O Insulto
por Joba Tridente*
Sempre que ouço, vejo ou leio algo relacionado ao
Oriente Médio, me lembro do fascinante conto Micrômegas (1750), de Voltaire (1694-1778), que narra, com muito
sarcasmo, as aventuras espaciais de Micrômegas, um indivíduo de oito
léguas de altura, originário da estrela Sírio, que, ao ser condenado por suas
estranhas ideias (como “querer saber se a
forma substancial das pulgas de Sírio era da mesma natureza que a dos caramujos”),
decide fazer uma viagem filosófica pelo Universo e, acompanhado de um filósofo
de Saturno, chega a Terra, na margem setentrional do Mar Báltico, a 5 de Julho
de 1737. Aqui eles conhecem outros filósofos e debatem sobre a essência das
coisas, do espírito, da matéria, esmiuçando a estupidez de todos os seres: “Sabeis, por exemplo, que neste momento, cem
mil doidos da minha espécie, que usam chapéus, matam cem mil outros animais que
usam turbante ou são massacrados por eles. Por toda a Terra é assim que se
procede desde tempos imemoriais. (...) Trata-se,
informou o filósofo, de um pouco de lama do tamanho do vosso calcanhar. Não é
que qualquer dos Homens que se deixa degolar pretenda algumas migalhas dessa
lama. Trata-se apenas de saber se ela é pertença de um certo homem chamado
“Sultão” ou de outro a quem denominam, não sei porquê, “César”. (...) Nem um nem outro viram ou chegarão a ver o
pequeno torrão em litígio; e quase nenhum destes animais, que mutuamente se
degolam, viu o animal por quem se deixa matar.”.
Diante do primoroso filme libanês O Insulto (The Insult, 2017), do diretor libanês muçulmano Ziad Doueiri, que divide a autoria do
roteiro com sua esposa libanesa cristã Joelle Touma,
também me lembrei de Micrômegas de Voltaire.
Embora se passe nos dias de hoje, em Beirute, o fascinante drama de tribunal, envolvendo
um libanês nacionalista e um palestino refugiado, chafurda nas cinzas de um
passado explosivo que incide no presente, na tentativa de apagar as milenares
brasas intermitentes em busca de conciliação.
Em O Insulto, o pivô da discórdia é uma
calha na sacada do apartamento onde vivem o mecânico libanês cristão Tony Hanna (Adel Karam, ótimo) e sua
mulher grávida Shirine (Rita
Hayek). Após um incidente com vazamento de água da unidade, o construtor Yasser Salameh (Kamel El Basha, excelente), um refugiado palestino muçulmano responsável pelas reformas de
fachada na rua, tenta consertar a tubulação e é rechaçado por Tony. Na exaltação dos ânimos, Yasser profere um palavrão que Tony toma como insulto e decide processá-lo,
se não receber um pedido formal de desculpas..., que não vem como ele esperava.
Essa rixa entre o irascível macho libanês e o estoico macho palestino evolui
para ofensas xenofóbicas e agressão física. Aí, o que era uma briga insignificante,
por causa do vazamento de um cano, toma proporções inesperadas e vai parar num
tribunal superior, onde Tony é
defendido pelo renomado Wadji (Camille Salameh), alinhado com os
cristãos, e Yasser pela jovem
advogada Nadine (Diamand Bou Abboud), simpática à causa
palestina. O prolongamento da ação judicial, no entanto, com os advogados
apresentando dados históricos abomináveis, para justificar ou agravar o procedimento
dos seus clientes, acaba despertando o interesse da mídia sensacionalista, ocasionando
um inflamado enfrentamento entre libaneses e palestinos...
