Quando do lançamento cinematográfico de Divergente
(2014), de Neil Burger, baseado na trilogia homônima (2011/2013) da escritora
Veronica Roth, escrevi: “Utopia distópica
e ou distopia utópica é um assunto perturbador e recorrente na ficção
científica. Quando bem desenvolvido, na literatura ou no cinema, pode resultar
em acalorada e reflexiva discussão. No entanto, parece que os novos autores não
querem saber de lição de casa: ler ou ver os mestres do gênero que trataram do
tema. Como o passado não parece ser de interesse de quem projeta literariamente
ou cinematograficamente o futuro, e o leitor ou espectador infantojuvenil está
mais interessado na aventura romanceada no caos do que na reflexão do caos...,
o que vier é lucro para editores e produtores.”
Falava da nova onda de filmes que trata
superficialmente do assunto (distopia) numa linguagem juvenil, e que já havia
trazido o blockbuster Jogos Vorazes
(2012), de Gary Toss, baseado na trilogia homônima (2008/2010) de Suzanne
Collins. Até então não conhecia O Doador
de Memórias, o premiado livro de Lois Lowry, lançado em 1993, que
certamente serviu de referência para os best-sellers
posteriores das outras duas autoras. Desde o seu lançamento, o ator Jeff
Bridges tentou em vão adaptá-lo para o cinema, reservando para seu pai Lloyd
Bridges (1913-1998), o papel do Doador,
que agora lhe coube. O que explica, mas não justifica totalmente, porque a
versão dirigida por Phillip Noyce,
que chega aos cinemas vinte anos depois, tem um ar meio de história já
vista.
É impossível não se lembrar de Divergente (que escrito depois chegou
antes ao cinema), e ou ficar alheio aos resquícios de obras anteriores, na
literatura: Admirável Mundo Novo
(1932), Aldous Huxley, 1984 (1949) de
George Orwell, Fahrenheit 451 (1953),
de Ray Bradbury..., e no cinema: THX 1138
(1971), de George Lucas, e Brilho Eterno
de uma Mente sem Lembranças (2004), de Charlie Kaufman/Michel Gondry. Sequências
mais lúdicas podem também remeter ao “Rosebud”
de Cidadão Kane (1941), de Orson
Welles e ao “vermelho” de Pleasantville (A
Vida em Preto e Branco, 1998), de Gary Ross.
Toda via distópica tem a mesma raiz: controle de
distúrbios. Lenga-lenga de todo déspota que, em troca de sua magnânima proteção
e do nirvana, anula (esteriliza) o cidadão, suprimindo as suas necessidades
(sociais) básicas. O equilíbrio compulsório (individual e coletivo), a harmonia
forçada, como a minoria (rebelde) sabe, dura até o primeiro chute no calcanhar.
O que nem sempre satisfaz a turba mentecapta acomodada ao jugo. Como a que
habita a Comunidade, um agrupamento de “pessoas” (sobreviventes de um conflito
global) localizado num platô (?), cuja fronteira é o vazio e um vislumbre de
Alhures.
Ali, sob o comando da (holográfica) Anciã-Chefe (Meryl Streep), para não se repetir os erros do passado, proíbe-se o
passado. Ou melhor, proíbe-se toda e qualquer lembrança do passado existente
até o “surgimento” da estéril Comunidade, onde humanos e vegetais vegetam impassíveis,
sem a presença de animais (irracionais!) para perturbar a ordem emocional. O
único vislumbre da vida anterior na Terra é acessível apenas ao velho Doador de Memórias (Jeff Bridges) e ao seu aprendiz Jonas
(Brenton Thwaites), um adolescente
de 16 anos que tem a Capacidade de Ver
Além e que, ao conhecer o que está oculto no admirável mundo novo da
Comunidade, passa a questionar o porquê das proibições impostas pelo Comitê de Anciãos etc....
Como O
Doador de Memórias me pareceu, por vezes, aborrecido, com seu roteiro um
tanto simplório e sem muita convicção, decidi conferir o premiado livro. O
drama literário (superior à versão cinematográfica!) é breve, de fácil leitura,
e tem alguma originalidade no relato tão absurdo quanto reflexivo de uma
população que (num futuro indistinto) opta literalmente por uma vida em preto e
branco: “(...) Houve um tempo, aliás, em que a pele tinha muitas cores diferentes. (...). Hoje em dia a pele de todos é a mesma... (...) Nosso povo fez essa opção... (...) Antes do meu tempo, antes do tempo anterior
ao meu, muito tempo atrás. Desistimos das cores quando desistimos do sol e
acabamos com as diferenças. (...)
Adquirimos controle sobre muitas coisas. Mas tivemos de abrir mão de outras.”
Só não é dito como conseguiram tal (e)feito (psicológico?) de anular a cor da
pele e de tudo mais, de dessensibilizar a população e de controlar o tempo
(sempre ameno), além de “apagar” o sol, a lua, as estrelas e mesmo assim “usufruir”
do dia e da noite.
Assim como no livro, boa parte da narrativa é
filmada em preto e branco (com nuances de cinza e sépia e, às vezes, uma
corzinha vazada). A cor, por vezes saturada, aparece no despertar das memórias
para Jonas e, claro (coisa que nunca
entendi!), duplamente para o espectador. Quem tiver bons olhos verá outras
infiltrações. A ideia de que, para se evitar o racismo (e outros “ismos”), o Comitê de Anciãos optou pela eugenia
ariana (nazista?), apostando em uma sociedade formada só por gente de cor
branca (geneticamente alterada) é curiosa. Mas, o que poderia dar pano pra muita
manga, não se sustém na sua bizarrice, Faltam contrapontos para aprofundar uma
saudável e colorida discussão étnica e ética. Como dizia o bordão de um velho
programa televisivo no Brasil: Porque sim
não é resposta!
Contradições e ou controvérsias à parte (nas
duas obras), fragmentos de documentários e de noticiários inseridos na trama
enriquecem a leitura cinematográfica..., mas suscita outro questionamento: por
que as antiquíssimas memórias do Doador
não vão além de um século atrás, se ele detém toda a memória do mundo? Será por
conta da memória curta do público-alvo juvenil? Será também por causa desse
espectador jovem que os roteiristas Robert Weide e Michael Mitnick fizeram uma
adaptação equivocada do livro de Lowry, transformando uma novela seca e
reflexiva (protagonizada por um inocente garoto de 12 anos) em um (insípido)
melodrama (protagonizado por um romântico garoto de 16 anos)? Parece que sim e,
como sempre no plano das releituras, mudanças piegas desnecessárias.
O
Doador de Memórias (The
Giver, EUA, 2014), com mais diferenças do que pontos em comum com o livro, é
irregular, mas não é de todo descartável. Além do bom elenco, tem lá seus momentos
de interesse e belas sequências (eu dispensaria os valores religiosos em ambos).
É evidente que filmado tal e qual seria muito melhor. Mas aí resultaria em um
cinema mais independente e possivelmente (?) menos comercial (?). Se servir de
consolo, um adulto que não conseguir pegar carona na história pode divagar nas
metáforas e ou analogias (conscientes?): da maçã; da árvore em Alhures; do
vazio; do Gabriel, do Jonas, do preto e branco... Ah, nem é preciso dizer porque
o onipresente Morgan Freeman não está no elenco, não é?
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