segunda-feira, 3 de maio de 2021

Crítica: Na Cidade Branca

 


NA CIDADE BRANCA

por Joba Tridente

Para quem gosta de filme intimista, contemplativo, daqueles que conduzem personagem e espectador por labirintos físicos e metafísicos, Na Cidade Branca (Dans La Ville Blanche, 1983), de Alain Tanner, pode ser uma boa pedida. Nele acompanhamos os passos do mecânico suíço Paul (Bruno Ganz), um marinheiro que, ao botar os pés no porto de Lisboa, sai perambulando pela cidade, filmando tudo o que lhe interessa, com sua Super-8, até parar no bar de uma pensão. Ali, ele pede uma cerveja e questiona a garçonete Rosa (Teresa Madruga) sobre um relógio, na parede, que gira no sentido anti-horário. Após um breve diálogo surreal sobre o giro dos ponteiros e o giro do mundo, ele aluga um quarto e se deixa ficar na cidade, sem saber bem porquê, feito um desertor, enquanto o seu navio parte mares afora.


Com sua trama de viés existencialista, Na Cidade Branca (produção: Portugal, Suíça, Reino Unido) lembra os filmes introspectivos dos anos 1960 e 1970, como o antológico Profissão: Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni ou mesmo o excelente Cada Um Vive Como Quer (1970), de Bob Rafelson. Em sua narrativa facetada (alternando ação e inação), Paul é um marinheiro trôpego em terra firme (Na cabine é tudo pequeno demais e fora tudo é grande demais. É infinito.) e que, sem a malícia “tradicional” dos marinheiros aventureiros, acaba por perder-se num eterno reencontrar-se para novamente se perder no desalinhamento dos ponteiros e do giro do planeta. Ele deseja o mar, que é o seu país (e já não o tem). Ele deseja o amor de Rosa, por quem se apaixona (e pensa tê-lo). O movimento retrógado do corpo, no embate físico e ou no relamento sexual e ou no registro da cidade estrangeira, não o conduz ao resgate do seu eu, mas a um inevitável naufrágio mental. Longe da rotina pesada do navio torna-se prisioneiro da própria liberdade. O (seu) tempo não passa. O (seu) tempo não para. Num mundo padronizado pelas regras do capital, uma pessoa sem identidade é ninguém até mesmo para o amor. Quando não se tem certeza do querer, a felicidade é ilusória.

Quanto à brancura do instigante título Na Cidade Branca, cabe ao espectador relacioná-la ou não aos percalços da descida do marinheiro ingênuo na região portuária de Lisboa, cujo branco das antigas edificações refletem com maior intensidade a luz solar..., cegando e ou iluminando suas autodescobertas e devaneios traduzidos nas cartas enigmáticas (O tempo se desfez. De manhã bebo, mas não há manhã, meio-dia ou noite. Também bebo à tarde e à noite. Eu durmo durante o dia. Nada existe realmente. O silêncio é pesado e leve. Eu sou um mentiroso tentando dizer a verdade.), quase monossilábicas, que envia junto com seus filmes monocórdios, para a mulher Elisa (Julia Vonderlinn), na Suíça. Imagem (memória) e literatura (desmemória) num mesmo fotograma. Acredita-se que toda epifania seja de uma brancura perturbadora (Sonhei que a cidade era branca, que o quarto era branco e que a solidão e a calma também eram brancas).


O drama psicológico Na Cidade Branca, cujo roteiro (comenta-se) teria sido improvisado pelo diretor e seus ótimos atores, tem curiosos diálogos (em alemão, inglês e português) suficientes apenas para manter o ritmo da trama simbolista. O elenco é mínimo e, embora alguns deslizes técnicos, principalmente de continuidade, possam incomodar os mais atentos, a direção de Alain Tanner é segura. A fotografia principal, nada intrusiva, é de Acácio de Almeida, que também é o responsável pela excelente restauração digital da película em 4K.

Enfim, com um enredo que faz a gente se lembrar, principalmente da estrofe inicial da música Roda Viva (1967), de Chico Buarque: “Tem dias que a gente se sente/ Como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu/ A gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar/ Mas eis que chega a roda viva/ E carrega o destino pra lá/ Roda mundo, roda-gigante/ Roda moinho, roda pião/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração.”..., Na Cidade Branca é um filme sentimental e poético, para se contemplar sem pressa e refletir se o final é um recomeço... 

*Este filme está sendo exibido no Festival Volta ao Mundo: Suíça, da plataforma de streaming Petra Belas Artes À La Carte.


NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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