Para saber mais sobre a Shindô-Renmei:
No prefácio do livro Shindô-Renmei - Terrorismo e Repressão, de Rogério Dezem, o Prof. Dr. Sedi Hirano escreveu: “A tragédia ocorrida na sociedade dos imigrantes radicados no Brasil não poderia - jamais - ser compreendida de forma alguma no Japão, nem mesmo pelos jornalistas, ainda que estes estivessem sempre na vanguarda dos tempos. O sentimento dos imigrantes que na própria terra natal foram chamados de ignorantes, desprezados por serem desatualizados e que se envolveram em tramas devida ao único pecado que cometeram - o de serem súditos leais e submissos e de acreditarem incondicionalmente no paí­s de sua origem - não poderia ser compreendido por ninguém, a não ser por aqueles que conheceram a história da imigração e que sofreram as mesmas privações num país estrangeiro. Essa aventura da Shindô-Renmei, na verdade, é uma parte do lado trágico da história da imigração japonesa no Brasil. Ela deixou marcas profundas entre os imigrantes japoneses, necessitando ser desvendada e conhecida em profundidade.” O prefácio, na íntegra, pode ser lido aqui: Shindô-Renmei


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