domingo, 19 de dezembro de 2021

Crítica: CORA


C  O  R  A

por Joba Tridente 

Segundo o Houaiss: “Memória é a faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos. (...) Aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; lembrança, reminiscência.” Sendo assim, é possível construir para si mesmo uma memória não vivida de família (que não conheceu), a partir objetos, cartas, fotos, fragmentos, filmes caseiros, entrevistas envoltas em “segredos”? Essa é a premissa da intrincada ficção experimental CORA (Brasil/Dinamarca, 2021), dirigida e roteirizada por Gustavo Rosa de Moura e Matias Mariani. 

O ano é 2064. Querendo entender o passado de sua família, a dinamarquesa Cora (Charlote Munk) organiza um arquivo que encontrou num velho HD, com um documentário inacabado (e em grande parte deteriorado) no qual, Benjamim, seu pai brasileiro, tenta investigar, 50 anos antes, a história dos próprios pais dele e descobre que ambos faziam parte de um complexo quebra-cabeça familiar, cheio de traumas e tabus, em que ele começou a se ver como uma das peças principais.” 


Narrado no estilo documentário doméstico..., bem próximo ao pseudodocumentário (ou found footage - filme encontrado)..., o melodrama CORA, que inicia com a providencial advertência: “Atenção: este filme contém imagens e sons corrompidos”, faz uma viagem no tempo (de volta ao passado), não para um acerto de contas, mas para que a personagem-título saiba qual é a herança do sangue que traz nas veias. O enredo exige muita atenção do espectador. Pois não é fácil acompanhar as idas e vindas, cortes e recortes e interrupções narrativas dos complicados personagens em um contexto familiar tão disfuncional que, acho, nem Freud explica. 

Uma vez que seu roteiro é nada linear e as histórias vão se misturando, se encadeando, em meio a comentários e imagens “aleatórias”, trazendo mais sombra que luz sobre Teo..., um espectador ansioso pode perder o interesse em pouco tempo, na tentativa de saber quem é quem no disse me disse que cerca os ancestrais de Benjamim (André Whoong) e Cora. Um enigma digno da Esfinge: Decifra-me ou te devoro. Num país (do futuro) em frangalhos, muita coisa realmente é devorada. Até mesmo “Édipo” sucumbe ao caos pessoal ao buscar compreender e/ou justificar a cegueira familiar. 


Em Cora, chama mais atenção a boa ilusão técnica de efeitos especiais (dos pixels corrompidos) do que a narrativa truncada com suas desventuras sem fim (mortes, crimes, loucura, separações, casamentos, viagens, isolamentos). No alinhavo de linhas quebradas e/ou embaraçadas, os elementos “biográficos” (da vida de Teo) que dão suporte ao enredo são frágeis e distantes, o que dificulta a empatia por algum membro, vivo ou morto, desta família dissonante. 

Sabe-se pouco das características de cada um. E o que se sabe, na fragmentação dos registros corrompidos, não parece matéria suficiente para despertar interesse sequer sobre os seus destinos. O exagero na fragmentação de dados, além de lhes “roubar a face” e a “fala”, os torna irrelevantes..., no passado, presente e/ou no futuro. Assim, para subir nesta árvore genealógica, com tantos galhos cortados, é preciso ter paciência, para não se perder entre a espessa folhagem. Ou esperar a queda dos frutos maduros..., se é que vão amadurecer até o final da rama. 


Os personagens que, praticamente, têm cara e papel com alguma relevância na trama são: Raul (Fabio Marques Miguez), o melhor amigo do Teo, com seu arquivo de fotos, cartas e desenhos; o falastrão Haroldo (Sylvio Zilber), amigo de faculdade de Isabel e Xavier (pais de Teo); e a enferma Isabel (Vera Valdez), mãe de Teo. Dois atores e uma atriz num ótimo jogo de cena, diante da câmera, dando naturalidade ao pseudodocumentário. Da personagem Cora, apenas a narração e os comentários sobre os arquivos audiovisuais recolhidos por Benjamim, que ela encontrou num velho HD. 

Nos créditos finais há uma indicação de que Cora é um filme-resposta ao romance Antonio, publicado em 2007 (que não li), de Beatriz Bracher, mãe do diretor Matias Mariani. Talvez daí o conceito mais literário do que cinematográfico. Enfim, um filme para um público muito seleto e em busca de novas linguagens. CORA estreia, nos cinemas, no dia 23 de dezembro de 2021, com distribuição da Pandora Filmes.

Trailer: aqui.

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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