Xingu é um filme que precisava ser feito. É uma história que
precisava ser bem contada, antes que algum estrangeiro norte-americano lançasse
mão e botasse índio bilíngue falando espanhol e inglês americano, ou coisa
pior.
Eu me lembro de uma frase que pautava o
Projeto Rondon e que chamou a minha atenção: “matar um índio, jamais, se preciso for, morrer por ele”, uma “tradução”
da frase original: “morrer, se preciso
for, matar, nunca”, do marechal Cândido
Mariano da Silva Rondon (1865 - 1958). Era
adolescente, não tinha idade e nem formação para participar e morria de inveja
dos novos “bandeirantes”. Nessa época havia (também) muita notícia desencontrada
sobre o trabalho de socialização que Orlando, Cláudio e Leonardo
Villas Bôas desenvolviam junto às comunidades indígenas. Com o tempo as
informações sobre a árdua lida dos irmãos acabaram encontrando foco. As ações
que colocaram em prática, para garantir (com alguma dignidade) a sobrevivência
dos povos indígenas, ainda hoje causam rebuliço e frio na espinha de governantes,
agropolíticos, agroempressários, que continuam defendendo uma política (de
ocasião) extrativista ampla, geral e irrestrita.
Assim como Rondon, os irmãos Villas Bôas
procuraram conhecer, registrar e preservar a cultura indígena. Em 1958, quando da morte de Rondon, o antropólogo
Darcy Ribeiro (1922 – 1997) fez um belo discurso em sua homenagem e, entre outros
princípios, citou este: “O segundo
princípio de RONDON é o do respeito às tribos indígenas como povos independentes
que, apesar de sua rusticidade e por motivo dela mesma, têm o direito de ser
eles próprios, de viver suas vidas, de professar suas crenças e de evoluir,
segundo o ritmo de que sejam capazes, sem estarem sujeitos a compulsões de
qualquer ordem e em nome de quaisquer princípios.” Claudio Villas Bôas
também apostava na cultura: “Se
achamos que nosso objetivo aqui, na nossa rápida passagem pela terra é acumular
riquezas, então não temos nada a aprender com os índios. Mas, se acreditamos
que o ideal é o equilíbrio do homem dentro de sua família e dentro de sua
comunidade, então os índios têm lições extraordinárias para nos dar". Na
trilha aberta por um segue a passos largos o outro.
Os heroicos Orlando
(1914 - 2001), Claúdio (1916 - 1998)
e Leonardo Villas Bôas (1918 - 1961)
tinham consciência dos seus limites, estrangeiros que eram em terras nacionais
indígenas. Mas sabiam da importância e da necessidade de cruzarem pacificamente
a fronteira sociocultural e evitar (o impossível!) que outros homens (mal intencionados)
chegassem antes. Assim, entre
uma batalha e outra, abriram 1.500 quilômetros de picadas, percorreram 1.000
quilômetros de rios, abriram 19 campos de pouso, desbravaram 43 vilas e
cidades, contataram 14 tribos e enfrentaram mais de 200 casos de malária. O
preço foi alto, mas valeu a pena entrar num embate (ainda longe do fim) que
garantiu direitos mínimos aos povos da floresta, até então considerados “ninguém”.
Xingu (Brasil, 2011), de Cao Hamburger, é um pertinente registro da histórica saga dos
irmãos Orlando (Felipe Camargo), o responsável
pelas articulações entre as desiludidas etnias e o titubeante poder oficial, Claúdio
(João Miguel), o homem de campo inconformado com a situação dos silvícolas,
sertanista extremamente consciente das consequências de cada gesto de
“benevolência” dos brancos (inclusive dos seus): “Nós somos o antídoto e o veneno”, e Leonardo
Villas Bôas (Caio Blat), o impulsivo e romântico desbravador que via a Expedição
Roncador-Xingu como algo importante, porém, cansativo. A narrativa abrange o período que vai da Expedição
Roncador-Xingu (1943) à criação da reserva indígena Parque Nacional do Xingu
(1961). O fascinante drama, que lembra um
documentário ao vivo, tamanha a entrega do elenco de atores (destaque para a
excelência de José Miguel) e não-atores (os indígenas) ao projeto
cinematográfico, é inspirado em fatos reais. Com roteiro do próprio Hamburger,
em colaboração com Elena Soarez e Anna Muylaert, o épico traz
à tona um Brasil de ontem, mas que ainda hoje insiste em tropeçar nos próprios
erros.
Cao é um cineasta que se destaca pela elegância na
direção. Um dos poucos diretores que consegue dizer muito com o mínimo, sem
jamais subestimar a inteligência do espectador e sem abusar de clichês. Xingu é a sua versão (compacta) de tudo
que ouviu e leu (e filtrou) sobre os Villas Bôas, das desavenças familiares aos intensos conflitos com as tribos e
posseiros, sem negligenciar as conturbadas negociações governamentais para a
implantação do “território indígena”. É um filme que instrui, emociona e também
constrange ao falar de direitos (reais), conquistas e barganhas. Em sua singularidade,
não esgota o assunto sobre a posse da terra e das almas evangelizadas (e
perdidas) desde os primeiros invasores europeus. No entanto, ao retratar com
eficiência o trabalho dos irmãos Villas Bôas espera-se (ao menos) que desperte interesse (estudantil) e até abra discussão (comunitária) sobre um
tema tão caro à maioria dos brasileiros.
Xingu foi rodado em
belíssimas locações. A paisagem mítica e selvagem (cenário perfeito para a
trama) garante o realismo na excepcional fotografia de Adriano Goldman,
emoldurando uma história que, além da reflexão, convida o espectador urbano a
fazer uma viagem sensorial. Um filme imperdível!
Fotos: Beatriz Lefèvre
Legal, Joba!
ResponderExcluirMe convenceu a ver o filme... Aproveito pra recomendar outro, que não é fácil de achar (mas vale a pena tentar), sobre o conflito entre o latifúndio no MS, um filme ítalo-brasileiro (do italiano Marco Bechis). Excelente. Aqui tem o trailer:
http://www.youtube.com/watch?v=sYGvaY2_15k
Grande abraço!
Olá, Ravel.
ExcluirEspero que Xingu lhe cause a mesma
ou melhor) impressão que a mim.
Vou pesquisar sobre o filme que falou e lhe retorno.
Abração.
T+