quinta-feira, 6 de maio de 2021

Crítica: Espacate

 


E S P A C A T E

por Joba Tridente

Há uns dois anos a pauta do dia era a migração humana. Gente fugindo da fome, da guerra, da ditadura em sua terra natal..., em busca de uma (suposta) vida melhor em países mais ricos. Muitos e muitos morreram na travessia marítima. Muitos e muitos morreram na praia. Muitos e muitos morreram na travessia terrestre. Muitos e muitos morreram na fronteira. Muitos e muitos morreram nas mãos de cidadãos extremistas dos países ricos onde cidadão pobres acreditavam haver um futuro. Muitos e muitos foram deportados para a sua miséria inicial. Para sua miséria existencial. Para sua invisibilidade. O trânsito do enxame de seres humanos nas fronteiras só perdeu o interesse da mídia para a exploração de outra tragédia, a da Covid.19. Um vírus que molesta pobres e ricos..., claro que mais pobres que ricos. Uma praga que não pede licença e nem mostra passaporte para atravessar fronteiras..., obrigando os governos a se esticarem para rever seus protocolos médicos emergenciais e inibir o trânsito dos seus próprios cidadãos.

Esticar, para alcançar algo, lembra o gesto do espacate: “movimento ginástico que consiste em abrir as pernas de modo que estas formem um ângulo de 180° e fiquem paralelas ao solo”. Espacate é o título do filme de estreia em longa-metragem do cineasta suíço Christian Johannes Koch, onde o famoso movimento de alongamento vai muito além da metáfora. Neste comovente drama, Christian, que divide o roteiro com Josa Sesink, aborda a complicada questão da imigração ilegal na Suíça entrelaçada numa trama que explora, com perspicácia, relações extraconjugais e trabalhista, preconceito racial, sonhos olímpicos, oportunismo e aparência social.


Em Espacate (Spacat, 2020) o espectador acompanha a rotina de Marina (Rachel Braunschweig), que aparentemente vive uma vida harmoniosa com o marido Jörg (Michael Neuenschwander) e a filha adolescente Selma (Nellie Hächler), numa cidade da zona rural suíça. Marina é professora e entre seus alunos encontra-se a ginasta promissora Ulyana (Masha Demiri), que é a filha adolescente de Artem (Aleksey Serebryakov)..., ambos imigrantes ucranianos ilegais. Artem busca a invisibilidade, age com cautela e aceita as regras discriminatórias do mercado de trabalho para gente (ilegal) feito ele. Ulyana é capaz de qualquer ação para participar de campeonatos de ginástica e não se preocupa com as recomendações de invisibilidade do pai..., que mantém um ardente caso amoroso com a sua professora Marina.

Porém, como nem tudo que está longe dos olhos está realmente oculto..., as cartas que dão sustentação ao castelo do bem estar social e sentimental começam a perder força após um acidente de trabalho envolvendo Artem e um incidente de roubo de fone de ouvido envolvendo Ulyana. Dizem que de boas intenções o inferno está cheio e ou que a emenda sempre sai pior que o soneto. Será? Bem, ao socorrer pai e filha, a amante e professora solidária Marina acaba casualmente aproximando as duas famílias em uma situação moralmente complexa e angustiante, fazendo o castelo desmoronar e jogar luz perigosamente em quem busca a sombra. Daí, para preservar-se (num cenário de segredos, mentiras e chantagens), só lhe resta se esticar muito e fazer escolhas sociais e profissionais que podem deixar sequelas na vida de todos ao seu redor...


Dito assim, parece mais um enredo melodramático, com amores clandestinos à la française, birra e delinquência juvenil. Mas, as aparências enganam. Johannes Koch busca nas variantes do amor e do desejo a razão para o desenvolvimento de uma história de cunho social tocante e muito bem contada. Seus protagonistas são distintos e verossímeis, principalmente o cauteloso Artem (composição excelente de Serebryakov), que aceita humilhações terríveis para sobreviver em terras alheias (a cena na loja de variedades é de partir o coração) e, principalmente, para proteger a sua querida, mas rebelde, filha Ulyana.

Nesse entrelaçamento fascinante, onde os assuntos provocativos são esticados até o ponto de ruptura, o que se destaca é a inteligência com que o diretor e roteirista cutuca os atos oportunistas, a hipocrisia humana, geralmente travestida de solidariedade. Encontra o tom de voz certo para bradar sobre a intolerância social, trabalhista e judicial, envolvendo suíços e imigrantes. Para argumentar sobre a extensão da solicitude dos nativos aos estrangeiros ilegais..., bem como das imperdoáveis situações de constrangimento. Para questionar a frustração de atletas talentosos cujo sonhos de grandes competições tornam-se pesadelos em terras alheias. Segundo Koch, “O número atual de “sans papiers”, pessoas que vivem na Suíça, sem documentos de residência válidos, é estimado entre 90.000 e 250.000. (...) O que é muito típico da Suíça é que, no primeiro nível, você não consegue ver toda a desigualdade e a injustiça. Está escondido, está atrás das fachadas - por exemplo, em comparação com Berlim, onde é óbvio.).  


Christian Johannes Koch fala sobre integridade física, identidade moral e pertencimento social sem jamais resvalar na pieguice ou apelar para as facilidades complacentes do melodrama. O sabor agridoce do romance (adúltero) entre Marina e Artem, que talvez soe como retórica de segundo plano, está mais para estopim da reflexão sobre os desamparados no mundo. São várias as leituras possíveis (e sublimares) nas entrelinhas deste drama atual pungente e de interesse universal sobre pessoas que se esticam ao máximo para alcançar seus (diferentes) objetivos. Não faltam doses de suspense e de melancolia ao intenso enredo que costura com maestria as ambiguidades de Marina e de Ulyana. O elenco que dá corpo e alma ao trio protagonista é precioso. O longa-metragem tem o ritmo adequado à uma narrativa tão pertinente e que nos faz rever conceitos de liberdade e de ilegalidade...

Espacate, que fez parte da seleção oficial do festival de Sofia, onde ganhou o prêmio de Melhor Filme, e também de San Sebastián, Zurique e da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, está sendo exibido no Festival Volta ao Mundo: Suíça, da plataforma de streaming Petra Belas Artes À La Carte.


NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.


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