quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Crítica: O Homem Que Vendeu Sua Pele

 

O HOMEM QUE VENDEU SUA PELE

(الرجل الذي باع ظهره,)

por Joba Tridente 

Quando era bem mais jovem (e isso já faz algum tempo) ouvi falar de um costume antigo em que asiáticos ricos compravam a pele tatuada de uma pessoa ainda em vida, para ser retirada após a morte desta, para usos diversos. E pagavam bem. Esse costume bizarro ainda persiste em várias partes do mundo. Também conheci a célebre história do suíço Tim Steiner, que negociou a pele das suas costas para uma pintura de Win Delvoye, posteriormente vendida ao colecionador de arte alemão Rik Reinking, cujo contrato prevê exibições em museus e a sua extração quando o corpo da obra-viva TIM (2006) morrer (leia sobre ela aqui). Enquanto pesquisava sobre negociadores de pele tatuada, soube que o escritor Roald Dahl escreveu um conto, Skin (Pele), nos anos 1950, em que um mendigo, que traz a tatuagem de uma pintura desconhecida de um famoso artista plástico, já morto, passa a ser disputado por colecionadores. É a arte imitando a vida..., ou reinventando os meios de subsistência. 

Livremente inspirado na obra TIM, que marcou profundamente a diretora Kaouther Ben Hania, em 2012, quando ela visitou uma retrospectiva dedicada ao artista belga Wim Delvoye, no museu do Louvre, em Paris..., (“Lá eu vi, nas costas de Tim Steiner, sentado em uma cadeira e sem camisa, a obra que o artista Delvoye tatuou. A partir desse momento, esta imagem singular e transgressora não me deixou.”)..., o sarcástico drama tunisiano, com doses de romance e humor negro, O Homem Que Vendeu Sua Pele (لرجل الذي باع ظهره,, 2020), que discute valores (humanos e artísticos), estreia no Brasil no dia 7 de outubro de 2021, com distribuição da Pandora Filmes.


O Homem Que Vendeu Sua Pele é Sam Ali (Yahya Mahayni, excelente), um sírio apaixonado pela tradutora Abeer (Dea Liane), que está prometida em casamento a Ziad (Saad Lostan), em melhor situação econômica e social que ele. Para complicar a situação, por conta de um fervoroso desabafo amoroso (numa cena deliciosa), visto, fora do contexto, como crime, pelas autoridades, ele é obrigado a fugir para o Líbano, onde conhece o polêmico artista plástico europeu Jeffrey Godefroy (Koen De Bouw). Tomado por uma romântica obsessão juvenil, Sam quer ir atrás de Abeer, que mudou para Bruxelas, com o marido. Jeffrey propõe a Sam um trabalho que pode levá-lo à Europa e a um ganho de um milhão de euros. Para tanto, basta que o sírio ceda as suas costas para ele tatuar uma obra de arte e fique à sua disposição para exposições da mesma, que poderá ser vendida, colocando-o à disposição do novo proprietário da arte. Ansiando por liberdade e desejando reencontrar seu amor, Sam Ali aceita a proposta e Jeffrey tatua em suas costas um Visto Schengen (o visto necessário para os estrangeiros irem legalmente para a Europa e que é muito difícil de se conseguir). 

Com a obra concluída, Jeffrey Godefroy concede uma entrevista que traduz a essência da trama que se desenrolará: Artista: “Alguns pessimistas dizem que a arte está morta. Bem, eu acho que a arte nunca esteve mais viva do que está hoje. Com meu último trabalho, estou explorando um novo domínio.Repórter: “Mas, por que um Visto Schengen?Artista: “Mais uma vez vivemos em uma era muito sombria, onde, se você é sírio, afegão, palestino etc, você é uma persona non grata. Os muros sobem. Eu transformei o Sam em uma mercadoria, uma tela, e agora ele pode viajar pelo mundo. Porque, nos tempos em que vivemos, a circulação de mercadorias é mais livre do que a circulação de seres humanos. Assim, transformando-o em um tipo de mercadoria, ele agora será capaz, pelas convenções do nosso tempo, de recuperar sua humanidade e sua liberdade. É um tanto paradoxal, não é? 


