Na vida
de cada espectador há sempre um momento especial vivido numa sala de cinema e
ou de teatro: uma cena, uma sequência cinematográfica, uma dança que o
arrebatou da cadeira, que o arrepiou, que embaçou seus olhos..., que o fez
marejar. Sei que para a maioria pouco ou nada se compara a Gene Kelly
(1912-1996) cantando e dançado na chuva no delicioso Singin' in the Rain (Cantando na Chuva, EUA, 1952), que está
completando 60 anos de preferência e referência dos clássicos musicais. É um
dos meus preferidos, também. No entanto, quando morava em Brasília, lá pelas
décadas de 1970/1980, a capital federal era palco de muitas mostras de cinema.
Numa delas conheci a obra espetacular de Norman McLaren (1914-1987) e fiquei maravilhado
diante de seu curta-metragem Pas de Deux
(1968).
No começo
da década de 1990, quando me mudei para Curitiba, assisti ao melhor espetáculo
do Ballet Teatro Guaíra, o impactante Treze
Gestos de Um Corpo, criado em 1986 pela coreógrafa portuguesa Olga Roriz,
que dirigiu a versão paranaense. E vi, acho que na Cinemateca, o perturbador média-metragem
que apresentava, na íntegra, o espetáculo Café
Müller (1985), a peça coreográfica criada por Pina Bauch, em 1978, sobre os
percalços do (des)amor, e que tem na trilha sonora a belíssima ária O Let Me Weep For Ever Weep (da ópera The Fairy Queen), de Henry Purcell
(1659-1695). Esta é a mesma dança que abre o filme Fale com Ela (Hable com
Ella, 2002), de Almodóvar. É impossível resistir incólume à experiência gestual/auditiva/visual
de Café Müller.
Pina é o documentário de Win
Wenders sobre (e para) Pina Bausch (1940 - 2009), a bailarina, coreógrafa e
diretora do Tanztheater de Wuppertal. Ele não é a cinebiografia de uma
precursora da dança contemporânea e tampouco trata da sua morte, aos 68 anos. É
sobre o seu fantástico legado. É sobre a vida que partilhou nos palcos com seus
bailarinos e o que ficou. É sobre o fazer uma dança que era teatro que era meta
fora da dança convencional. É sobre a desconstrução da palavra e do silêncio. É
sobre a incomunicação do homem e da mulher e entre eles, cada vez mais cada uns,
nos centros urbanos. É sobre um corpo de baile e o corpo dos seus bailarinos intensos
e transbordantes. Poucas vezes a palavra foi tão visual.
Win
Wenders é autor de um cinema (em movimento) nem sempre acessível ao grande
público. A arte de Pina Bausch também não o era. Há em Bausch (e mesmo em
Wenders) um inconformismo constante, uma rebeldia à flor da pele, uma necessidade
de cutucar o “establishment” cultural, de reencontrar a humanidade no homem. Uma
necessidade de discutir o papel do artista e cidadão (ora palco ora plateia). No
Brasil dos anos 1970 o genial Gianfrancesco Guarnieri (1934 - 2006) também processou
uma nova linguagem dramatúrgica com as suas afiadas alegorias em Um Grito Parado no Ar (1973) e Botequim (1973). No teatro de
resistência (que cutucava a todos com vara curta), o seu “assim é se lhe
parece” (a situação) foi além da metáfora. Ainda hoje, nos palcos, há muita
linguagem de ontem (na dança e na dramaturgia), possivelmente por ser mais
contemporânea.
Pina (Pina, Alemanha,
França, Reino Unido, 2011) é um filme muito bonito, intenso, cheio de
novidades coreográficas para uma trilha fascinante. Um filme-homenagem de Win
Wenders e do Corpo de Baile do Tanztheater de Wuppertal à Pina Bausch. Não há
um narrador, há apenas pensamentos preenchendo o vazio dos bastidores. São depoimentos
emocionados de velhos e novos bailarinos que vão ganhando forma e ganhando
graça e ganhando estranheza ao irromper espaços públicos de uma Wuppertal solitária,
mecanizada e indiferente à gente que baila na sua periferia.
Essa
característica de Wenders, de personagens sempre em movimento (em algum veículo
ou a pé) e quando rapidamente “estacionados” em algum local (fechado), um
obsessivo aparelho de TV estará (sempre) desligado, aqui ganha um elemento inusitado,
mas repleto de significado. Em Pina, onde nem mesmo a expressão silenciosa dos
bailarinos é estática, o diretor utiliza um antigo projetor de cinema para mostrar,
num palco de teatro e para uma plateia de bailarinos, filmes que registram
curiosos momentos da coreógrafa. Wenders agasalha, assim, duas linguagens que
ainda se digladiam em seus palcos frios: teatro e cinema.
Pina em 3 D é uma
produção que esbanja contemporaneidade. A tecnologia que enche os olhos (e se
esparrama pela sala), fascinante na cor, no enquadramento, na proximidade e
distanciamento fotográfico, e está a serviço da arte, é mais do que bem-vinda. Mas,
verdade seja dita, de nada valeria todo esse aparato técnico se a ideia fosse
de meros registros planos das espetaculares remontagens (mesmo que fragmentadas)
de Café Müler, A Sagração da Primavera, Kontakthof
e Vollmond. Entretanto, tudo isso
parece menor diante dos arquivos que mostram Pina Bausch (que diziam ser uma
mulher triste) em diferentes momentos de felicidade.
Win
Wenders, não abre espaço para a pieguice, nem mesmo neste breve documentário.
Sabiamente dispensa discursos críticos de pessoas alheias à dança-teatral de
Pina (e “família”), que arrebatou bailarinos mundo afora. O que lhe interessa é a
essência de quem vive para dançar e dança para viver. Pina não é um filme-satisfação
para a classe de bailarinos e plateia seleta que acreditam em vida inteligente
além do ballet clássico, mas um espetáculo para quem gosta de arte além dos
rótulos.
Que leitura bonita do filme. O surpreendente é como Pina continua dizendo o essencial, mesmo através da fala alheia. Abraço amigo
ResponderExcluirOlá, Carlos.
ExcluirO gesto é sempre o que nos (co)move!
Abração!