Para a satisfação dos americanos do norte, e de espectadores
carentes em outras partes do mundo, que adoram o gênero autoajuda, Hollywood
produz ao menos um “grande” filme por ano, manipulando cirurgicamente o assunto
caro ao Oscar (quase certo). Nas tramas “baseadas” e ou inspiradas em fatos há
foco para todas as linhas de deficiência (física, mental, religiosa, social,
psicológica) com potencial mínimo para chacoalhar o espectador sugestionável. Para
a ainda meca do cinema, se bem contada, a história (real) mais trágica pode ser
um eficiente entretenimento (fictício).
Livre (Wild, EUA, 2014), com direção de Jean-Marc Vallée e roteiro de Nick
Hornby, baseado no livro de memórias de Cheryl Strayed: Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail (lançado no
Brasil com o título piegas Livre - A
Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço)..., é uma cinebiografia que
acompanha a caminhada de 1.100 milhas, pela Pacific Crest Trail (do deserto de
Mojave, na Califórnia, até o Estado de Washington, fronteira com o Canadá), nos
EUA, empreendida, em 1995, pela jovem Cheryl
(Reese Witherspoon), em busca de
equilíbrio do corpo e da mente.
A produção, que equilibra aventura e drama, é
uma versão abreviadíssima (e razoavelmente fiel) de uma obra de mais de 400
páginas, inclusive com diálogos idênticos aos da edição brasileira. A narrativa,
assim como no livro, alterna o registro de alguns momentos da caminhada com flashbacks
(melo)dramáticos que desvelam, em doses homeopáticas, a degradação de Cheryl e a sua amorosa relação com mãe Bobbi (Laura Dern, excepcional)..., razões da catártica viagem da jovem
que, entre a psicanálise (numa sala fechada) e a caminhada (ao ar livre) para
expurgar todos os (seus) males, optou por fazer (a longa) trilha PCT, apostando
no tempo e na paisagem para refletir sobre sua vida. Mas, sabe como é: o tempo
não para e a paisagem muda!
A questão da “razoável fidelidade” pode ser uma
pedra na bota e, conforme a pisada, incômoda. A jornada de Cheryl, por exemplo, que já tem um ritmo lento no livro, parece mais
arrastada e (até) desinteressante na telona, principalmente para quem não é
mochileiro. Já as cenas de viagem, em belas (e maquiadas) locações, podem
agradar ao leitor que espera por uma versão ilustrada da autobiografia, mas talvez
desagrade ao espectador que, desconhecendo o livro, não assimile a “frieza” e o
contínuo lamento (justificáveis) da jovem diante de paisagens magníficas. Por
outro lado, a consistência do drama familiar (em flashback), principalmente
pela tocante interpretação de Dern (roubando todas as cenas), compensa qualquer
bocejo. Aqui, sem dúvida, o drama é muito superior a aventura.
Livre é um trail movie que, além das mensagens de
superação física e moral, ensina a preparar uma mochila, a escolher um bom
calçado (de marca!), a blefar quando se sentir em perigo..., enfim, um manual
de sobrevivência para trilheiros inexperientes mas determinados. Talvez sirva,
também, de estímulo ao espectador sedentário, já que, mesmo sugerindo o clima
do clássico Amargo Pesadelo (Deliverance, 1972), de John Boorman e do
inquietante Na Natureza Selvagem (Into The Wild, 2007), de Sean Penn, faz
a viagem de Cheryl, pela costa oeste
dos EUA, parecer menos ameaçadora do que no livro e do que talvez seja
realmente. Agora, se após a sessão algum espectador (problemático ou não) vai
realmente querer se aventurar a pé numa jornada de autoconhecimento ou
meramente esportiva, nem que seja pelo Caminho
de São Tiago e ou pelo Caminho da Fé
para Aparecida, aí é outro atalho!
Versões cinematográficas de histórias baseadas e
ou inspiradas em fatos, por “serem” muito “pessoais”, podem tocar o espectador
pela familiaridade com o assunto ou lhe dizer absolutamente nada. Também
porque, sem entrar no mérito do egocentrismo literário (autobiografia,
autoajuda), não é todo best-seller que resulta num bom filme. O mundo está
cheio de histórias (reais) que são muito mais empolgantes que a grande maioria
das hollywoodianas e que jamais chegarão às telas de cinema e ou aos livros. Se
bem que, se elas chegassem às telas, o abundante recheio de clichês, pieguice,
manipulação emocional, as tornariam também inócuas.
Andar e só andar me parece pouco para se
comungar com a natureza e rever conceitos de vida. Mas cada um sabe do suor
necessário para expiar a sua dor.
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