Assim, carregando a imensa e valiosa tatuagem do Schengen, nas costas, a mercadoria humana Sam chega à Bruxelas, para uma vida confortável e de total liberdade. Ou melhor, uma vida realmente confortável, porém, de liberdade relativa. Pois, ele já não é um mero imigrante sírio (que apavora os nativos), mas o suporte e a moldura que sustenta uma obra de arte avaliada em milhões de euros e que não pode sequer ser arranhada (há uma sequência hilária relacionada aos cuidados com as suas costas e outra genial, num leilão, que remete ao premiadíssimo desconcertante The Square: A Arte da Discórdia, de Ruben Östlund). 

ESSA OBRA ESTÁ SENDO RESTAURADA.

DESCULPEM PELA INCONVENIÊNCIA. 


Seguido de perto por Soraya (Monica Bellucci), a assistente do artista, Sam (suporte, moldura e obra) precisa estar sempre pronto para apreciação num mercado restrito a milionários extravagantes, leilões e ou exposições públicas..., onde estará sujeito a todo tipo de observação crítica. Com o passar do tempo, enquanto busca resgatar o amor de Abeer, o sírio rebelde que ainda habita nele vai se apercebendo da relatividade do mundo tão glamoroso quanto miserável ao seu redor. Da angústia dos imigrantes desafortunados e humilhados em terras estrangeiras, ao sórdido valor das coisas humanas e não-humanas..., inclusive daquelas totalmente supérfluas..., tudo fará ele questionar cada passo seu em busca da felicidade em paraíso alheio. Mas, em um mundo em convulsão e seu país arrasado por uma guerra sem fim, seria ele capaz de abrir mão do que “conquistou”? Resgatar a dignidade humana e a liberdade cidadã dependerá tão somente dele. Ou não! 


Entre notáveis acertos e um ou outro deslize narrativo (sem jamais comprometer o todo), O Homem Que Vendeu Sua Pele oferece ao espectador sequências de beleza perturbadora do resiliente Sam caminhando nos interiores dos museus e galerias. As cenas de mudança de pintura no leilão de obras de arte são de tirar o chão. É impressionante como o diretor de fotografia Christopher Aoun sempre encontra ângulos e composições temáticas inusitadas para sugerir os contrastes e os confrontos da arte clássica e da arte contemporânea. Entre tantos pontos de vista fotográficos (curiosos ou divertidos) talvez o registro mais emblemático seja o primeiro, quando Sam, sobre uma mureta e entre duas estátuas, vê suas costas estampadas num banner imenso da retrospectiva do artista Jeffrey Godefroy. 


Enfim, com roteiro sagaz de Kaouther Ben Hania, O Homem Que Vendeu Sua Pele é um filme cuja paleta dispõe, nos mais variados tons, e muito além do rascunho ou do borrão contemporâneo, pertinentes discussões relacionadas tanto ao milionário mundo das artes quanto ao miserável mundo dos refugiados..., sem deixar de pincelar na tela caótica da crise humanitária, um canto de amor à vida. Uma história de sensações múltiplas que vão da fina ironia ao nonsense. Tem ótima direção, enredo atual, curioso e muito provocador, bom elenco, com destaque para o admirável Yahya Mahayni e seu cativante Sam Ali. 

Ah, antes que me esqueça, fique atento(a) à cena do prólogo, em que uma obra de Godefroy é fixada numa parede..., ela fará link com o inesperado epílogo. Ao final, a pergunta que fica é: O culto ao terrorismo e o custo da paz podem ser manipulados? 

O Homem Que Vendeu Sua Pele é uma coprodução da Tunísia, França, Bélgica, Alemanha, Suécia e Turquia, e foi nomeado para o Prémio Orizzonti, no Festival Internacional de Cinema de Veneza 2020, e Melhor Longa-Metragem Internacional, no 2021 Academy Awards. Trailer: aqui 

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NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

 

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