domingo, 11 de janeiro de 2015

Crítica: Livre


Para a satisfação dos americanos do norte, e de espectadores carentes em outras partes do mundo, que adoram o gênero autoajuda, Hollywood produz ao menos um “grande” filme por ano, manipulando cirurgicamente o assunto caro ao Oscar (quase certo). Nas tramas “baseadas” e ou inspiradas em fatos há foco para todas as linhas de deficiência (física, mental, religiosa, social, psicológica) com potencial mínimo para chacoalhar o espectador sugestionável. Para a ainda meca do cinema, se bem contada, a história (real) mais trágica pode ser um eficiente entretenimento (fictício).

Livre (Wild, EUA, 2014), com direção de Jean-Marc Vallée e roteiro de Nick Hornby, baseado no livro de memórias de Cheryl Strayed: Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail (lançado no Brasil com o título piegas Livre - A Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço)..., é uma cinebiografia que acompanha a caminhada de 1.100 milhas, pela Pacific Crest Trail (do deserto de Mojave, na Califórnia, até o Estado de Washington, fronteira com o Canadá), nos EUA, empreendida, em 1995, pela jovem Cheryl (Reese Witherspoon), em busca de equilíbrio do corpo e da mente.  


A produção, que equilibra aventura e drama, é uma versão abreviadíssima (e razoavelmente fiel) de uma obra de mais de 400 páginas, inclusive com diálogos idênticos aos da edição brasileira. A narrativa, assim como no livro, alterna o registro de alguns momentos da caminhada com flashbacks (melo)dramáticos que desvelam, em doses homeopáticas, a degradação de Cheryl e a sua amorosa relação com mãe Bobbi (Laura Dern, excepcional)..., razões da catártica viagem da jovem que, entre a psicanálise (numa sala fechada) e a caminhada (ao ar livre) para expurgar todos os (seus) males, optou por fazer (a longa) trilha PCT, apostando no tempo e na paisagem para refletir sobre sua vida. Mas, sabe como é: o tempo não para e a paisagem muda!


A questão da “razoável fidelidade” pode ser uma pedra na bota e, conforme a pisada, incômoda. A jornada de Cheryl, por exemplo, que já tem um ritmo lento no livro, parece mais arrastada e (até) desinteressante na telona, principalmente para quem não é mochileiro. Já as cenas de viagem, em belas (e maquiadas) locações, podem agradar ao leitor que espera por uma versão ilustrada da autobiografia, mas talvez desagrade ao espectador que, desconhecendo o livro, não assimile a “frieza” e o contínuo lamento (justificáveis) da jovem diante de paisagens magníficas. Por outro lado, a consistência do drama familiar (em flashback), principalmente pela tocante interpretação de Dern (roubando todas as cenas), compensa qualquer bocejo. Aqui, sem dúvida, o drama é muito superior a aventura.

Livre é um trail movie que, além das mensagens de superação física e moral, ensina a preparar uma mochila, a escolher um bom calçado (de marca!), a blefar quando se sentir em perigo..., enfim, um manual de sobrevivência para trilheiros inexperientes mas determinados. Talvez sirva, também, de estímulo ao espectador sedentário, já que, mesmo sugerindo o clima do clássico Amargo Pesadelo (Deliverance, 1972), de John Boorman e do inquietante Na Natureza Selvagem (Into The Wild, 2007), de Sean Penn, faz a viagem de Cheryl, pela costa oeste dos EUA, parecer menos ameaçadora do que no livro e do que talvez seja realmente. Agora, se após a sessão algum espectador (problemático ou não) vai realmente querer se aventurar a pé numa jornada de autoconhecimento ou meramente esportiva, nem que seja pelo Caminho de São Tiago e ou pelo Caminho da Fé para Aparecida, aí é outro atalho!


Versões cinematográficas de histórias baseadas e ou inspiradas em fatos, por “serem” muito “pessoais”, podem tocar o espectador pela familiaridade com o assunto ou lhe dizer absolutamente nada. Também porque, sem entrar no mérito do egocentrismo literário (autobiografia, autoajuda), não é todo best-seller que resulta num bom filme. O mundo está cheio de histórias (reais) que são muito mais empolgantes que a grande maioria das hollywoodianas e que jamais chegarão às telas de cinema e ou aos livros. Se bem que, se elas chegassem às telas, o abundante recheio de clichês, pieguice, manipulação emocional, as tornariam também inócuas.

Andar e só andar me parece pouco para se comungar com a natureza e rever conceitos de vida. Mas cada um sabe do suor necessário para expiar a sua dor.

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