quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Crítica: Belle

B E L L E
Ryū to Sobakasu no Hime
por Joba Tridente

Quando a gente ouve falar de uma nova adaptação de um velho conto (de fadas e/ou fantástico) direcionado ao público infantojuvenil, pensa logo em assemelhados da Disney..., e bufa enfadonhamente. Quando a gente ouve falar de uma nova releitura de um velho conto (de fadas e/ou fantástico) direcionado ao público infantojuvenil, fica de orelha em pé com a incômoda pulguinha te perguntando se é mesmo necessário mais uma nova releitura do velho conto. A probabilidade de sucesso e/ou de fracasso de tal projeto é a mesma. Depende da produção e/ou do marketing. No entanto, como toda via das especulações estaciona o veredito apenas no lançamento, é preciso assistir para saber. É o caso da animação e/ou anime Belle (Ryū to Sobakasu no Hime, 2021), escrita e dirigida por Mamoru Hosoda (Mirai).  


“Você não pode recomeçar na realidade,
mas pode recomeçar em U.”


No cinema (independente do gênero), muito já se falou (mais para o mal do que para o bem) do mundo virtual para além da ficção científica. Excetuando os documentários, com o preocupante conteúdo sobre manipulação eleitoral e roubo de dados (por exemplo), as tramas investem no suspense, no terror distópico, na submissão do homem à máquina robótica, à inteligência artificial..., que aos poucos está deixando de ser mera ficção nos países mais desenvolvidos..., como passatempo “inócuo”. Dependendo do roteiro e da direção (e não do dinheiro envolvido), algumas produções resultam bem melhores (alertas e/ou diversão) que outras. Principalmente aquelas que “lidam” com as redes sociais movidas a texto (sintético) e vídeos (extravagantes). Demonizar ou santificar as redes sociais pode ser bem mais que mero ponto de vista do espectador..., ou do usuário. 


É o caso da fascinante (e nada gratuita) animação/anime Belle, que escancara a janela virtual para uma alucinante plataforma digital catártica, onde o usuário poderá “velar” e ou “desvelar” (aparentemente anônimo) seu verdadeiro eu, sob o lema: “Você não pode recomeçar na vida real, mas pode recomeçar em U”. Neste mundo (metaverso = realidade virtual + realidade aumentada + internet) batizado de “U”, que une 5 bilhões de pessoas no mundo inteiro, sob regras discutíveis de interação e de compartilhamento,  o usuário só precisa se conectar, criar um “AS”, que equivale ao conhecido avatar (cibercorpo), e “Você será U.” “U será você.” “Você será tudo.” “U é uma outra realidade.” “AS é uma outra versão de você mesmo.” “Você pode viver uma nova versão de você mesmo.” “Pode começar uma nova vida.” “Você pode mudar o mundo.” Uma recém-criada plataforma servindo à fama, à afirmação pessoal e social, ao cancelamento, mas também, quando possível a empatia e a solidariedade, ao resgate... 

“Você pode mudar o mundo.” 


A trama de Belle conecta com maestria os fios da realidade física com os fios da realidade digital. Cada uma com seu nível de inteligência. No mundo físico, Suzu (Kaho Nakamura) é uma adolescente tímida que, desde os seis anos de idade, vive traumatizada com a morte trágica da mãe. Um trauma tão profundo, pela sensação de abandono, que a impede de se relacionar socialmente com o pai e com os colegas da escola. Foi a mãe que lhe apresentou a música e que a ensinou a cantar, um prazer que ela oculta de todos, até conhecer, através da amiga nerd Hiro (Lilas Ikuta), a alucinante plataforma “U”. Ali, a partir de informações biométricas e da sua personalidade, Suzu, a garota desengonçada, de rosto sardento, se transforma na irresistível Belle, uma cantora ousada, de olhos azuis, cabelos cor-de-rosa, vestidos luxuosos, que não teme soltar a voz maviosa e virar unanimidade na rede. 


A fama repentina de Belle, além de suscitar todo tipo de sentimento (crítico) a seu respeito, dentro e fora da rede social, também acaba exigindo cada vez mais a sua presença na plataforma de sucesso. Porém, quando um grande show de Belle é interrompido por um “AS” em fuga, conhecido como Dragão (Takeru Satoh), os dois mundos da garota começam ganhar novos contornos e inquietações. Quem é o Dragão? Por que está sendo perseguido pelos Justiceiros da Rede? Por que tamanha violência numa plataforma que (aparentemente) irradia beleza e alegria? A suburbana Suzu e a sua persona glamorosa Belle, cada qual conforme as regras do seu mundo particular, não vão descansar enquanto não descobrirem a razão do Dragão transparecer tanta raiva, tanta dor, tanta tristeza..., a ponto de ser temido e odiado por quase todos os usuários da rede. O “quase” fica por conta das crianças que, assim como o Anjo (Hana), veem o Dragão como um herói. Entre ternas canções, amores juvenis, fake news, negligências..., a desvelação da identidade e do temperamento explosivo do Dragão, que virá numa reviravolta das mais surpreendentes do cinema, vai surpreender e comover a todos, nos três mundos: real (do espectador), fictício (de Suzu) e virtual (de Belle). 

“U é uma outra realidade.” 


Fruto indispensável do Studio Chizu, a “inspiração” de Belle está (óbvio?) no famoso conto de “fadas” de tradição oral A Bela e a Fera. Das inúmeras versões conhecidas em todo o mundo, a de Hosoda é a mais desconcertante. A bem da verdade, excetuando a denominação de Bela (Belle) e Fera (Dragão), dos protagonistas, a referência às versões mais conhecidas é mínima. Apenas ponto de partida (ou chamariz) de um argumento que ganha forma num roteiro sagaz e pertinente no uso do termo Fera (cruel, de maus instintos) como metáfora para falar de bullying, cyberbullying, abuso, violência infantil, nas redes sociais e no mundo real, numa linguagem compreensível pelo público de qualquer idade. 


Esta impressionante fantasia imersiva no mundo digital, não diz respeito apenas à chamada Geração Z. O seu inspirador roteiro, que esmiúça o metaverso, fala alto também aos adultos, por vezes (?) negligentes com a segurança das crianças, dos jovens e ou da sua própria, ao se expor vaidosamente, ou por carência afetiva e/ou por escapismo, nas redes digitais, onde tudo (entre o anonimato e a fama) é possível (para o bem ou para o mal) no compartilhamento de dados. Não se deve confundir virtualidade com virtuosidade (assunto muito bem entranhado no enredo de Belle). Pois, em se tratando de redes sociais, não é uma questão de semântica, mas de ética. Todos sabemos do que a “humanidade” é capaz, em interesse próprio..., e do que é preciso para um ato de coragem! 


A produção de Belle é simplesmente primorosa. Não bastasse o conteúdo de excelência, há ainda a fusão perfeita da arte tradicional do anime (por vezes caricatural) em 2D, no desenho dos personagens, com a criativa arte cenográfica em 3D. Dois mundos distintos e de beleza ímpar, que salta aos olhos em cores e tons inimagináveis, detalhes surreais, movimentos inusitados..., casando harmoniosamente as canções pop ou melancólicas. Deslumbramento total.

Aplaudido por 15 minutos, na sua estreia no Festival de Cannes, em 15.07.2021, Belle, o oitavo filme de Mamoru Hosoda, que está na corrida para o Oscar, estreia no dia 27 de janeiro de 2022, nos cinemas brasileiros. Imperdível.

Trailer: AQUI 

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba. 


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