segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Crítica: A Ilha de Bergman

A ILHA DE BERGMAN

Bergman Island

por Joba Tridente

Fårö é uma ilha de areia fina e paisagem árida, repleta de monólitos de calcário, chamados ‘raukar’, no mar Báltico, a nordeste de Gotland, a maior ilha da Suécia. Hoje em dia Fårö é mais conhecida como a Ilha de Bergman, não porque o famoso cineasta fosse seu proprietário, mas porque adquiriu propriedades, viveu e trabalhou na ilha por mais de 40 anos e foi onde rodou filmes como Através de um espelho; Persona; A hora do lobo; Vergonha; A paixão de Ana; Cenas de um casamento. Ali encontra-se o Centro Cultural Bergman, que proporciona ao turista fã do cineasta o Safári Bergman (passeio por locais de filmagem e pontos curiosos) e a Semana Bergman (com seminários, sessões de cinema, conferências), no final do mês de junho. Ou seja, atrações turísticas cinéfilas, em torno da obra e do grande diretor sueco, não faltam. Inclusive, uma das casas de Ingmar Bergman (1918-2007) é oferecida como residência de artista para autores em crise criativa e/ou em busca de inspiração, como é o caso dos protagonistas do drama romântico A Ilha de Bergman (Bergman Island, 2021), escrito e dirigido pela francesa Mia Hansen-Løve. 

“Bergman foi tão cruel em sua arte

quanto em sua vida.” 


Híbrido de ficção e documentário (mas longe do docudrama), A Ilha de Bergman é um provocante exercício de metacinema que explora as nuances do desejo e da reflexão no fazer cinematográfico, ao acompanhar a rotina de viagem e de desenvolvimento de roteiros de um casal de cineastas nova-iorquinos, Tony (Tim Roth) e Chris (Vicky Krieps). Enquanto o reconhecido diretor Tony participa de eventos da Semana Bergman, do Safári Bergman e escreve com facilidade o seu roteiro..., a insegura Chris, tomada pela melancolia, enfrenta uma crise de criatividade que só começa a ser vencida quando conhece o estudante de cinema Hampus (Hampus Nordenson) e decide traçar o seu próprio itinerário pela ilha bucólica, pesquisando apenas que lhe interessa. 

Mais tranquila, ela esboça algumas ideias para um filme, que se passa em Fårö, ao longo de três dias, e cujos protagonistas, Amy (Mia Wasikowska), uma jovem cineasta, e Joseph (Anders Danielsen Lie), seu ex-namorado, estão ali para prestigiar o casamento de uma amiga e, inevitavelmente, se recordam da relação amorosa que tiveram há algum tempo. Enquanto Chris discute a trama com Tony, esperando que ele a ajude resolver o final da história, o roteiro vai ganhando forma na imaginação do marido (e do espectador). Quanto ao epílogo, este será a chave que fechará as duas narrativas (envolvendo Chris e Amy) e arrematará uma terceira, num encadeamento irresistível e surpreendente em que as aparências (de personagens transitando entre os filmes) realmente enganam, principalmente no cinema. Bem, o termo “fim” também não é dos mais confiáveis... 

“A morte é apenas uma luz se apagando.” 


Uma vez na Ilha de Bergman e às voltas com um roteiro que acaba se dividindo em três e trata basicamente de relações humanas (familiares, conjugais, amorosas, sociais, culturais), a(s) história(s) contada(s) por Hansen-Løve acaba(m) resvalando na obra singular do mestre sueco..., principalmente a Cenas de Um Casamento (constantemente citada no enredo), num catártico contraponto nas “três” narrativas. Porém, ainda que invoque situações análogas em alguns pontos estruturais (notadamente nos diálogos), não parece ser o caso de uma releitura (fragmentada)..., ainda que pairem dúvidas. 

No murmurinho cinéfilo, acredita-se que a metaficção de Mia Hansen-Løve (que foi casada com o famoso cineasta francês Olivier Assayas) talvez seja menos ficção do que parece e que, nas entrelinhas, traria elementos da sua vida profissional e pessoal, tanto na composição do enredo quanto no desenvolvimento das personagens. Talvez por isso (?) que, a princípio, a ambiguidade (?) feminina, a dependência e/ou a necessidade da aprovação e/ou da conivência masculina aos projetos profissionais e/ou pessoais de Chris e Amy (alter egos de Mia?) soa bem estranha, já que, também no cinema, as mulheres estão conquistando com relevância o seu espaço. Depois, durante o processo de amadurecimento dos projetos das duas (ou três?) mulheres, aceita-se tais atitudes como catarse (autoral?). Supondo que, para se livrar de todas as aflições, inseguranças, medos femininos, só “exorcizando” os homens (soberanos) que (sublimados) não atendem às suas expectativas. Daí a impressão de uma marioneteira (Mia) manipulando uma marionete (Chris) que manipula outra marionete (Amy)..., na esperança de uma hora as cordas catárticas se romperem e libertá-las (de si mesmas), para que encontrem a independência profissional e pessoal em algum lugar fora da Ilha de Bergman (real e fictícia). Em algum lugar onde as obras impactantes de autores consagrados não fustiguem os (as) autores(as) iniciantes em busca da própria linguagem. 


Enfim, além do ótimo elenco esmiuçando o mirabolante roteiro e da bela fotografia de Denis Lenoir, enquadrando maravilhosamente as peculiaridades da convidativa Fårö, a diretora Mia Hansen-Løve ainda aproveita o itinerário e a (auto)reflexão de seus personagens cinéfilos pela ilha povoada de fantasmas peliculares bergmanianos, para anotar alguns dados biográficos (mais ou menos relevantes) sobre o cineasta, um indistinto homem/artista. Alguns dados são conhecidos e outros recebem comentários irônicos (meio que fora do contexto) da personagem ChrisNesse ir e vir por uma ilha tão cheia de fatos e fantasias, não falta nem mesmo um “encontro” folclórico com moradores que ainda “cumprem” à risca as recomendações de Bergman sobre as informações que devem dar aos turistas. 

A Ilha de Bergman é um filme que pode fazer o fã de Ingmar Bergman querer revisitar a sua fascinante obra e o espectador leigo a conhecer e certamente se surpreender com o quanto o cinema passado pode fazer sombra no cinema presente. Ah, não confundir o instigante Bergman Island (2021), de Mia Hansen-Løve, com o interessante Bergman Island (2006), de Marie Nyreröd. Pois, entre o devaneio e a memória das águas do mar, nem toda onda é a responsável por esculpir um “raukar”. 

Produzido pela França, Bélgica, Alemanha, Suécia e México, A Ilha de Bergman, chega aos cinemas brasileiros em 24 de fevereiro de 2022, com distribuição da Pandora Filmes.

Trailer Aqui

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba. 


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