Que a liberdade de imprensa anda fragilizada e ou
questionada em muitas partes do mundo, não é novidade. Que há muito ela está
deixando de lado a imparcialidade, também. O seu humor caminha próximo ao das
nada confiáveis redes sociais, onde o amor e o ódio, entre “amigos”, variam
conforme o nível de apoio e de contestação. A mídia imprensa mingua. A mídia
televisiva perde a consistência em meio ao mercado sensacionalista de produtos
desgastáveis ou descartáveis. A notícia impressa, falada, vista de manhã, já
pode ser outra à tarde..., embora seja sobre o mesmo assunto. É só uma questão
de repercussão e retorno (capital?).
Houve um tempo em que o jornalismo investigativo era bem
mais confiável e comprometido (com a verdade) que hoje. Conheci jornalistas que
“morreram” em serviço. No entanto, conforme o foco, a imprensa ainda é uma
pedra incômoda para muita gente (sub)mundo afora. Spotligh - Segredos Revelados, de Tom McCarthy, diretor dos excelentes O Agente da Estação (2003) e O
Visitante (2008) e roteirista da animação UP (2009), é daqueles filmes que, ao pautar o bom jornalismo (em vias
de extinção?), prestam um grande serviço à memoria do espectador..., além de servir
de inspiração aos futuros jornalistas, mesmo que a plataforma futura seja outra.
Pedofilia Católica não é assunto novo no cinema.
Recentemente, o documentarista norte-americano Alex Gibney chocou o “mundo dos
inocentes” com o seu explosivo Minha
Máxima Culpa: Silêncio na Casa de Deus (2012), um mergulho na vida do
velhaco sacerdote Lawrence Murphy, que abusava de meninos com deficiência
auditiva. Este, infelizmente não é um assunto esgotado, mas, na mídia certa,
pode alcançar o alvo e o seu redor.
Como dizer não a Deus?
Spotligh - Segredos
Revelados (Spotlight, 2015) é um
magnífico registro da cobertura jornalística dos abusos sexuais praticados por
padres católicos, em Boston (EUA), realizada pela equipe Spotlight, do The
Boston Globe, em 2001/2002. A matéria impressa ganhou repercussão internacional,
abalou a cúpula da Igreja Católica Romana, e a equipe recebeu o Prêmio Pulitzer Prize de Serviço Público,
em 2003.
Não fosse o pedido do novo editor do Globe, Marty Baron (Liev Schreiber), para os jornalistas aprofundarem a denúncia
publicada numa coluna, sobre um padre local que, há 30 anos, abusava
sexualmente de crianças da sua paróquia, talvez o spot nem tivesse sido acesso, e aquela cidade jamais viria saber
que não era apenas um “santo” padre, mas setenta, os lobos sedentos em batina
de cordeiro. Judeu, vindo de Miami e sem vínculos com a “cega” comunidade
católica, Marty não temia o “olhar”
de reprovação nem das autoridades eclesiásticas, como o Cardeal Law (Len Cariou),
para tocar no assunto escabroso. O que foi fundamental para garantir o sucesso
da sagrada investigação.
O roteiro enxuto, escrito pelo próprio McCarthy, em parceria
com Josh Singer, é direto: denúncia, levantamento de dados, publicação do artigo.
Sem romances, dramas familiares e nem histórias paralelas. Coisa alguma desvia
a atenção da cativante narrativa que refaz o itinerário dos jornalistas na apuração
dos fatos, com um elenco de primeira. Entre o briefing (de Marty) e o deadline (do artigo) há uma prestativa
equipe, formada pelo editor da Spotlight, Walter
“Robby” Robinson (Michael Keaton),
os repórteres Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Michael Rezendes (Mark
Ruffalo) e o pesquisador, Matt
Carroll (Brian d’Arcy James)...,
que não pode perder o foco. E não perde.
Em busca da verdade, por mais chocante e dolorosa que seja, vasculha
bibliotecas, arquivos públicos, ouve vítimas e seus advogados, como o incansável
Mitchell Garabedian (Stanley Tucci).
Spotligh - Segredos
Revelados fala de crimes
de confessionário, de sacristia, de altar, com a mesma convicção que fala da prática
do bom (e velho?) jornalismo. Num drama comprometido tão somente com os fatos,
em que os roteiristas ouviram tanto os protagonistas da história real quanto os coadjuvantes desse infortúnio, a produção não poderia ser menos que irretocável.
Com direção dinâmica, que aguça os sentidos, Tom McCarthy deve despertar
em muitos espectadores uma admiração maior pelo jornalismo
real, sem glamour e de muita ralação, que está perdendo espaço para o jornalismo
praticado por “estrelas” da comunicação, cuja informação é menos, muito menos
importante que ele, todo poderoso mercador de notícias do 4º Poder.
Sem apelar ao sensacionalismo ou dar chances ao clichê
linchador, na exposição da hipocrisia “religiosa”, diante de fatos deprimentes,
Spotligh se desenvolve na linha do
tempo do bom senso. Em vez de reconstituir cenas de abusos sexuais (afinal este
não é um filme para pedófilos voyeurs),
McCarthy opta pelos depoimentos pungentes das vítimas traumatizadas. Um depoimento
em especial, dado por um padre, tão carrasco quanto vítima, é de virar o estômago.
Spotligh - Segredos
Revelados não subestima a inteligência de nenhum espectador pensante, mas
deve colocar em xeque a fé cega de muitos religiosos cristãos que confundem as
mensagens do seu mestre Cristo com a prática secular e nada cristã dos seus
poderosos “representantes”. Um filme para ser ver, discutir em todas as
comunidades (religiosas ou não) e exibir principalmente em cursos de
jornalismo. Para quem aprecia o melhor do cinema, uma excelente sessão e ótima
reflexão. Amém!
Resumos de Dados da Spotlight/The Globe
• Em 2002, a equipe Spotlight
publicou quase 600 artigos sobre abusos sexuais por parte de mais de 70
sacerdotes, cujos atos foram ocultados pela Igreja Católica.
• Em
dezembro de 2002, o cardeal Law renunciou ao posto na arquidiocese de Boston e
foi transferido à Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma.
• 249
sacerdotes foram acusados publicamente de abusos sexuais na arquidiocese de
Boston.*
• Até o ano
de 2008, 1.476 vítimas tinham sobrevivido a abusos de sacerdotes na área de
Boston.*
• Em todo os
Estados Unidos, 6.427 sacerdotes foram acusados de abusar sexualmente de 17.259
vítimas.*
• Nos anos
transcorridos desde a reportagem da Spotlight, foram descobertos casos de abuso
sexual por parte de sacerdotes da Igreja Católica em 105 cidades
norte-americanas e 102 dioceses de todo o mundo.*
*Fonte: www.bishop-accountability.org,
um banco de dados compilado por Terry McKiernan.
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