segunda-feira, 7 de março de 2022

Crítica: O Ingrediente Secreto

 O  INGREDIENTE  SECRETO

ISCELITEL

por Joba Tridente 

Nos últimos anos (pelo excesso de filmes assistidos?) não tenho encontrado motivação alguma para rir diante de elogiadíssimas “comédias” (pelo riso solto) francesas, italianas, norte-americanas, com um punhado de personagens insuportáveis e situações enfadonhas, batidas, que especialistas acharam (onde?) hilárias, e protagonizadas por atores “engraçadíssimos”. Bem, para não entender o tal “humor” corriqueiramente coloquial, provavelmente eu estava com a cabeça, corpo e alma pra lá de Marrakesh. Porém, após tantos riscos com todo tipo de comédia e já pensando que o engasgo do riso era tão somente meu, eis que finalmente me peguei rindo à vontade com uma pérola de humor negro que chegou lá da Macedônia do Norte: O Ingrediente Secreto (Iscelitel, 2017), do roteirista e diretor Gjorce Stavreski, para exibição exclusiva no Festival Volta ao Mundo: Macedônia do Norte, realizado serviço de streaming À La Carte. 

“aspirina com canela” 


É claro que para uma obra cômica (cinematográfica, teatral, literária) fazer alguém rir de verdade, é preciso, antes de tudo, de uma boa história, de um roteiro convincente, de uma trama envolvente, que faça o espectador sentir alguma empatia (mínima) pelos seus protagonistas..., se anti-heróis, muito melhor. É o caso do arrebatador O Ingrediente Secreto, onde o espectador se solidariza imediatamente com o mecânico de trens Vele (Blagoj Veselinov), que vive na periferia da capital Skopje, está sem receber salário há quatro meses e cujo pai Sazdo (Anastas Tanovski) é portador de câncer de pulmão. 


Em dificuldades financeiras e sem poder contar nem mesmo com o Sistema de Saúde para pagar os remédios caros do pai, Vele acaba oportunamente se apropriando de um pacote de entorpecentes escondido num vagão e, seguindo uma receita da internet, faz um bolo com maconha para aliviar as dores insuportáveis de Sazdo. A receita dá certo e o pai se recupera. No entanto, a notícia da melhora do velho se espalha e coloca Vele numa saia justa. Enquanto os idosos com as mais diversas doenças querem, a todo custo, a tal receita do bolo milagroso, uma dupla de traficantes grosseiros desconfia que o mecânico está com a “carga” que lhes pertence. Encurralado, Vele precisa encontrar um jeito de se livrar dos bandidos e da velhada carente de um “curandeiro” que se amontoa na porta da sua casa. A alternativa mais viável para se livrar do incômodo é também a mais dolorida para pai e filho..., mas, uma hora ou outra, terá de ser enfrentada. 


Ainda que a base da receita seja o tratamento medicinal alternativo de maconha, em doenças graves que já não respondem aos remédios convencionais, a narrativa abre pauta também para observações (em subtramas) de outros questionamentos de uma população cansada de promessas governamentais e que (sem saída!) carece de curandeirismo (metáfora genial). O grande trunfo do roteiro de Stavreski, que trabalha com excelência um drama pesado com grande dose de humor absurdo (aliviando a tensão), é a perspicácia de colocar numa mesma tigela ingredientes (Socioeconomia, Neoliberalismo, Saúde, Medicina Alternativa, Desemprego, Educação) que dão ótima liga e enriquecem o sabor de um bolo que tanto cura alguns males quanto fortalece o cérebro para um grito de indignação de maior alcance. 


“Atire nele, filho.
Coloque o dedo no gatilho e atire.
Acabe com seu pai primeiro.
Em seguida, avance pela vizinhança
e mate cada alma viva deste país esquecido por Deus!
Não pense, atire e nos salve dessa miséria!
Atire, garoto! Atire...”


Com notável direção do meticuloso Gjorce Stavreski (que, além do roteiro e direção, fez produção, edição de som e desenho dos títulos de abertura do filme), excelentes performances naturalistas do elenco, que inclui o alivio cômico Dzem (Aksel Mehmet), com destaque para Blagoj Veselinov e Anastas Tanovski..., o irônico e tragicômico O Ingrediente Secreto, que faz crítica sociopolítica certeira ao país dos Balcãs e assemelhados, é um delicioso achado em tempos de comédias pretenciosas e cujo humor não (me) parece ir além da aldeia dos realizadores. 


Sem abusar de trilha sonora (o ouvido do espectador agradece), esta inventiva dramédia de humor negro balcânico, com alguns diálogos amargos e sinceros, pontuados de nostalgia, locações adequadas (principalmente às sequências de suspense), ótima fotografia (por vezes intimista) de Dejan Dimeski e desfecho surpreendente, é daqueles filmes originais que se vê pouco por essas bandas. Já tive oportunidade de assinalar em outras ocasiões que a melhor crítica ao sistema (político e/ou social e/ou religioso e/ou científico) é aquela que se faz com inteligência, com ótima dose de sutileza e de humor absurdo, e não aquela berrante, ideologizada e que (de tão explícita!) se torna redundante e aborrecida. Imperdível! Quero mais... 

 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 

Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba. 


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