quinta-feira, 29 de abril de 2021

Crítica: Nazinha, Olhai Por Nós


 NAZINHA, OLHAI POR NÓS

por Joba Tridente 

Começo as minhas considerações ao documentário Nazinha, Olhai Por Nós, citando informações dos seus créditos finais: Com 812.000 detentos, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. 40% dos detentos foram presos antes do julgamento e ainda aguardam a sentença. Deste plural, o filme foca na singularidade de quatro casos envolvendo detentos das prisões masculina e feminina de Belém do Pará.

Dirigido por Belisário Franca (Menino 23; Soldados do Araguaia; O Paradoxo da Democracia), que dividiu o desenvolvimento do roteiro com Ismael Machado e Yan Motta, Nazinha, Olhai Por Nós acompanha a fala, o desabafo, a confissão de quatro detentos (e de alguns familiares seus) à espera do benefício de saída temporária para celebrar o Círio de Nazaré: Julio (vários crimes), Everaldo (drogas), Neuza (acusada de assassinato) e Raissa (envolvimento com traficante de drogas). Quatro parágrafos e uma referência: Nazinha (Nossa Senhora de Nazaré), cuja cerimônia religiosa, reúne milhares de pessoas, numa onda gigantesca de gratidão e fé...


A sociedade não quer a ressocialização. Ela quer vingança. Ela quer que as pessoas que vêm pra cá, pra dentro de uma prisão, simplesmente desapareçam. Assim como se fossem seres de outro planeta”, diz Carmen Botelho, Diretora do Prisão Feminina. De certa forma, as prisões brasileiras (?), mostradas em reportagens ou documentários, são realmente um outro mundo. Aqui, o interior labiríntico da prisão masculina, onde se encontram presos Julio e Everaldo, por exemplo, é o registro de uma descida ao inferno dos piores pesadelos. A imagem é tão perturbadora e longe do racional que lembra o cenário caótico, do mais abominável aglomerado humano, de algum filme ficção sobre distopia, onde a degradação humana não tem limites. Em relação a ela, a prisão feminina, onde estão Neuza e Raissa, até parece organizada, harmoniosa e iluminada. Mas, como se sabe, a realidade é bem mais perversa e apavorante que a ficção.

Ainda que as “imagens (subliminares?) em segundo plano” angustiem o espectador, o documentário não trata da situação dos ambientes carcerários na ressocialização dos prisioneiros, mas das particularidades sociais e religiosas dos quatro detentos (em particular) que tentam justificar ou buscar justificativa para as suas privações de liberdade e o apego à fé à Nazinha. É difícil imaginar que, num lugar onde muitos prisioneiros são esquecidos pela própria família..., para não dizer que estão ali abandonados apenas pela morosíssima justiça (brasileira?)..., algum preso se apegue à fé (que move montanhas) para abrir as grades da cela na esperança de uma nova vida em sociedade. Esperança que, na maioria das vezes, alimentada pelo vício criminoso, mal dá uma volta no círculo vicioso da marginalidade. Porém, contrariando a opinião formada, amparados pelo bom comportamento no cativeiro, pelo cumprimento de parte da pena e (ao menos aparentemente) pelo voto de religiosidade, alguns cativos conseguem ser agraciados com o benefício de saída temporária para celebrar (no purgatório) às comemorações do Círio de Nazaré. Para uns, a oportunidade faz o fujão. Para outros, o fim da festa religiosa é a resignação da pena.


Algumas doutrinas religiosas pregam o eterno retorno à vida para os humanos pagarem seus “pecados” e evoluírem. As leis pregam o contínuo retorno às celas para os criminosos (em sua grande maioria pretos e pobres) pagarem seus crimes e regressarem “recuperados” ao convívio social. Ir ao céu, no seio da família, e ou voltar, diretamente do purgatório, ao inferno carcerário, onde vão estar sujeitos à violência física e psicológica, pode não ser apenas opcional para o prisioneiro com direito à saída temporária. De um caminho ao outro, há reta, atalho e encruzilhada e mesmo rua sem saída. É aos detalhes dos sonhos de sair e jamais voltar aos infernos, que Belisário Franca abre os microfones e, feito um bom ouvidor, escuta com tranquilidade as lamúrias de Julio, Everaldo, Neuza e Raissa, sem os julgar. Abre as lentes registra de passagem a paisagem diabólica que demiurgo algum criou, sem atentar (a não ser no segundo do susto) aos outros habitantes (pouco amistosos) locais. Acompanha a fala de advogados, familiares, juízes, delegados, sem se posicionar. É claro que, meia palavra ou meia imagem, para um bom entendedor (de longe) é uma consideração inteira.

Como diz Julio: “Estamos sempre presos, na prisão ou fora dela, à família, à casa e seus objetos, ao trabalho...” O documentário Nazinha, Olhai Por Nós expõe fatos, mas não se interpõe entre os condenados e a justiça. Tampouco santifica bandidos e ou demoniza a justiça com a gratuidade de discursos panfletários. Não se vê, em momento algum, Belisário se deixar levar pela vaidade do senso crítico (de ter uma câmera e um microfone à mão) e tomar o protagonismo da situação. Se houve deslumbramento ou vaidade, caiu no corte final. Essa isenção de (pre)julgamento narrativo dá ao espectador a oportunidade de tirar suas próprias conclusões diante dos registros filmados com o devido distanciamento. O que não quer dizer que documentário seja um iceberg à deriva. Há comoção, mas sem apelar à pieguice clichê e ou à indução emocional com trilha sonora chorosa.


Enfim, Nazinha, Olhai Por Nós é um documentário que se atém tão somente ao objeto do bom roteiro..., com começo, meio e fim. Não fica caçando assunto para aumentar o tempo e o lugar de fala. Dá a cada um dos parágrafos (Julio, Everaldo, Neuza e Raissa) a metragem ideal para explanação íntima e sem apelar para a cumplicidade do público ao narrador..., e à referência (Nazinha, Nossa Senhora de Nazaré - Padroeira de Belém do Pará) uma coadjuvação impressionante, tanto pela metáfora quanto pelo desempenho da fé religiosa na mente dos cidadãos (Estamos sempre presos, na prisão e fora dela). A direção de Belisário Franca é excelente, a edição de Yan Motta é dinâmica e a ótima fotografia de Thiago Lima enquadra muito além do que é essencial aos olhos (e mentes).

*Estreia prevista, no streaming TvoD (NOW, Google Plai, iTunes), para o dia 6 de maio de 2021, com sessões especiais em salas de cinema a partir de 29 de abril de 2021.


NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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