segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Crítica: A Felicidade das Pequenas Coisas

 

A FELICIDADE DAS PEQUENAS COISAS

por Joba Tridente 

Recentemente comentei sobre a felicidade, ao falar do fascinante filme sul-coreano A Mulher Que Fugiu, do diretor Hong Sang-soo: “Onde habita a felicidade? Muitos de nós, “humanos”, certamente nos perguntamos (nas mais diversas ocasiões)..., e divergimos quanto à resposta. Uma vez que a felicidade tanto pode habitar dentro quanto fora de cada “humano” à sua procura..., ou em lugar nenhum, que tal é a quimera.” Se no drama A Mulher Que Fugiu, a questão perpassa num contexto mais sutil, no contagiante A Felicidade das Pequenas Coisas, escrito e dirigido por Pawo Choyning Dorji, ela é explicitada e gruda no espectador para muito além da sessão de cinema. Não digo que a tal felicidade ficará 100% com o espectador, porque estamos no Brasil e..., assim como em outros países com viés extremista, onde o crime (social, político, religioso etc) compensa..., no momento (?) não há bálsamo para tanto dissabor. 

um professor pode tocar o futuro 


O Reino do Butão, país sul-asiático, nos Himalaias, entre a China e a Índia, considerado o país mais feliz da Ásia e o oitavo mais feliz do mundo, conforme avaliação BusinessWeek de 2006 (index), é o cenário da envolvente trama A Felicidade das Pequenas Coisas (2019), que segue os passos do jovem Ugyen Dorji (Sherhab Dorji), um professor que acredita não ter vocação para o ensino. Ugyen vive em Thimphu, a capital do Butão, e sonha com uma carreira musical de sucesso na Austrália. Porém, para cumprir o último ano de contrato com o governo, ele é nomeado para uma escola do ensino fundamental em Lunana, um remoto Distrito de Gasa..., uma das regiões mais isoladas do Himalia do Butão (localização que provoca um trocadilho divertido com as palavras altitude e atitude, num diálogo irônico entre uma funcionária pública e o professor). 


Sem alternativa, também porque um visto para a Austrália é demorado, o urbano Ugyen se deixa conduzir (não sem alguma relutância) ao seu destino escolar, por dois simpáticos aldeões de Lunana: Michen (Ugyen Norbu Lhendup) e Singye (Tshering Dorji). Para o inconsolável professor, o bucólico itinerário (de uma semana a pé) não é tão fácil como os otimistas condutores lhe disseram e a aldeia, com seus 56 habitantes gentis e felizes com a sua presença, é muito menos do que esperava. No entanto, é o que ele tem à disposição..., para mudar com a sua cultura urbana e ou ser mudado pela cultura rural. E o que se verá, previsível ou não, é um conto búdico de encher os olhos (também de lágrimas), tamanha a beleza narrativa, com doces canções tradicionais em louvor à Natureza que se desvela numa paisagem deslumbrante. “Gentileza Gera Gentileza”, já apregoava o brasileiro Profeta Gentileza (José Datrino: "Amansador dos burros homens da cidade que não tinham esclarecimento."), nos anos 1960/1970. Mesmo que não se saiba, a gentileza ainda resiste à maldade humana, em algumas partes remotas do mundo. 


A Felicidade das Pequenas Coisas é um filme-contemplativo em sua singularidade poética e intensidade empática na troca de saberes ancestrais e modernos. Filmado em Lunana, com a maioria do elenco formada por moradores locais (com destaque para as crianças, em especial a maravilhosa Pem Zam), o roteiro enxuto, pontuado de humor ingênuo, traça uma curiosa Jornada do Herói (no caso, Jornada do Professor) incrivelmente iluminada e de fácil compreensão por qualquer público. Por um lado, um professor obrigado a rever seus próprios conceitos de educador e de progresso. Por outro, um comunidade que, em sua simplicidade, absorve da modernidade apenas aquilo que lhe parece relevante para o desenvolvimento pessoal, sem se desfazer das tradições que lhes dão sentido à vida. 


O que se vê, então, sem qualquer intenção de embate social e ou religioso, são duas formas das pessoas (de culturas distintas) se relacionarem com as indiferenças e/ou com as diferenças do mundo ao redor delas..., com a natureza das coisas que querem consagrar. Duas formas de interpretar a música no dia a dia das pessoas: corriqueira e descartável na capital apressada e eternizada no pungente canto pastoril “Yak Lebi Lhadar”, na voz da adorável personagem Saldon (Kelden Lhamo Gurung), sobre o vínculo de um aldeão com seu yak. Porém, vale ressaltar que..., ainda que a narrativa traga grandes observações e ensinamentos sobre o árduo cotidiano de um povo resiliente, cuja sobrevivência depende do pleno equilíbrio com as oferendas de cada estação do ano..., este não é um filme de autoajuda, mas de aprendizado. E que aprendizado!!! 


A Felicidade das Pequenas Coisas é a dramatização de histórias reais, que o escritor, fotógrafo e diretor Pawo Choyning Dorji colheu em suas viagens à região e as costurou com naturalidade em uma só, dando ao filme um ar híbrido de ficção e documentário. A placidez narrativa e a direção segura do elenco, que se entrega com confiança para (re)contar suas histórias emocionantes, de fato o aproxima de um docudrama. Ao contrário do título spoiler brasileiro, o adotado mundo afora é uma variação regional do inglês Lunana: A Yak in The Classroom, que faz referência a uma situação (real) e a uma brilhante metáfora do enredo, na comparação sagaz de um yak (espécie de búfalo) com um professor. Por falar em metáforas, há outras mais sutis ou mais surpreendentes, como aquela relacionada a pés descalços e calçados... 


É sabido que histórias envolvendo professores e alunos em situações limites sempre resultam em belas e reflexivas obras cinematográficas, em qualquer parte do mundo, inclusive no Brasil, cujos governantes tratam seus mestres do ensino com desdém (na esperança de manter o gado na ignorância para um fácil manejo). Quem já trabalhou com crianças carentes de cultura e de afeto sabe o que estou dizendo. Assim, diante desta pérola que nos chega do Butão, como esquecer, entre outros grandes filmes, de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), de Abbas Kiarostami; O Jarro (1992) de Ebrahim Forouzesh; Nenhum a Menos (1999), de Zhang Ymou; A língua das Mariposas (1999), de José Luis Cuerda; O Quadro Negro (2000), de Samira Makhmalbaf; Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet? Dramas que, sem pieguice, trazem luz sobre o imprescindível ofício de professor. 


Fotografado com esmero por Jigme Tenzing, A Felicidade das Pequenas Coisas, representante do Butão na corrida ao Oscar 2022, é simplesmente imperdível para quem ama belas histórias que priorizam o conteúdo cultural mais que a estética viciada e a tendência do mercado. A propósito da estampa FIB - Felicidade Interna Bruta, na camiseta que o personagem Ugyen Dorji usa logo no início, vale esclarecer que, em 2008, o governo butanês criou um índice da felicidade (FIB), em contraponto ao PIB (Produto Interno Bruto), para ofertar, entre outros benefícios à população, educação aos moradores mais longínquos do Butão. O lançamento do filme, no Brasil, está previsto para 27 de janeiro de 2022, pela Pandora Filmes


NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...