segunda-feira, 10 de maio de 2021

Crítica: Mães de Verdade

MÃES DE VERDADE

por Joba Tridente 

Ser mãe é padecer no paraíso!, é um verso surrupiado do famoso soneto Ser Mãe, do escritor brasileiro Coelho Neto (Ser mãe é desdobrar fibra por fibra/ O coração! Ser mãe é ter no alheio/ Lábio que suga, o pedestal do seio,/ Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra. (...) Ser mãe é ser um anjo que se libra/ Sobre um berço dormindo! É ser anseio,/ É ser temeridade, é ser receio,/ É ser força que os males equilibra! (...) Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,/ Espelho em que se mira afortunada,/ Luz que lhe põe nos olhos novo brilho! (...) Ser mãe é andar chorando num sorriso!/ Ser mãe é ter um mundo e não ter nada! /Ser mãe é padecer num paraíso!)..., que virou ditado popular e, hoje em dia, incomoda muitas mulheres, por parecer encerrá-las numa redoma de submissão (ao marido) e dedicação incondicional (aos filhos). Não creio ter sido essa a intenção do autor. Mas, atualmente são tantas as releituras ideologizadas de todo e qualquer assunto que é melhor deixar o verso quieto e ir logo ao que interessa...: Mães de Verdade, que, de certa forma, tem tudo a ver com o dito e com o poema e além. 


Mães de Verdade (Asa ga Kuru, 2020) é o tema-título do filme da cineasta japonesa Naomi Kawase (Esplendor, Sabor da Vida), que vem chamando a atenção do grande público pela delicadeza com que é tratado o assunto maternidade. Pela constante exp0loração midiática, sabemos bem como situações envolvendo mães e filhos (em atos de violência ou atos de benevolência) costumam mexer com sentimento humano..., fazendo-nos refletir sobre mães biológicas (vulnerabilidade social) versus mães adotivas (estabilidade social). É claro que muitos casos de violência doméstica contra crianças nem sempre estão relacionados com o estado social dos pais biológicos e ou adotivos. Mas com a psique dos guardiões. A violência física e ou psicológica dos pais (ao educar ou salvaguardar) não tem idade para vitimar os filhos..., que podem carregar traumas para toda a vida. O que isto tem a ver com o tema do filme? Muita coisa! Pois, como a personagem Shizue Asami salienta: “O pôr do sol parece sempre igual, mas é diferente a cada dia”. Ou seja: todas as mães parecem iguais..., mas cada uma é única (para o bem ou para o mal). 


Baseado no romance Asa ga Kuru (2015), de Mizuki Tsujimura, que dividiu o roteiro com Kawase e Izumi Takahashi, Mães de Verdade acompanha o desenrolar de uma trama que entrelaça o presente e o passado do casal Kiyokazu Kurihara (Arata Iura) e Satoko (Hiromi Nagasaku), que adotou legalmente um bebê, Asato (Reo Sato), com o passado e o presente da jovem mãe da criança, Hikari Katakura (Aju Makita). Quando a história começa vemos uma criança saudável e carinhosa (Asato), de seis anos, vivendo num lar harmonioso com seus pais (Kiyokazu e Satoko) e se preparando para começar a frequentar a escola. 


Corta! Através de flashbacks assistimos a angústia do casal (Kiyokazu e Satoko) por não poder ter filhos e a sua mudança na rotina profissional e doméstica para ter direito a adotar uma criança. Seis anos após a adoção, a tranquilidade dos pais adotivos é perturbada pelo telefonema de uma mulher se dizendo mãe da criança e exigindo o filho de volta e ou dinheiro para não contar aos vizinhos do casal e nem espalhar na escola que o menino é adotado. Embora a adoção seja legal no Japão, ainda é estigmatizada. Corta! Através de flashbacks conhecemos a história da apaixonada adolescente de catorze anos Hikari, que engravida (do jovem namorado) e os pais a obrigam buscar acolhimento na ONG Baby Baton..., criada pela adorável Shizue Asami (Miyoko Asada), numa ilha próxima a Hiroshima, para cuidar de mulheres com gravidez indesejada..., e dar a criança para adoção (Jamais esquecerei que assistimos ao pôr do sol juntos). Corta! 


Assim, uma rede de amor e dor vai sendo tecida e cada malha preenchida com grande ternura e muita ansiedade. De um lado uma mãe (adotiva) amorosíssima. De outro uma mãe (biológica) traumatizada pela doação do filho e a quem foi negado o amor maternal. No meio uma criança que pode ter o seu futuro comprometido. Kawase narra com lentidão calculada as histórias das duas mulheres. Uma vagarosidade, por vezes contemplativa, que dá ao espectador o tempo necessário para assimilar e avaliar o processo da maternidade delas, bem como suas ocupações no pós-parto e na pós-adoção. Já adianto, é impossível não se comover com o drama das duas mães quando os laços de afetividade e biológico dão um nó difícil de ser desfeito..., e ou ficar alheio ao final desconcertante desta história (concebível) envolvente. 


Enquanto delineia as personalidades de Satoko e Hikari, as roteiristas abrem, em sequências com características documentais, um pertinente leque de considerações sobre o machismo: que abusa, que alicia meninas, que prostitui, que escraviza..., dando voz verossímil a algumas personagens que também buscam conforto (sem julgamento) na Baby Baton, deixando fluir a intimidade de cada uma no vai e vem das ondas que trazem mulheres culpadas à ilha e levam mulheres aliviadas ao continente..., ou vazias de si. Há sutileza nas denúncias, por isso calam ainda mais fundo! 


Enfim, em Mães de Verdade a notável diretora Naomi Kawase trata com carinho e alguma melancolia temas complexos e pungentes, como o da gravidez na adolescência e o da adoção..., abrindo espaço para se rever questionamentos como: mãe é quem dá à luz ou quem cria? Os diálogos são bem escritos e a fotografia assinada por Yûta Tsukinaga, com registros de Naoki Sakakibara e Kawase, é excelente..., em alguns momentos nos remete aos belos e convidativos cenários interioranos dos animes. A química entre os atores garante interpretações seguras e naturalistas do cativante elenco. Excetuando um descartável apêndice (envolvendo agiotas), o roteiro é conciso o suficiente para não desviar o foco e tampouco resvalar no melodrama. A trilha pontuada não incomoda. A música-tema é suave e, acredite, milagrosamente legendada em português! Um filme que vai ecoar e ecoar fundo (e sem distinção) nas mentes de mulheres e homens que ainda não perderam a ternura... 

*A estreia de Mães de Verdade está prevista, nos cinemas, para o dia 13 de maio de 2021.

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

  

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