Dito
assim, até parece o roteiro de um filme surreal, absurdo, de humor negro. E
poderia ser, não fosse a perspicácia de Doueiri e Touma em acertar dois alvos
com uma seta única, ao levantar o tapete médio-oriental que cobre libaneses e
palestinos (e israelenses, já que a história tem dois lados, mas sempre cabe adendos)
para que as mágoas nacionalistas de um e de outro, para lá varridas, ganhem luz
e voz num tribunal onde, aparentemente, não fazem parte da teima em questão. E
quanto mais dão corda aos ecos do passado, para tecer a trama do presente,
fazendo a verdade de cada um mudar de lado, mais evidente fica que o veredicto
é o que menos importa nesse drama de rara inteligência, pois não há água
suficiente para lavar tanto ódio contido numa simples desavença.
Com
argumento sólido (cabível em qualquer região desse mundo de homens hostis),
inspirado em fato ocorrido com o próprio Ziad Doueiri, a narrativa, que
se desvela meticulosa nas ruas e tribunais, não requer conhecimento prévio do espectador para compreender o trágico ponto
de ebulição da história. Mas deseja um espectador aberto à pertinente reflexão
sobre a quebradiça humanidade e seus antigos conceitos de posse, de autoritarismo,
de religião: “Não sou Jesus Cristo para
dar a outra face!”, e de fé cega e língua afiada: “Não vamos resolver isto fingindo nos amar!”.
Ainda
que soe pesado em sua dramatização, com registros impressionantes da
Guerra Civil Libanesa (1975-1990),
O Insulto tem alguns momentos de
ternura, de leveza, e até mesmo um breve ensaio de humor, ao ironizar os produtos
made in China e made in Germany e em sequências envolvendo o esquentado Tony e diversas autoridades. Se bem que
o diálogo dele com um governante é muito mais pungente, pela invejável veracidade,
que gracioso.
Indicado
ao Oscar de filme estrangeiro, prêmio de melhor ator para o palestino Kamel El
Basha, no Festival de Cinema de Veneza, proibido na Cisjordânia, O Insulto traz o olhar doméstico de um
diretor e roteirista que conhece os sotaques religiosos e étnicos da região e
não teme abrir feridas não cauterizadas da Guerra Civil Libanesa (que matou
mais de cem mil cidadãos) para falar de um anátema: conciliação. Doueiri busca na arte cinematográfica um
diálogo praticamente impossível no dia a dia de uma gente de pavio curto pronto
para a flama e que se equilibra no fio da navalha.
Enfim,
considerando a direção segura, que busca a naturalidade do elenco irretocável; o
argumento corajoso e convincente; a inteligência do script no desenvolvimento de
questões tão (explosivamente) delicadas; o nível dos diálogos ferinos; a boa
edição..., se gosta de dramas políticos, de filmes provocativos que te tiram da
sua zona de conforto e te fazem pensar, por um bom tempo, sobre as relações
humanas e o papel do homem (incluindo você) na Terra, não perca!
Talvez O Insulto não seja tão perturbador
quanto O Atentado (2012)..., filme banido
em 22 países da Liga Árabe e que recentemente levou Ziad Doueiri a se defender
de traição, em um tribunal militar, por ter filmado algumas cenas em Israel...,
mas ele também incomoda e toca num ponto crucial daquela (?) cultura: a intolerância. O que também me traz à lembrança a clássica composição “Por Quem Os
Sinos Dobram”, de Raul Seixas: “Nunca
se vence uma guerra lutando sozinho/ Você sabe que a gente precisa entrar em
contato/ Com toda essa força contida é que vive guardada/ O eco de suas palavras
não repercutem em nada/ É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro/ Evita
o aperto de mão de um possível aliado/ Convence as paredes do quarto, e dorme
tranquilo/ Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo/ Coragem,
coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz/ Coragem, coragem, eu sei
que você pode mais/ É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro/ Evita o
aperto de mão de um possível aliado/ Convence as paredes do quarto, e dorme
tranquilo/ Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo.”
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
Excellent publication
ResponderExcluirSuperb film
Thanks
..., gratíssimo Marina Seischi!
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