sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Crítica: O Insulto


O Insulto
por Joba Tridente*

Sempre que ouço, vejo ou leio algo relacionado ao Oriente Médio, me lembro do fascinante conto Micrômegas (1750), de Voltaire (1694-1778), que narra, com muito sarcasmo, as aventuras espaciais de Micrômegas, um indivíduo de oito léguas de altura, originário da estrela Sírio, que, ao ser condenado por suas estranhas ideias (como “querer saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era da mesma natureza que a dos caramujos”), decide fazer uma viagem filosófica pelo Universo e, acompanhado de um filósofo de Saturno, chega a Terra, na margem setentrional do Mar Báltico, a 5 de Julho de 1737. Aqui eles conhecem outros filósofos e debatem sobre a essência das coisas, do espírito, da matéria, esmiuçando a estupidez de todos os seres: “Sabeis, por exemplo, que neste momento, cem mil doidos da minha espécie, que usam chapéus, matam cem mil outros animais que usam turbante ou são massacrados por eles. Por toda a Terra é assim que se procede desde tempos imemoriais. (...) Trata-se, informou o filósofo, de um pouco de lama do tamanho do vosso calcanhar. Não é que qualquer dos Homens que se deixa degolar pretenda algumas migalhas dessa lama. Trata-se apenas de saber se ela é pertença de um certo homem chamado “Sultão” ou de outro a quem denominam, não sei porquê, “César”. (...) Nem um nem outro viram ou chegarão a ver o pequeno torrão em litígio; e quase nenhum destes animais, que mutuamente se degolam, viu o animal por quem se deixa matar.”.


Diante do primoroso filme libanês O Insulto (The Insult, 2017), do diretor libanês muçulmano Ziad Doueiri, que divide a autoria do roteiro com sua esposa libanesa cristã Joelle Touma, também me lembrei de Micrômegas de Voltaire. Embora se passe nos dias de hoje, em Beirute, o fascinante drama de tribunal, envolvendo um libanês nacionalista e um palestino refugiado, chafurda nas cinzas de um passado explosivo que incide no presente, na tentativa de apagar as milenares brasas intermitentes em busca de conciliação.

Em O Insulto, o pivô da discórdia é uma calha na sacada do apartamento onde vivem o mecânico libanês cristão Tony Hanna (Adel Karam, ótimo) e sua mulher grávida Shirine (Rita Hayek). Após um incidente com vazamento de água da unidade, o construtor Yasser Salameh (Kamel El Basha, excelente), um refugiado palestino muçulmano responsável pelas reformas de fachada na rua, tenta consertar a tubulação e é rechaçado por Tony. Na exaltação dos ânimos, Yasser profere um palavrão que Tony toma como insulto e decide processá-lo, se não receber um pedido formal de desculpas..., que não vem como ele esperava. Essa rixa entre o irascível macho libanês e o estoico macho palestino evolui para ofensas xenofóbicas e agressão física. Aí, o que era uma briga insignificante, por causa do vazamento de um cano, toma proporções inesperadas e vai parar num tribunal superior, onde Tony é defendido pelo renomado Wadji (Camille Salameh), alinhado com os cristãos, e Yasser pela jovem advogada Nadine (Diamand Bou Abboud), simpática à causa palestina. O prolongamento da ação judicial, no entanto, com os advogados apresentando dados históricos abomináveis, para justificar ou agravar o procedimento dos seus clientes, acaba despertando o interesse da mídia sensacionalista, ocasionando um inflamado enfrentamento entre libaneses e palestinos...


Dito assim, até parece o roteiro de um filme surreal, absurdo, de humor negro. E poderia ser, não fosse a perspicácia de Doueiri e Touma em acertar dois alvos com uma seta única, ao levantar o tapete médio-oriental que cobre libaneses e palestinos (e israelenses, já que a história tem dois lados, mas sempre cabe adendos) para que as mágoas nacionalistas de um e de outro, para lá varridas, ganhem luz e voz num tribunal onde, aparentemente, não fazem parte da teima em questão. E quanto mais dão corda aos ecos do passado, para tecer a trama do presente, fazendo a verdade de cada um mudar de lado, mais evidente fica que o veredicto é o que menos importa nesse drama de rara inteligência, pois não há água suficiente para lavar tanto ódio contido numa simples desavença.

Com argumento sólido (cabível em qualquer região desse mundo de homens hostis), inspirado em fato ocorrido com o próprio Ziad Doueiri, a narrativa, que se desvela meticulosa nas ruas e tribunais, não requer conhecimento prévio do espectador para compreender o trágico ponto de ebulição da história. Mas deseja um espectador aberto à pertinente reflexão sobre a quebradiça humanidade e seus antigos conceitos de posse, de autoritarismo, de religião: “Não sou Jesus Cristo para dar a outra face!”, e de fé cega e língua afiada: “Não vamos resolver isto fingindo nos amar!”.


Ainda que soe pesado em sua dramatização, com registros impressionantes da Guerra Civil Libanesa (1975-1990), O Insulto tem alguns momentos de ternura, de leveza, e até mesmo um breve ensaio de humor, ao ironizar os produtos made in China e made in Germany e em sequências envolvendo o esquentado Tony e diversas autoridades. Se bem que o diálogo dele com um governante é muito mais pungente, pela invejável veracidade, que gracioso.

Indicado ao Oscar de filme estrangeiro, prêmio de melhor ator para o palestino Kamel El Basha, no Festival de Cinema de Veneza, proibido na Cisjordânia, O Insulto traz o olhar doméstico de um diretor e roteirista que conhece os sotaques religiosos e étnicos da região e não teme abrir feridas não cauterizadas da Guerra Civil Libanesa (que matou mais de cem mil cidadãos) para falar de um anátema: conciliação. Doueiri busca na arte cinematográfica um diálogo praticamente impossível no dia a dia de uma gente de pavio curto pronto para a flama e que se equilibra no fio da navalha.

Enfim, considerando a direção segura, que busca a naturalidade do elenco irretocável; o argumento corajoso e convincente; a inteligência do script no desenvolvimento de questões tão (explosivamente) delicadas; o nível dos diálogos ferinos; a boa edição..., se gosta de dramas políticos, de filmes provocativos que te tiram da sua zona de conforto e te fazem pensar, por um bom tempo, sobre as relações humanas e o papel do homem (incluindo você) na Terra, não perca!


Talvez O Insulto não seja tão perturbador quanto O Atentado (2012)..., filme banido em 22 países da Liga Árabe e que recentemente levou Ziad Doueiri a se defender de traição, em um tribunal militar, por ter filmado algumas cenas em Israel..., mas ele também incomoda e toca num ponto crucial daquela (?) cultura: a intolerância. O que também me traz à lembrança a clássica composição “Por Quem Os Sinos Dobram”, de Raul Seixas: “Nunca se vence uma guerra lutando sozinho/ Você sabe que a gente precisa entrar em contato/ Com toda essa força contida é que vive guardada/ O eco de suas palavras não repercutem em nada/ É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro/ Evita o aperto de mão de um possível aliado/ Convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo/ Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo/ Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz/ Coragem, coragem, eu sei que você pode mais/ É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro/ Evita o aperto de mão de um possível aliado/ Convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo/ Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo.”

*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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