No momento, o
mercado cinematográfico brasileiro está inflacionado por documentários. Dizem
que a culpa é da demanda das tvs por assinatura, que anseiam por qualquer coisa
que se assemelhe a filme. Na excessiva produção, a categoria tem irrelevância
para todos os (maus) gostos. Evidentemente que a maioria (felizmente) jamais
chegará às salas e muito menos a festivais. Como em toda exceção há a regra da
qualidade, entre os que finalmente venceram o bloqueio da má vontade dos
exibidores e conseguiram chegar aos cinemas, está o surpreendente Tudo por Amor ao Cinema (2014), de Aurélio Michiles.
Tudo por Amor ao Cinema reconstitui a empolgante trajetória do cinéfilo
Cosme Alves Netto (1937-1996) com uma
tessitura de encher os olhos e a alma dos apaixonados por cinema (nacional e
estrangeiro). Michiles continua despojado em sua arte narrativa. Não há
arrogância e ou achismos na homenagem que merecidamente presta a Cosme Neto, o
inquieto caçador de relíquias que burlou a censura para preservar Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo
Coutinho, e para quem todo filme tem a sua importância documental. Não manipula
emoções, porque a história real do incansável pesquisador e gestor da
Cinemateca do Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, já é por si só um tonel
de sensações: a conturbada vida em família abastada; o fascínio e a curiosidade
nos tempos dos cineclubes (“O que
acontece com os filmes após a exibição nos cinemas?”); o Grupo de Estudos
Cinematográficos do Amazonas; as dores e os horrores da ditadura militar, com as
prisões em 1964 e 1965; a cinemateca ressurgindo das cinzas; as sessões (escondidas)
de cinema; a vida amorosa; festivais, saia justa com Fidel Castro; a paixão
ilimitada pelo filme Dançando na Chuva
(1952)... Não se obriga ao rigor da linearidade e assim, um assunto se enreda a
outro até o foco ser aceso mais adiante..., e depois, num ciclo de histórias admiráveis
(coisa de filme!) que envolvem o espectador da primeira à última cena.
Hoje, com o cinema
cada vez mais acadêmico (cheio de regras clichês) e consequentemente menos
intuitivo (criativo!), é prazeroso tomar ciência do trabalho de Cosme Netto (fundamental
para a cinematografia brasileira) através da instigante narrativa de Aurélio Michiles,
que costura, com precisão cirúrgica, cenas e sequências de filmes clássicos para
traduzir, com elegância e charme (artesanal de moviola), fatos e saudades relatados
por cineastas, historiadores e críticos de cinema. Um belo trabalho de pesquisa
(que contou com a colaboração de Remier Lion Rocha) e apuro técnico, na edição
primorosa de Fernando Coimbra, que exige não apenas conhecimento da
cinematografia mundial, mas a sensibilidade do instante da fala, do gesto, da
ação de uma trama continuando em outra e sem perder o sentido original. No
documentário, ressignificar imagens amplia muito as possibilidades de leitura
de uma obra acabada e outra em construção e ou ebulição.
Em Tudo por Amor ao Cinema temos um filme verdadeiramente
em três dimensões: o olhar apaixonado
de Aurélio Michiles sobre o olhar embevecido
de Cosme Alves Netto a olhar o maravilhoso
cinema de realizadores brasileiros e estrangeiros. Ou seja, ainda que de
arquivo, um cinema em pleno movimento a serviço da memória.
18 anos após o seu
excelente O Cineasta da Selva
(1997), sobre o pioneiro luso-brasileiro
Silvino Santos (1886-1970), o diretor e roteirista Michiles continua demonstrando
(às novas gerações de cineastas?) que para se fazer cinema de expressão, antes
é preciso aprender a amá-lo na essência, principalmente como espectador.
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