quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Crítica: Benedetta

B E N E D E T T A

por Joba Tridente 

Há uma lenda que conta: Quando Jesus nasceu, um grito de dor ecoou por toda a Grécia, anunciando que o alegre Deus Pã (Deus da Natureza, dos Pastores, o Amante da Música e criador da Flauta de Pã) morreu. Com a morte de Jesus Cristo surgiu um “novo” conceito religioso (que, conforme a mitologia judaico-cristã, é contrário às suas reflexões): o cristianismo, com suas hediondas cruzadas, invasões e apropriações de terras e de obras de arte, negação da ciência, inquisições, catequeses, conluio com governos extremistas, escravização de povos nativos etc. São muitos os atos ignominiosos (em nome de Jesus Cristo) à disposição de qualquer um que queira mergulhar em águas turvas ou na lama para entender as origens obscuras da fé cega cristã. 

Para falar de cristianismo e/ou de catolicismo, nos dias de hoje, qualquer autor tem de estar muito bem preparado para expor seu ponto de vista às plateias fanáticas e/ou liberais. Pois, conforme o enfoque, ele pode sair do palco com arranhões provocados por espinhos venenosos e/ou coroado com auréola de luz néon. O polêmico diretor holandês Paul Verhoeven que o diga! Não está sendo fácil enfrentar hordas de católicos carolas no lançamento do seu provocativo drama histórico Benedetta, situado no século XVII. Haja hipocrisia na eucaristia de cada um preocupado com o pecado alheio que é sempre maior que o seu... 

Um convento não é um lugar de caridade 


Adaptado livremente do livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy (1986), da historiadora Judith C. Brown, por Verhoeven e David Birke, o drama com viés satírico Benedetta (França, Bélgica, Holanda, 2021), que vem sendo considerado blasfêmia pelos católicos arrogantes (que preferem as lendas aos fatos), conta a história real da Irmã Benedetta Carlini (Virginie Efira), criada para ser uma fiel Esposa de Jesus Cristo (Jonathan Couzinié), e que, já adulta e vivendo desde criança no Convento da Mãe de Deus, afirma ver e conversar com Jesus (seu futuro marido) e, como prova, até recebe seus estigmas. Há relatos de que, quando menina, Benedetta (Elena Plonka) também conversava com Maria, mãe de Jesus, que a protegia e atendia aos seus pedidos (alguns deles estão na narrativa). 


A história das visões e da intimidade sagrada e profana de Benedetta e Jesus (galanteador, vingador, salvador, assexuado, deus) ganha força e desperta o interesse investigativo do Vaticano e a adoração do povo crédulo de Pescia, na Toscana, Itália, onde fica o convento, comandado pela Abadessa Felicita (Charlote Rampling), mais preocupada com os lucros da Casa Sagrada do que com a fé..., ao contrário da Irmã Christina (Louise Chevillotte), que não acredita nas visões e profecias de Benedetta. Porém, como toda via tortuosa dos pecados confessáveis e/ou ocultáveis tem lá a sua cruz expiatória, enquanto a peste negra se espalha pela Itália, a rotina de orações, enlevo e visões de Benedetta ganha novos odores e adornos, com a chegada de Bartolomea (Daphné Patakia) ao convento. A jovem acaba provocando na Irmã Benedetta um intenso desejo sexual, deixando-a entre a cruz e a luxúria. Mas, é com a visita do lascivo Núncio Apostólico Alfonso (Lambert Wilson), decidido a desmascarar a Sagrada Irmã Benedetta, que o circo religioso pega fogo e as libidinosas chamas da vaidade não distinguem mais o Céu e o Inferno de cada um... 

Seu pior inimigo é o seu corpo 


A trama de Benedetta (cujo nome significa Bem-Aventurada, já que mãe e filha sobreviveram ao difícil parto), narrada meio que na linha do nunsploitation, é consistente e intensa na reflexão da lucrativa fé cristã que move cegamente multidões ao âmago da igreja dominante, enquanto reprime intencionalmente a sexualidade clerical e a dos fervorosos fiéis (mantendo a submissão de todos sob “controle”). Seus diálogos, repletos da mais fina ironia na costura das variantes da rígida devoção religiosa com as jubilosas tentações da carne, são excelentes. Quanto ao propalado teor erótico..., este diverte mais do que excita, principalmente em relação à confecção e ao uso de um inusitado consolo sexual, que pode dar o que pensar ao espectador que arriscar fazer uma analogia com a mística virgindade da Virgem Maria. Aliás, a desconcertante reação da menina Benedetta, sob uma estátua de Nossa Senhora que caiu sobre ela, é muito mais forte e erotizada do que as cenas das libertinas Benedetta e Bartolomea adultas. O simbolismo do alimento da fé diz muito mais sobre o misticismo da futura beata do que os seus “pecados” da carne em busca do divino. Afinal, o que vale mais na “austera” vida religiosa: o Pai Nosso ou a Ave Maria? 


Ainda que o fio condutor seja a controversa vida da Irmã Benedetta Carlini, o diretor e roteirista Verhoeven parece mais ocupado com os fatos que conduzem à discussão sobre as manipulações da fé e da sexualidade, no mundo (macho-falocrata divino) de ontem e de hoje, do que com o escândalo resultante na apropriação de atos indecorosos nos subterrâneos religiosos que, dependendo do ponto de vista do espectador ou do crente, são incertos. Portanto, o que menos importa é se Benedetta era uma impostora religiosa e sexual..., se estava possuída ou não por alguma entidade benigna, em seus momentos de êxtase proféticos e/ou por entidade maligna, na prática das delícias sexuais. Aqui o cutucão é mais em cima!   

Enfim, passando ao largo de qualquer atitude maniqueísta, mais uma vez o sempre provocativo Paul Verhoeven não decepciona na direção, na escolha do excelente elenco e tampouco na intenção de um enredo tão intrigante (potencialmente explosivo) que tem incomodado muito espectador ao “profanar” o sagrado e “sacralizar” o profano. Pela reação de parte do público (que protesta contra o filme sem nem saber do que se trata), o envolvente Benedetta não vai arrancar facilmente a máscara dos hipócritas. 


Sobre a reação histérica dos católicos que o acusaram de blasfêmia, quando o filme estreou em Cannes, Paul Verhoeven respondeu: "Eu realmente não entendo como posso ser um blasfemador em relação a algo que realmente aconteceu. Não se pode simplesmente mudar a história depois do fato. É possível dizer se foi certo ou errado, mas você não pode mudar a história. Creio que a palavra blasfêmia, nesse caso, para mim, é idiota."

Trailer: aqui. 

Na Wikipedia tem um ótimo artigo sobre a freira católica, mística e lésbica Benedetta Carlini (1590-1661).

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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