O tempo passa e Hollywood continua servindo, às
plateias afoitas, aquele prato fundo especial, transbordando histórias curiosas
e “impensáveis” da sua diversificada comunidade estelar. Feito escaldante feijoada,
não faltam ingredientes inusitados e temperos picantes que jamais desandam a
receita que nem sempre cai bem no estômago do espectador distraído pelo odor. Como,
por exemplo, o catártico Mapas para as
Estrelas (Maps to the Stars,
2014) de David Cronenberg.
Em se tratando de Cronenberg, é redundante falar
em estranhamento narrativo. Escrito por Bruce Wagner, o drama satírico (ou
seria caricatura perversa?) traz uma leitura perturbadora e ousada de velhas
questões hollywoodianas do gênero “a vida como ela é (ou imagina-se que seja)
em Los Angeles e Beverly Hills”: preço do sucesso; esperança do anônimo; celebridades
passadas, presentes e futuras; fantasmas (reais e imaginários); agentes cínicos;
inveja do umbigo alheio; vingança (calculada ou improvisada); droga, sexo e
imolação etc. Se bem que, quando se fala de show
business, o assunto é polêmico em qualquer lugar do mundo e não apenas na “privilegiada”
Hollywood.
Na trama, por vezes indigesta, encontramos ao
redor da mesa das vaidades, a veterana atriz Havana Segrand (Julianne
Moore), disposta a qualquer sacrífico (mesmo!) para voltar aos holofotes
com o remake de Stolen Waters, cujo
original foi protagonizado por sua mãe Clarice Taggart (Sarah Gadon), que morreu jovem, mas que
ainda a assombra, intensificando a sua neurose. Agatha (Mia Wasikowska) é sua dissimulada assistente, uma jovem cicatrizada
no corpo e na alma que chega de longe para cumprir à risca um roteiro
devastador que vem escrevendo há uma década. Nessa mesa das
ilusões perdidas, os outros espaços são ocupados pelo problemático ator juvenil
Benjie Weiss (Evan Bird), que, após a reabilitação, espera reencontrar o
sucesso na sua volta à tv, onde já brilhou com a série Bad Babysitter..., e pelos seus pais totalmente disfuncionais: Stafford Weiss (John Cusack), um psicoterapeuta e autor
de livros de autoajuda, e Cristina Weiss
(Olivia Williams), que administra a
carreira do pretensioso garoto. Elenco excelente, incluindo Robert Pattinson, na pele de um
motorista de celebridades, Jerome, que
também sonha com a fama no cinema e tem a fala mais irônica e oportuna sobre a carreira
de ator e roteirista.
A leitura do hipnótico Mapas para as Estrelas varia conforme o interesse do espectador,
que pode simplesmente entreter-se com a história de suspense (que também evoca
a violência familiar e doméstica) ou mergulhar nas fascinantes metáforas (fogo
e água, pais e filhos, fantasmas-vivos e vivos-fantasmas) sugeridas e refletir
sobre os percalços da “glamorosa” vida de artista na cidade dos sonhos e
pesadelos cinematográficos.
O “mapa” do título vai além de mero instrumento
de cicerone, já que serve (muito mais) como veículo de (auto)conhecimento das
estrelas e do estrelato. Assim como a citação intermitente do belíssimo poema Liberdade (Liberté), de Paul Élouard,
escrito em 1942, que soa como um pedido de socorro que não encontra eco. Leia o
poema Liberdade, na íntegra, em
tradução de Carlos Drummond de Andrade
e Manuel Bandeira no (link) Falas ao Acaso.
O jogo de palavra “(auto)conhecimento” é
proposital. Pois, no universo de faz de conta, onde até as biografias são
fictícias, assim como a ampulheta sempre retorna a zero-areia, a seu tempo, carrascos
e vítimas devoram-se e regurgitam-se (continuamente) na arrogância do “Eu Sou”!.
A vida não é filme onde entre o “gravando!” e o “corta!” há um vazio a ser
preenchido na ilha de edição. Num enredo em que todos estão continuamente
representando um papel (de sedução), um “mapa”, ainda que só faça sentido no
segundo ato, vem a calhar. Já no mundo real, o ‘mapa” para se conhecer o melhor
ângulo, o melhor diálogo, o melhor figurino..., na iminência de uma tragédia
(profissional ou doméstica), o melhor roteiro é o divã do psicanalista.
Enfim, considerando que um cinéfilo, conhecedor
da cinematografia de David Cronenberg, sabe o que esperar do esquisito, tenso e
amoral Mapas para as Estrelas; que o
espectador de primeiro filme, se vencer o blefe do primeiro ato, pode se
surpreender e se horrorizar (?!) com os vencedores de um jogo repulsivo; que
este é um filme demente, irônico, ardiloso, de humor negro (mas não hilário!), capaz
de embrulhar (?) os estômagos mais sensíveis com uma história que fica
martelando na sua cabeça por um bom tempo após os créditos finais..., se é fã,
arrisque e considere por conta própria.
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