MÃES DE VERDADE
por Joba Tridente
Ser mãe é padecer no paraíso!, é um verso surrupiado do famoso
soneto Ser Mãe, do escritor brasileiro Coelho Neto (Ser mãe é
desdobrar fibra por fibra/ O coração! Ser mãe é ter no alheio/ Lábio que suga,
o pedestal do seio,/ Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra. (...) Ser mãe é
ser um anjo que se libra/ Sobre um berço dormindo! É ser anseio,/ É ser
temeridade, é ser receio,/ É ser força que os males equilibra! (...) Todo o bem
que a mãe goza é bem do filho,/ Espelho em que se mira afortunada,/ Luz que lhe
põe nos olhos novo brilho! (...) Ser mãe é andar chorando num sorriso!/ Ser mãe
é ter um mundo e não ter nada! /Ser mãe é padecer num paraíso!)..., que
virou ditado popular e, hoje em dia, incomoda muitas mulheres, por parecer
encerrá-las numa redoma de submissão (ao marido) e dedicação incondicional (aos
filhos). Não creio ter sido essa a intenção do autor. Mas, atualmente são
tantas as releituras ideologizadas de todo e qualquer assunto que é melhor
deixar o verso quieto e ir logo ao que interessa...: Mães de Verdade,
que, de certa forma, tem tudo a ver com o dito e com o poema e além.
Mães de Verdade (Asa ga Kuru, 2020) é o tema-título do
filme da cineasta japonesa Naomi Kawase (Esplendor, Sabor da
Vida), que vem chamando a atenção do grande público pela delicadeza com que
é tratado o assunto maternidade. Pela constante exp0loração midiática, sabemos
bem como situações envolvendo mães e filhos (em atos de violência ou atos de benevolência)
costumam mexer com sentimento humano..., fazendo-nos refletir sobre mães
biológicas (vulnerabilidade social) versus mães adotivas (estabilidade
social). É claro que muitos casos de violência doméstica contra crianças nem
sempre estão relacionados com o estado social dos pais biológicos e ou adotivos.
Mas com a psique dos guardiões. A violência física e ou psicológica dos pais (ao
educar ou salvaguardar) não tem idade para vitimar os filhos...,
que podem carregar traumas para toda a vida. O que isto tem a ver com o tema do
filme? Muita coisa! Pois, como a personagem Shizue Asami salienta: “O
pôr do sol parece sempre igual, mas é diferente a cada dia”. Ou seja: todas
as mães parecem iguais..., mas cada uma é única (para o bem ou para o mal).
Baseado no romance Asa ga Kuru (2015), de Mizuki Tsujimura, que
dividiu o roteiro com Kawase e Izumi Takahashi, Mães de Verdade
acompanha o desenrolar de uma trama que entrelaça o presente e o passado do
casal Kiyokazu Kurihara (Arata Iura) e Satoko (Hiromi
Nagasaku), que adotou legalmente um bebê, Asato (Reo Sato), com
o passado e o presente da jovem mãe da criança, Hikari Katakura (Aju
Makita). Quando a história começa vemos uma criança saudável e carinhosa (Asato),
de seis anos, vivendo num lar harmonioso com seus pais (Kiyokazu e Satoko)
e se preparando para começar a frequentar a escola.
Corta! Através de flashbacks assistimos a angústia do casal (Kiyokazu
e Satoko) por não poder ter filhos e a sua mudança na rotina
profissional e doméstica para ter direito a adotar uma criança. Seis anos após a
adoção, a tranquilidade dos pais adotivos é perturbada pelo telefonema de uma
mulher se dizendo mãe da criança e exigindo o filho de volta e ou dinheiro para
não contar aos vizinhos do casal e nem espalhar na escola que o menino é
adotado. Embora a adoção seja legal no Japão, ainda é estigmatizada. Corta!
Através de flashbacks conhecemos a história da apaixonada adolescente de
catorze anos Hikari, que engravida (do jovem namorado) e os pais a
obrigam buscar acolhimento na ONG Baby Baton..., criada pela adorável Shizue
Asami (Miyoko Asada), numa ilha próxima a Hiroshima, para cuidar de
mulheres com gravidez indesejada..., e dar a criança para adoção (Jamais
esquecerei que assistimos ao pôr do sol juntos). Corta!
Assim, uma rede de amor e dor vai sendo tecida e cada malha preenchida
com grande ternura e muita ansiedade. De um lado uma mãe (adotiva)
amorosíssima. De outro uma mãe (biológica) traumatizada pela doação do filho e
a quem foi negado o amor maternal. No meio uma criança que pode ter o seu
futuro comprometido. Kawase narra com lentidão calculada as histórias das duas
mulheres. Uma vagarosidade, por vezes contemplativa, que dá ao espectador o
tempo necessário para assimilar e avaliar o processo da maternidade delas, bem
como suas ocupações no pós-parto e na pós-adoção. Já adianto, é impossível não se
comover com o drama das duas mães quando os laços de afetividade e biológico
dão um nó difícil de ser desfeito..., e ou ficar alheio ao final desconcertante
desta história (concebível) envolvente.
Enquanto delineia as personalidades de Satoko e Hikari, as
roteiristas abrem, em sequências com características documentais, um pertinente
leque de considerações sobre o machismo: que abusa, que alicia meninas, que
prostitui, que escraviza..., dando voz verossímil a algumas personagens que
também buscam conforto (sem julgamento) na Baby Baton, deixando fluir a
intimidade de cada uma no vai e vem das ondas que trazem mulheres culpadas
à ilha e levam mulheres aliviadas ao continente..., ou vazias de
si. Há sutileza nas denúncias, por isso calam ainda mais fundo!
Enfim, em Mães de Verdade a notável diretora Naomi Kawase trata
com carinho e alguma melancolia temas complexos e pungentes, como o da gravidez
na adolescência e o da adoção..., abrindo espaço para se rever questionamentos
como: mãe é quem dá à luz ou quem cria? Os
diálogos são bem escritos e a fotografia assinada por Yûta Tsukinaga, com
registros de Naoki Sakakibara e Kawase, é excelente..., em alguns momentos nos
remete aos belos e convidativos cenários interioranos dos animes. A química entre
os atores garante interpretações seguras e naturalistas do cativante elenco. Excetuando
um descartável apêndice (envolvendo agiotas), o roteiro é conciso o suficiente
para não desviar o foco e tampouco resvalar no melodrama. A trilha pontuada não
incomoda. A música-tema é suave e, acredite, milagrosamente legendada em
português! Um filme que vai ecoar e ecoar fundo (e sem distinção) nas mentes de
mulheres e homens que ainda não perderam a ternura...
*A estreia de Mães de
Verdade está prevista, nos cinemas, para o dia 13 de maio de 2021.
NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não
refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha.
Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema)
aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro
curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer
crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se
compara à "traumatizante" e divertida experiência de
cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power
Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em
Curitiba.
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