Assunto de Família
por Joba Tridente
A mim, nenhum filme de Hirokazu Kore-eda marcou tanto
quanto a sua obra-prima Depois da Vida
(1998)..., um filme Haiku que vi e
revi diversas vezes. Talvez por isso me frustro ao tentar reencontrar esta mesma
poética, que não me sai da memória, em outras produções. O mestre Kore-eda não
se repete e continua poético em suas tramas que, por melhor que sejam, como por
exemplo o Ninguém Pode Saber (2004),
entre outros, ainda me deixam querendo algo mais que nem eu mesmo sei o que é, mas sei
que não está ali, no que acabei de assistir, como o aclamado e premiado (Palma de Ouro, Cannes, 2018): Assunto de Família.
Com roteiro e direção de Hirokazu Kore-eda, o drama doméstico Assunto de Família (Manbiki
kazoku, Japão, 2018) trata das amarras dos laços de família e ou laços
familiares..., do que é e do que nos parece ser uma família harmoniosa e
solidária em meio a recessão japonesa e o desejo de uma vida melhor, na periferia de
Tóquio. Uma família ideal é aquela cientificamente desvelada pelo DNA ou aquela
que socialmente condiz com a necessidade de cada integrante? Este é o
questionamento que perpassa todo o melodrama agridoce que traz a Vovó (Kirin Hiki), como matriarca de uma família delituosa composta pelo
casal Osamu (Lily Franky) e Nobuyo (Sakura Ando), a jovem Aki
(Mayu Matsuoka), o garoto Shota (Kairi Jō) e a menina Yuri
(Miyu Sasaki).
Todos nesta família de agregados (e mal remunerados)
têm algum segredo pessoal que os une à margem de uma sociedade capitalista e consumista.
Cada ponto, mais ou menos robusto de suas vidas baratas, borda um novo viés numa
trama amoral que busca consenso sobre a rotina de seus atos ilegais: dificuldade financeira
ou hábito? Assunto de Família não é
uma metáfora, mas o retrato nu e cru de uma parcela da humanidade a cada dia mais
descartável da sociedade capitalista global e capaz de qualquer coisa pela mera sensação de
pertencimento social. Quando se trata de marginalizados, raros são os que chegam ao paraíso. Poucos o que conquistam o purgatório. A maioria se acomoda mesmo é no inferno das grandes cidades...
Melancólica, porém amorosa no registro de aconchego
comum entre os excluídos que se atropelam sob marquises e viadutos ou se
amontoam num casebre, a narrativa de Kore-eda não causa surpresa com a
performance do elenco magnífico dando vida a personagens bem desenvolvidos e
seus diálogos críveis..., mas com os detalhes que ajudam a espantar o incômodo do
script em sequências significativas. Não há como ficar imune à cena em que Nobuyo e Yuri refletem concretamente sobre o que é dor e o que é amor, numa
relação entre mãe e filha. Ou não compartilhar com aquela família um instante de
felicidade suprema na ida à praia que iguala pobres e ricos... E o que dizer do
comportamento japonês às refeições, tão diferente de 99% de filmes em que,
mal se põe a mesa, os personagens abrem discussão, crianças são mandadas para
seus quartos sem comer, comida é jogada fora etc?
Kore-eda não tem pressa para o seu Assunto de Família, que se move ao sabor das estações que distinguem, confundem e afloram sentimentos e de grandes
silêncios que convidam à razão. Por conta dessa linguagem nipônica, a impressão
é a de se assistir a uma longa saga em três capítulos que vão se embaralhando e
cuja cartada final, por mais coerente que pareça com o desenrolar dos fatos (nem
sempre muito claros) e a cultura local, pode deixar uma abertura de julgamento que não
satisfaça a todos os espectadores.
É um belo filme, sem dúvida..., e fica
melhor quando se pensa nele após a sessão. Um drama doméstico e social que deve dizer muito a quem tem e ou a quem pensa em constituir uma família biológica e ou socioafetiva...
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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