
A FELICIDADE DAS PEQUENAS COISAS
por Joba Tridente
Recentemente comentei sobre a felicidade, ao falar do
fascinante filme sul-coreano A Mulher Que Fugiu, do
diretor Hong Sang-soo: “Onde habita a felicidade?
Muitos de nós, “humanos”, certamente nos perguntamos (nas mais diversas
ocasiões)..., e divergimos quanto à resposta. Uma vez que
a felicidade tanto pode habitar dentro quanto fora de cada “humano” à
sua procura..., ou em lugar nenhum, que tal é a quimera.” Se no drama A Mulher Que Fugiu, a questão perpassa
num contexto mais sutil, no contagiante A
Felicidade das Pequenas Coisas, escrito e dirigido por Pawo Choyning Dorji, ela é explicitada e gruda no espectador para
muito além da sessão de cinema. Não digo que a tal felicidade ficará 100% com o
espectador, porque estamos no Brasil e..., assim como em outros países com viés
extremista, onde o crime (social, político, religioso etc) compensa..., no
momento (?) não há bálsamo para tanto dissabor.
“um
professor pode tocar o futuro”
O Reino do Butão, país sul-asiático, nos Himalaias,
entre a China e a Índia, considerado o
país
mais feliz da Ásia e o
oitavo mais
feliz do mundo, conforme avaliação
BusinessWeek
de 2006 (
index),
é o cenário da envolvente trama
A
Felicidade das Pequenas Coisas (2019), que segue os passos do jovem
Ugyen Dorji (
Sherhab Dorji), um professor que acredita não ter vocação para o
ensino.
Ugyen vive em Thimphu, a capital
do Butão, e sonha com uma carreira musical de sucesso na Austrália. Porém, para
cumprir o último ano de contrato com o governo, ele é nomeado para uma escola
do ensino fundamental em Lunana, um remoto Distrito de Gasa..., uma das regiões
mais isoladas do Himalia do Butão (localização que provoca um trocadilho
divertido com as palavras
altitude e
atitude, num diálogo irônico entre uma
funcionária pública e o professor).

Sem alternativa, também porque um visto para a
Austrália é demorado, o urbano Ugyen se
deixa conduzir (não sem alguma relutância) ao seu destino escolar, por dois simpáticos
aldeões de Lunana: Michen (Ugyen Norbu Lhendup) e Singye (Tshering Dorji). Para o inconsolável professor, o bucólico
itinerário (de uma semana a pé) não é tão fácil como os otimistas condutores
lhe disseram e a aldeia, com seus 56 habitantes gentis e felizes com a sua
presença, é muito menos do que esperava. No entanto, é o que ele tem à
disposição..., para mudar com a sua cultura urbana e ou ser mudado pela cultura
rural. E o que se verá, previsível ou não, é um conto búdico de encher os olhos
(também de lágrimas), tamanha a beleza narrativa, com doces canções
tradicionais em louvor à Natureza que se desvela numa paisagem deslumbrante. “Gentileza Gera Gentileza”, já apregoava
o brasileiro Profeta Gentileza (José Datrino: "Amansador dos burros homens da cidade que não tinham esclarecimento."),
nos anos 1960/1970. Mesmo que não se saiba, a gentileza ainda resiste à
maldade humana, em algumas partes remotas do mundo.

A Felicidade das Pequenas Coisas é um
filme-contemplativo em sua singularidade poética e intensidade empática na
troca de saberes ancestrais e modernos. Filmado em Lunana, com a maioria do
elenco formada por moradores locais (com destaque para as crianças, em especial
a maravilhosa Pem Zam), o roteiro
enxuto, pontuado de humor ingênuo, traça uma curiosa Jornada do Herói (no caso, Jornada
do Professor) incrivelmente iluminada e de fácil compreensão por qualquer
público. Por um lado, um professor obrigado a rever seus próprios conceitos de
educador e de progresso. Por outro, um comunidade que, em sua simplicidade,
absorve da modernidade apenas aquilo que lhe parece relevante para o
desenvolvimento pessoal, sem se desfazer das tradições que lhes dão sentido à
vida.

O que se vê, então, sem qualquer intenção de embate
social e ou religioso, são duas formas das pessoas (de culturas distintas) se
relacionarem com as indiferenças e/ou com as diferenças do mundo ao redor delas...,
com a natureza das coisas que querem consagrar. Duas formas de interpretar a
música no dia a dia das pessoas: corriqueira e descartável na capital apressada
e eternizada no pungente canto pastoril “Yak
Lebi Lhadar”, na voz da adorável personagem Saldon (Kelden Lhamo Gurung),
sobre o vínculo de um aldeão com seu yak. Porém, vale ressaltar que..., ainda
que a narrativa traga grandes observações e ensinamentos sobre o árduo
cotidiano de um povo resiliente, cuja sobrevivência depende do pleno equilíbrio
com as oferendas de cada estação do
ano..., este não é um filme de autoajuda, mas de aprendizado. E que
aprendizado!!!

A Felicidade
das Pequenas Coisas é a dramatização de histórias reais, que o escritor, fotógrafo
e diretor Pawo Choyning Dorji colheu em suas viagens à região e as costurou com
naturalidade em uma só, dando ao filme um ar híbrido de ficção e documentário. A
placidez narrativa e a direção segura do elenco, que se entrega com confiança
para (re)contar suas histórias emocionantes, de fato o aproxima de um
docudrama. Ao contrário do título spoiler
brasileiro, o adotado mundo afora é uma variação regional do inglês Lunana: A Yak in The Classroom, que faz
referência a uma situação (real) e a uma brilhante metáfora do enredo, na
comparação sagaz de um yak (espécie de búfalo) com um professor. Por falar em
metáforas, há outras mais sutis ou mais surpreendentes, como aquela relacionada a
pés descalços e calçados...

É sabido que histórias envolvendo professores e
alunos em situações limites sempre resultam em belas e reflexivas obras
cinematográficas, em qualquer parte do mundo, inclusive no Brasil, cujos
governantes tratam seus mestres do ensino com desdém (na esperança de manter o
gado na ignorância para um fácil manejo). Quem já trabalhou com crianças
carentes de cultura e de afeto sabe o que estou dizendo. Assim, diante desta
pérola que nos chega do Butão, como esquecer, entre outros grandes filmes, de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987),
de Abbas Kiarostami; O Jarro (1992) de
Ebrahim Forouzesh; Nenhum a Menos
(1999), de Zhang Ymou; A língua das
Mariposas (1999), de José Luis Cuerda; O
Quadro Negro (2000), de Samira Makhmalbaf; Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet? Dramas que, sem
pieguice, trazem luz sobre o imprescindível ofício de professor.

Fotografado com esmero por Jigme Tenzing, A Felicidade das Pequenas Coisas, representante
do Butão na corrida ao Oscar 2022, é simplesmente imperdível para quem ama
belas histórias que priorizam o conteúdo cultural mais que a estética viciada e
a tendência do mercado. A propósito da estampa FIB - Felicidade Interna
Bruta, na camiseta que o personagem Ugyen
Dorji usa logo no início, vale esclarecer que, em 2008, o governo butanês
criou um índice da felicidade (FIB),
em contraponto ao PIB (Produto Interno Bruto), para ofertar, entre outros benefícios
à população, educação aos moradores mais longínquos do Butão. O lançamento do
filme, no Brasil, está previsto para 27
de janeiro de 2022, pela Pandora
Filmes.
NOTA: As
considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião
geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.
Joba
Tridente: O
primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros
videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm,
realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e
coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder,
2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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