por Joba Tridente
Em sua belíssima canção Trem das Cores (1982),
Caetano Veloso canta: “(...) As casas tão verde e rosa que vão passando ao
nos ver passar/ Os dois lados da janela/ E aquela num tom de azul
quase inexistente, azul que não há/ Azul que é pura memória de algum
lugar”..., versos que nunca esqueci, pela felicidade do “azul quase
inexistente, azul que não há, azul que é pura memória de algum lugar”
aninhado na minha memória afetiva de interiorano paulista...
Eu sabia absolutamente nada da trama (sequer li a
sinopse) de Maria do Caritó, mas ao ouvir a diva Maria Bethânia cantando
Santo Antônio (2010), de J, Velloso, na bela abertura (em tons de azul
que não há) da nostálgica comédia romântica circense Maria do Caritó,
abri um grato sorriso. Daí, ao ver os tons “sagrados” de azul (que é pura
memória) se espalhando pela tela e se misturando às cores “profanas” dos
cenários e ao sentir a cantilena das falas em verso (Meu Santo Antônio
querido, eu vos peço por quem sois, dai-me o primeiro marido, que o outro eu
arranjo depois.) e prosa (Caritó é uma pequena prateleira no alto da
parede, ou nicho nas casas de taipa, onde as mulheres escondem, fora do alcance
das crianças, o carretel de linha, o pente, o pedaço de fumo, o cachimbo. O termo
“caritó” também é usado para falar da moça que ficou na prateleira, sem
uso, esquecida, guardada intacta...), se acomodando agradavelmente em meus
ouvidos, me deixei arrebatar e saboreei, por 90 minutos, sem perder o riso, uma
deliciosa história repleta de sentimentos de liberdade e de humor ingênuo que
não perde o viço.
Baseada na aclamada peça teatral homônima, de Newton
Moreno, que dividiu a roteirização com José Carvalho, a envolvente história de Maria
do Caritó, dirigida por João Paulo Jabur, gira ao redor de Maria
(Lilia Cabral) que, ao sobreviver a um parto de risco, que culminou com
a morte da mãe, foi prometida pelo pai (Fernando Zylber) ao Santo
Djalminha. Acontece que, aos 50 anos, a ardorosa solteirona anda a cada dia
mais desejosa de um homem que lhe tire a virgindade prometida ao tal santo.
Maria quer um amor real em vida e
não uma alegoria pós-morte. Toda via amorosa dos calores da menopausa, no
entanto, na pequena Úrsula, onde mora e é venerada como milagreira, não é
fácil driblar os sacrossantos interesses financeiros e político-religiosos do
pai, do Coronel (Leopoldo Pacheco) e do Monsenhor (Fernando
Neves) e muito menos conseguir um marido para a sua “santitude”. Porém, enquanto
ela e sua amiga e confidente Fininha (Kelzy Ecard) atormentam
Santo Antônio, na esperança de um milagre (humano) que aquiete os desejos da
carne, a chegada de um Circo Mambembe naquela cidadezinha mergulhada na fé cega,
trazendo em seu elenco o Galã Russo Anatoli (Gustavo Vaz), o Palhaço
Fonsequinha (Fernando Sampaio), a atriz Ingênua (Priscila
Steinman) e a proprietária Teodora (Juliana Carneiro da Cunha),
pode botar aquele lugar de pernas pro ar... Será que “fé demais não cheira bem”?
Ôps!
Maria Caritó, com seu humor brejeiro, é o tipo
de filme que me parece fazer diferença (e falta!) no atual cenário cinematográfico
(e quiçá político) brasileiro. O enredo é singelo, porém extremamente cativante,
com seu clima bucólico, piadas inocentes (ou caipiras) que provocam um riso fácil
(sem jamais subestimar a inteligência de qualquer espectador) e mensagens
subliminares (sobre política, cultura e religião) muito mais eficientes do que aquelas
dos filmes cabeça-de-parafuso tão em moda (e que não vêm com um compêndio do
cinéfilo).
Por sua brasileirice, a narrativa nordestina poderia ganhar vida e
forma em qualquer lugar do país (a mim lembrou Minas Gerais), com suas cores de
cidade do interior, predominadas pelo azul arrepiante (cuja intensidade
emociona), ao embaralhar o cordel com a poesia marota, o teatro com o circo, o
causo com a crônica de costumes, fragmentando a fantasia e desnudando a
realidade dos sagrados palcos de papel..., e ou de Babel.
Ainda que exale um frescor agradável a todos os
espectadores, Maria do Caritó, com pitadas Fellinianas aqui e resquícios
do inesquecível A Marvada Carne (1985), de André Klotzel, acolá, deve
extasiar principalmente o público mais velho. Quanto ao público mais novo (que
perder o lugar no trem do lirismo e ignorar (?) os efeitos da catequese), pode
até encarar o trauma de Maria com algum ceticismo, mas certamente não
ficará imune ao humor leve (e sem escatologia) da boa trama.
Enfim, pelo roteiro redondo e a excelência de todos
os memoráveis tons de azul na arte de Sérgio Silveira e figurinos de Rô
Nascimento, muito bem emoldurados pela fotografia de André Horta; pelo elenco
se divertindo com a caipirice (caricatura ou canastrice) das personagens; pela
performance irretocável de Lilia Cabral; pelo ritmo narrativo e trilha sonora;
pela versatilidade dos diálogos em verso e prosa; pelo humor saudável e levemente
“picante”; pela hora e meia (que voa) de
ótimo entretenimento..., espero que Maria do Caritó, que já encantou muita
gente no teatro, agora encante um público ainda maior nas salas de cinema!
Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem
(Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já
fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à
"traumatizante" e divertida experiência de
cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power
Play (Jogo de Poder,
2003), de Joseph Zito,
rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.
“um amor real em vida e não uma alegoria pós-morte” é uma frase que certamente utilizarei em algum poema! valeuzão pela crítica!
ResponderExcluir..., grato pela visita, leitura e considerações, Quilômetro-a-Pé. ..., quando escrever o seu poema e utilizar minha frase, não deixe de compartilhar. ..., grande abraço e sucesso ao seu novo blog. ..., por que abandonou (2010 e 2013) os outros dois? T+!
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