quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Crítica: Tudo por Amor ao Cinema


No momento, o mercado cinematográfico brasileiro está inflacionado por documentários. Dizem que a culpa é da demanda das tvs por assinatura, que anseiam por qualquer coisa que se assemelhe a filme. Na excessiva produção, a categoria tem irrelevância para todos os (maus) gostos. Evidentemente que a maioria (felizmente) jamais chegará às salas e muito menos a festivais. Como em toda exceção há a regra da qualidade, entre os que finalmente venceram o bloqueio da má vontade dos exibidores e conseguiram chegar aos cinemas, está o surpreendente Tudo por Amor ao Cinema (2014), de Aurélio Michiles.

Tudo por Amor ao Cinema reconstitui a empolgante trajetória do cinéfilo Cosme Alves Netto (1937-1996) com uma tessitura de encher os olhos e a alma dos apaixonados por cinema (nacional e estrangeiro). Michiles continua despojado em sua arte narrativa. Não há arrogância e ou achismos na homenagem que merecidamente presta a Cosme Neto, o inquieto caçador de relíquias que burlou a censura para preservar Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, e para quem todo filme tem a sua importância documental. Não manipula emoções, porque a história real do incansável pesquisador e gestor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, já é por si só um tonel de sensações: a conturbada vida em família abastada; o fascínio e a curiosidade nos tempos dos cineclubes (“O que acontece com os filmes após a exibição nos cinemas?”); o Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas; as dores e os horrores da ditadura militar, com as prisões em 1964 e 1965; a cinemateca ressurgindo das cinzas; as sessões (escondidas) de cinema; a vida amorosa; festivais, saia justa com Fidel Castro; a paixão ilimitada pelo filme Dançando na Chuva (1952)... Não se obriga ao rigor da linearidade e assim, um assunto se enreda a outro até o foco ser aceso mais adiante..., e depois, num ciclo de histórias admiráveis (coisa de filme!) que envolvem o espectador da primeira à última cena.


Hoje, com o cinema cada vez mais acadêmico (cheio de regras clichês) e consequentemente menos intuitivo (criativo!), é prazeroso tomar ciência do trabalho de Cosme Netto (fundamental para a cinematografia brasileira) através da instigante narrativa de Aurélio Michiles, que costura, com precisão cirúrgica, cenas e sequências de filmes clássicos para traduzir, com elegância e charme (artesanal de moviola), fatos e saudades relatados por cineastas, historiadores e críticos de cinema. Um belo trabalho de pesquisa (que contou com a colaboração de Remier Lion Rocha) e apuro técnico, na edição primorosa de Fernando Coimbra, que exige não apenas conhecimento da cinematografia mundial, mas a sensibilidade do instante da fala, do gesto, da ação de uma trama continuando em outra e sem perder o sentido original. No documentário, ressignificar imagens amplia muito as possibilidades de leitura de uma obra acabada e outra em construção e ou ebulição.


Em Tudo por Amor ao Cinema temos um filme verdadeiramente em três dimensões: o olhar apaixonado de Aurélio Michiles sobre o olhar embevecido de Cosme Alves Netto a olhar o maravilhoso cinema de realizadores brasileiros e estrangeiros. Ou seja, ainda que de arquivo, um cinema em pleno movimento a serviço da memória.

18 anos após o seu excelente O Cineasta da Selva (1997), sobre o pioneiro luso-brasileiro Silvino Santos (1886-1970), o diretor e roteirista Michiles continua demonstrando (às novas gerações de cineastas?) que para se fazer cinema de expressão, antes é preciso aprender a amá-lo na essência, principalmente como espectador. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...