terça-feira, 25 de maio de 2021

Crítica: Henrique V


HENRIQUE V

por Joba Tridente 

Setenta e sete anos após o lançamento oficial nas salas de cinema, está chegando à plataforma de streaming Petra Belas Artes À LA CARTE, em cópia remasterizada digitalmente e de encher os olhos, com a exuberante beleza cênica, o drama inglês Henrique V (Henry V - The Chronicle History of King Henry the Fift with His Battell Fought at Agincourt in France, 1944), protagonizado e dirigido por Laurence Olivier, que colaborou, com Dallas Bower e Alan Dent, na adaptação da peça homônima de Shakespeare. 

Conta-se que, no início da Segunda Guerra Mundial, o notável ator Olivier juntou-se à Força Aérea Real. Porém, o governo britânico tinha outros planos para ele: realizar um filme (shakespeariano) para elevar o moral dos cidadãos. A princípio pensou-se na adaptação de Ricardo III, mas Henrique V saiu-se mais oportuno, principalmente por ater-se à histórica passagem que trata do comando e da vitória do jovem rei contra a França, em Agincourt, em 1415 (um dos conflitos da Guerra dos Cem Anos - 1337/1453), quando cerca de 9 mil soldados ingleses venceram 25 mil soldados franceses. Evento que nos remete a outro feito famoso: Batalha de Termópilas, em que, sob o comando de Leônidas, 300 espartanos enfrentaram e enfraqueceram as tropas de Xerxes, formadas por mais de 300 mil soldados, provocando sua derrocada. 


A trama começa com uma linda aérea sobre uma minuciosa maquete de Londres de 1600, arrebata e deixa o espectador no meio do público barulhento do Globe Theatre, onde será exibida a peça Henrique V, de William Shakespeare. Ali, a câmera (espectadora) se mete nos camarins e mostra a preparação dos atores, desvela os bastidores, gira pela acalorada plateia sempre pronta a reagir ao conteúdo do espetáculo e à presença dos atores mais conhecidos. Já em seu prólogo o Chorus (Leslie Banks) instiga a imaginação do público sobre o texto e o cenário teatral e continua instigando até toda peça sair do palco e ganhar espaço aberto, numa transição memorável (lembrando um espetáculo teatral gigante de rua), com grandes cenários pintados e ou montados, como se cenas da arte medieval que retratam a própria Guerra dos Cem Anos (incluindo iluminuras de Les Trés Riches Heures du Duc de Berry - 1412/1416), por onde transitam os personagens, sob a luminosidade e a coloração que o Technicolor favorece. É indescritível tamanha beleza. 


A partir da mudança de cenário (teatro/locação) a trama ganha sua verdadeira dimensão de texto e de imagem ao expor as provocações políticas e religiosas que acirraram as relações entre os dois reinos; ao exibir os preparativos para a guerra em ambos os lados; ao encenar magnificamente a Batalha de Agincourt..., e culminar com a elaborada cena do casamento de Henrique com princesa francesa, Catarina (Renee Asherson), após um divertido flerte do casal. Por conta de uma adaptação mais flexível e palatável (foram cortadas mais de 1.500 linhas do texto original e passagens de extrema violência foram lapidadas), a narrativa é bem menos tensa do que se espera de uma obra de Shakespeare, há até espaço para umas pitadas deliciosas de humor inglês e de humor jocoso, na introdução de algumas boas histórias paralelas, envolvendo a intimidade e o caráter de alguns personagens (ingleses e franceses - o público francês certamente odeia tais gags), dando um sabor especial ao enredo. 


Com um roteiro enxuto, focado no que era essencial, no momento da Segunda Guerra, Laurence tomou para si a responsabilidade da direção (recusada por William Wyler, Carol Reed e Terence Young) e fez um filme tão extraordinário que ainda surpreendente nos dias de hoje, pela invejável criatividade e ousadia no uso da metalinguagem. Tudo funciona perfeitamente: elenco; direção (Laurence Olivier); cenografia/direção de arte (Paul Sheriff); fotografia (Robert Krasker); edição (Reginald Beck); figurino (Roger Furse). Nem parece que é o primeiro filme a ser dirigido por Olivier. Tanto que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Ator, Trilha Sonora Original e Direção de Arte - Decoração de Interiores e deu a Laurence Olivier um prêmio honorário especial “pela notável realização como ator, produtor e diretor de Henry V.”. 


Enfim, desta envolvente narrativa, além do belíssimo visual, fica de resquício, na memória do espectador, a significativa reflexão “Sobre os ombros do rei!”, pronunciada por Henrique V (Laurence Olivier) após caminhar disfarçado entre os soldados (à serviço da coroa inglesa): “Que todas as vidas, almas dívidas, esposas devotadas, filhos e pecados recaiam sobre o rei! Temos de arcar com tudo. De quantas infinitas satisfações só gozam os outros homens? O que têm os reis que outros homens não têm, exceto o aparato? E que você é, seu aparato idolátrico que sofre de males mortais? Que bebe, em vez da doce homenagem, só o veneno da lisonja? O adoece grandeza e pede ao teu aparato que te cure! Você pode, ao arrumar o joelho do mendigo, dispor-lhe a saúde? Não, sonho, brinca com o repouso de um rei. Eu sou um rei que te descubro. E sei que nem o orbe e cetro, nem a coroa imperial, o trono, a maré de pompa que fustiga a costa deste mundo..., nem tudo isto em leito majestoso pode dormir com o escravo miserável. Quem, com o corpo cheio e a mente vazia pode repousar com a barriga cheia de pão penosamente ganho, jamais vê a noite, a filha do inferno, mas, qual lacaio da aurora ao poente, sua sob o olhar de Febo e toda noite dorme sob o Eliseu. No dia seguinte ajuda Hipérion até seu cavalo e assim vão passando os anos com proveitoso trabalho até morrer. E, exceto pelo aparato, esse miserável que passa os dias labutando e as noites dormindo consegue levar vantagem sobre um rei.” Um filme simplesmente irretocável.

*Estreia prevista para 27.05.2021, no Petra Belas Artes À LA CARTE.

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

  

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