A Cidade dos Piratas
por Joba Tridente
Quando se fala em desenho animado, a referência do
grande público é a de entretenimento para crianças, com bichinhos e objetos
falantes, canções grudentas e histórias edificantes. Mas, no submundo das
pranchetas, há muita história ao gosto dos espectadores adultos, que chegou às
salas de cinema e ou pode ser encontrada na web, como Psiconautas - As
Crianças Esquecidas; Uma Grande Aventura; Anomalisa; Túmulo dos
Vaga-lumes; In This Corner of the World; Persépolis; Mary &
Max - Uma Amizade Diferente; Rugas; Quando o Vento Sopra; A
Festa da Salsicha; Chico e Rita; Fritz, O Gato; O Homem Duplo;
Waking Life; Valsa com Balshir; A Ganha-Pão; Perfect Blue;
Akira; Heavy Metal; As Bicicletas de Belleville; O Congresso
Futurista; Idiots and Angels; O Menino e o Mundo; Uma
História de Amor e Fúria; Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’roll...
Não há desculpas para quem gosta de animação-cabeça, com temática (sexual,
social, política, religiosa) contemporânea, achar que apenas o público infantil
é priorizado.
Isso posto, vamos ao que interessa: A Cidade dos
Piratas. Quem conhece os filmes do cineasta gaúcho Otto Guerra talvez
já saiba (será?) o que esperar da sua mais recente animação em longa-metragem A
Cidade dos Piratas. Porém, o espectador de primeiro desenho animado e ou o que
só sabe da sua desconcertante obra cinematográfica apenas de ouvir falar e ou,
ainda, no momento, está curioso por causa das célebres tiras Piratas do
Tietê, da quadrinista Laerte Coutinho, que serviu de inspiração para
o filme, vai ter uma baita surpresa..., é capaz até de ficar sem chão. Os
machos convictos que se cuidem!
É que, longe da sua zona de conforto de mero
espectador, alinhavar a balbúrdia, com tanto assunto polêmico (e muito pertinente
no Brasil do retrocesso!)..., como transexualidade e homofobia; bissexualidade e
preconceito sexual; machismo e feminismo; assédio e lavagem cerebral; poesia e
palavrão; poluição urbana e mental; criatividade, desenvolvimento de roteiro e produção
cinematográfica; agruras do câncer de cólon de Otto..., mixado a várias
entrevistas reais de Laerte, é nada fácil.
Pelo bom uso e anárquico abuso da metalinguagem, ousaria
dizer que Otto faz da animação A Cidade dos Piratas, o seu 8 ½,
de Fellini..., uma vez que (diretor e personagem na trama) ele discorre com
amargura e humor corrosivo sobre os obstáculos que precisou vencer, do início
do projeto, em 1993, quando a ideia era simplesmente animar as tiras Piratas
do Tiête, até a mudança de gênero (também sexual) de Laerte, que já não se
sentia mais à vontade para adaptar o passado machista e tortuoso de seus
personagens saqueadores e acabou turvando as águas do rio-esgoto Tietê, alterando,
assim, completamente o curso de navegação do desenho animado.
Toda via do tumultuado tráfego n’A Cidade dos
Piratas, no entanto, é bom frisar que, nesse ir e vir de piratas por tintas
nunca antes navegadas, os roteiristas Rodrigo John, Laerte Coutinho, Thomas
Créus e Otto Guerra não desembarcaram e tampouco desterram completamente os
velhos piratas das tirinhas..., apenas atenuaram seu protagonismo. No noves
fora da embarcação da discórdia, entre mortos e feridos, após um prólogo cruel,
quem marca maior presença no enredo é o Capitão. Os demais aparecem em
flashes e ou reconfigurados em outras personagens bem consistentes (político
rancoroso, empresário enrustido, crossdresser etc), que soam como metáfora do
nosso cotidiano (retrógrado) em busca do poder ou da felicidade.
Uma vez que a trama (com suas histórias paralelas) expõe
um panorama intenso, embora íntimo e pessoal, do tumultuado processo fílmico do
desenho animado, incluindo a separação profissional do diretor com a produtora
Marta Machado e a discussão com a equipe de animadores, bem como o desnudamento
de Larte (de certo modo já visto em Larte-se), é difícil classificar o
gênero cinematográfico de A Cidade dos Piratas, com seu toque documental
e biográfico, em meio aos traços uniformes de ficção e realidade.
Talvez, com a opção de costurar retalhos de várias narrativas
(não necessariamente do universo dos Piratas do Tiête, mas sem perder a relevância)
numa cidade-labirinto autofágica, onde reina um antropomórfico Minotauro,
diria que A Cidade dos Piratas é uma animação híbrida em todos os
sentidos. Cada um vai senti-la à sua maneira. Este é o papel da arte!
Independente do que eu diga e ou do que o espectador verá na telona, a experiência
do cinéfilo será sempre única. O que não quer dizer que não possa ser
compartilhada e discutida com um público maior.
Enfim, com ou sem definição precisa de gênero, a provocativa
animação A Cidade dos Piratas, de Otto Guerra (Rocky e Hudson: Os
Caubóis Gays; Wood e Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’roll; Até que
a Sbórnia nos Separe), tem a leveza e a sutileza de um rinoceronte numa loja
de cristais finos. Portanto, esteja preparado mais para o desconforto do que
para o riso (raríssimo), mesmo diante de cenas escatológicas. Se por um lado é
tecnicamente irretocável, com suas sequências em preto e branco e ou coloridas,
gags-cartuns animadas, excelente montagem (sem perder o ritmo e ou atropelar a
narrativa, com a inserção das entrevistas de Laerte ao Roda Viva e Marília
Gabriela, entre outros programas)..., por outro, a dublagem (principalmente
de Marco Ricca) deixa a desejar. Às vezes é difícil entender as falas das
personagens..., mas isso não impede saborear alguns diálogos inteligente e a poesia
de Fernando Pessoa, bem como os desabafos de Laerte sobre a sua sexualidade (da
adolescência à terceira idade).
Não é um filme de fácil digestão, pela quantidade de
temas apresentados, mas deve encontrar um público adulto receptivo hoje, e amanhã, possivelmente um pesquisador interessado em nossos medos presentes. Como diz Laerte: O
negrume do medo surge ao nos vermos sem a proteção de uma dor que possa ser
curada. Estreia dia 31 de Outubro de 2019.
Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem
(Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já
fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à
"traumatizante" e divertida experiência de
cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power
Play (Jogo de Poder,
2003), de Joseph Zito,
rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.
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