domingo, 13 de fevereiro de 2022

Crítica: Rio de Vozes

RIO  DE  VOZES

por Joba Tridente 

O Rio São Francisco nasce manso na Serra da Canastra, no centro-oeste de Minas Gerais..., desliza córrego pelo interior e, irmanado com outras águas riacheiras, ganha corpo e engrossa o leito com outros rios até virar um mar de água doce, batizado de Opará ou Parapitinga, pelos indígenas, e de Velho Chico, pelos assentados que vieram depois. Rio São Francisco, abençoado e explorado e abandonado em seu percurso que vara Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, até desaguar dolente no Oceano Atlântico. Rio São Francisco de tantas memórias e histórias cantadas e contadas em verso, prosa e imagens. Rio São Francisco, protagonista, coadjuvante e figurante de filmes, novelas e anúncios publicitários. Rio São Francisco, camaleônico personagem dividindo a cena socioeconômica e cultural com ribeirinhos, no documentário Rio das Vozes, dirigido por Andrea Santana e Jean-Pierre Duret 


“O sertão era pra ser sustentável.
Rico. Generoso. Cheio de Dinheiro.
Só com o quê a gente tem.
A gente derruba o que é nosso,
para plantar o que é dos outros, para os outros.”


Escrito por Andrea Santana, o documentário Rio de Vozes (2019), busca um olhar atualizado da rotina dos pescadores e agricultores ribeirinhos do (ainda) resiliente Rio São Francisco, assoreado em muitos pontos do seu percurso. A longa jornada inicia num estaleiro, onde um mestre carpinteiro constrói mais um barco que, pronto, é lançado ao São Francisco, traçando o itinerário que irá captar as vozes dos ribeirinhos que vivem da escassa pesca, dos seus descendentes que sonham com outro futuro, e daqueles que insistem em uma agricultura sustentável num solo árido. 

Em seu segundo registro, a sequência traz duas comerciantes de peixe, num caminhão frigorífico, por uma estreita estrada de areia, rumo a um ponto de pescadores que negociam a pesca do dia, e cujo diálogo parece saído de um conto fantástico: “Olha, de que hora nós estamos caminhando em cima da cama do rio. Nós estamos aqui só em cima da cama dele. (...) Quantas e quantas vezes nós passamos aqui de barco. Eu, você os pescadores. Era profundo isto aqui. Não era uma situação dessa que está hoje, que você passa de bicicleta, que você passa de moto, que você passa de carro velho..., oito, dez quilômetros talvez...”. 


Em cada parada beira-rio, vila, casa, associação, nas mais diversas horas do dia, são coletadas histórias saudosas de pescadores e pescadoras que insistem na profissão de futuro incerto; de apaixonados capitães de barcos; de adolescentes que querem cursar faculdade; de estudantes de escola agrícola apostando na sustentabilidade; de agricultores testemunhas das mudanças climáticas e do descaso geral com o grande Rio São Francisco, cuja fauna, aos poucos, está sendo extinta. O que não falta ao documentário é assunto: a morte do rio; custo de vida de pescador; amores brotando da água; memória, orgulho e tradição; pertencimento; desmatamento criminoso; formação profissional longe dali e/ou nos arredores, para cuidar de quem precisa. A vozes volteiam na simplicidade da fé e dos desejos, cientes de que as novas tecnologias que chegam “distraídas” e viciantes, ocupando as mãos das crianças, darão novos rumos à prosa. 

“Quero ser médica para cuidar de quem precisa.
Quero olhar para o paciente e não para o dinheiro.”

Apesar do movimento das águas do rio nem sempre ser satisfatório, na sua malemolência ou cantilena que respinga no cotidiano dos ribeirinhos, Rio de Vozes é um filme que transpira a poesia crua e tocante no depoimento aflitivo e/ou nostálgico dos moradores locais. É claro que o espectador precisa aprender a ler nas entrelinhas, para se aperceber da carga poética muito além dos depoimentos sinceros e, por vezes, magoados, nos registros fotográficos “casuais” e, por vezes, bucólicos, de Tiago Santana e Jean-Pierre Duret. 


Rio de Vozes tem o quê dizer para quem quiser ouvir um bocado de histórias e murmúrios de gente que beira o rio, de gente que centra o rio, de gente que se deixa levar pelas águas límpidas e/ou barrentas do Velho Chico..., que além de lavar roupas, lavar louças, lavar corpos, também lava as almas dos ribeirinhos e daqueles que só estão de passagem. O porém (que não compromete a apreciação), fica por conta de um ato abominável na maioria dos documentários brasileiros, que nomeia os participantes apenas no final..., como se o espectador fosse vidente, para adivinhar o nome dos “anônimos” personagens e dos locais de registro, e/ou memória fotográfica para se lembrar quem é quem no filme, a partir dos créditos finais. Outro incômodo, também comum em documentário brasileiro, que não tem legenda, é a dificuldade para entender algumas falas dos participantes. 

Distribuído pela Pandora Filmes, o documentário está previsto para estrear dia 17 de fevereiro de 2022 nas salas de cinema.

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba. 


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