A Forma da Água
por Joba
Tridente*
Para quem gosta de histórias baseadas em fatos
imaginários, A Forma da Água (The Shape of Water, 2017), do diretor
mexicano Guillermo del Toro, é
deliciosamente potável e extraordinariamente refrescante no atual cenário
enevoado pelo denuncismo hollywoodiano. A sua trama, muito bem tecida no
universo do conto maravilhoso, por del Toro e Vanessa Taylor, enreda o espectador,
numa alegoria de fascinante mistério e sedução, do belíssimo prólogo ao
inebriante epílogo.
Aparentemente simples, como se um Canto de Sereia ou um Solo de
Tritão para entreter crianças, A Forma da Água tem narrativa adulta, ousada, que não se apequena nem diante
de questões de racismo, de homofobia, de trabalho, de violência sexual, do moralismo
vigente nos anos 1960 (época em que se situa esta fábula). Antes de prosseguir,
é bom que se diga que não se trata de um drama social, e as questões citadas
são bem-vindas pontuações (quase) subliminares no excelente roteiro..., que está mais
para um drama romântico surreal.
Já que é hora de dar asas à imaginação..., era o ano de
1962 e, na quentura da Guerra Fria (1947-1991), os EUA e a URSS disputavam a
primazia do espaço sideral quando a rotina de trabalho de Elisa (Sally Hawkins),
servente em um laboratório de pesquisa espacial, em Baltimore, foi
quebrada com a chegada do impiedoso agente do governo norte-americano Richard Strickland (Michael Shannon), trazendo prisioneiro um estranho e belo Anfíbio (Doug Jones, de Hellboy, Fauno do Labirinto, A Colina Escarlate),
capturado no Amazonas. Elisa, que mora
num pequeno apartamento em cima do suntuoso Cinema Orfeu, é muda e só tem dois
amigos: o vizinho Giles (Richard Jenkins), um desenhista
publicitário com quem divide sonhos românticos e a felicidade dos musicais que
assistem na tv, e Zelda (Octavia Spencer), uma colega de
trabalho com quem troca confidências e divide o serviço noturno de limpeza no laboratório.
Assim, por conta de um cotidiano tão mínimo, ao conhecer casualmente o espécime
raro, cuja constituição física assemelha-se à de um humano, compreende-se
porque é tomada de grande ternura por ele e decide libertá-lo de um destino
possivelmente trágico.
Tanto a sinopse quanto o trailer (para quem fez a
besteira de assistir) de A Forma da Água
pode levar o espectador a concluir que se trata de mais uma história de ficção infantojuvenil
de seres alienígenas capturados para pesquisa científica e libertos por alguma
alma benevolente e ou de uma fantasia no estilo de A Bela e A Fera. Ele não está de todo enganado. Porém, na via de
todo bom contador de histórias, o grande diferencial é o seu conteúdo, que
(passando ao largo das tramas de ação e aventura juvenis) desvela um inusitado
conto mágico para adultos (com reflexões sociais pertinentes), onde exala
romantismo e sensualidade e transborda sequências de sexo e de incômoda
violência física (com sangue) e de linguagem (chula).
Após o ótimo Circulo
de Fogo (2013) e o deslize A
Colina Escarlate (2015), o irregular del Toro volta às telas, fazendo bom
uso de elipses, num filme robusto sobre espécies e atos heroicos praticados por
gente que, de tão comum, é invisível na orbe dos poderosos. Entre as sutilezas do inteligente roteiro, a que
mais chama a atenção é a irônica caracterização do homem bom e do
homem mau, no embate político-militar
envolvendo o cientista russo Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg)
e o segurança norte-americano
Strickland (Shannon). Corajoso! Na
mesa das cobaias, humanidade e animalidade em nome do intangível e ou da
pátria armada, por mero capricho de conquistar o espaço, onde o homem jamais
esteve..., sem sequer compreender as nuances da vida na Terra, onde o homem sempre
esteve.
Enfim, considerando o elenco excepcional, o design de produção (com sua paleta de
infinitos tons de verde) e efeitos especiais inquestionáveis, A Forma da Água, emoldurado
com a notável fotografia do dinamarquês
Dan Laustsen, ainda que o contexto seja outro (?), é um filme à altura do
primoroso O Labirinto do Fauno (2006),
considerado a melhor obra de Guillermo del Toro. Diante de uma obra tão
singular, é até redundante dizer que é um espetáculo de encher os olhos e de
afagar o cérebro, com sua bela e imersiva história de amor e fúria conduzida
com equilíbrio e muita criatividade no melhor do “Era uma vez...”.
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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