quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Crítica: Expresso do Amanhã


Em meados dos anos 1970, Jacques Lob (1932-1990) escreveu o roteiro da graphic novel Le Transperceneige (O Perfuraneve) e ofereceu ao desenhista Alexis (1946-1977), de quem era admirador. O quadrinista, que infelizmente faleceu pouco antes de completar 31 anos, só teve tempo de realizar 16 pranchas. No início dos 1980, Lob retomou o projeto em parceria com o desenhista Jean-Marc Rochette e a hq foi publicada, entre 1982 e 1983, na revista À Suivre e, em 1984, no formato de álbum. Numa divertida entrevista, que você pode conferir em L’OBS Rue 89, Rochette comenta que, antes de morrer, Lob lhe disse não ter interesse em continuar a história. O desenhista, então, se juntou ao roteirista Benjamin Legrand e lançou, em 1999 e 2000, mais dois álbuns: L’Arpenteur (O Explorador) e La Traversée (A Travessia). O mais incrível é que, “graças” a uma edição coreana “pirata”, cinco anos depois da edição francesa, Joon-ho Bong, o diretor do alucinado The Host (2006), conheceu a hq, que resultou no ótimo Snowpiercer (Expresso do Amanhã), que finalmente chega aos cinemas brasileiros.


Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013), do diretor sul-coreano Joon-ho Bong, autor do roteiro em parceria com Kelly Masterson (Antes que o Diabo saiba que Você e está Morto), é uma versão apenas inspirada na famosa graphic francesa que está sendo lançada no Brasil com o título O Perfuraneve (Le Transperceneige). Na envolvente trama cinematográfica (assim como nos quadrinhos) acompanhamos o desejo de ascensão da maltrapilha classe “z”, ocupante dos últimos vagões de um expresso que, em meio a uma nova era glacial, há 18 anos viaja pelo mundo, levando nos primeiros vagões a intocável classe “a”. Ele não para nunca, porque não há estações. Se parar, todos morrem congelados.


Esta admirável locomotiva autossuficiente, que roda a toda velocidade, em círculo (vicioso), é o único veículo em movimento na face gelada da Terra e seus ocupantes os únicos sobreviventes de um desequilíbrio ecológico provocado pelo próprio homem. Todos são prisioneiros neste imenso comboio. O que os diferencia é a “igualdade” na miséria e ou na riqueza de cada um. Enquanto houver um intransponível Purgatório separando o abastado Céu do abominável Inferno, quem se acha a cabeça manda e quem é considerado o pé do gigantesco corpo serpenteante, se tiver juízo (e amor próprio) obedece. Pelo menos essa é a lógica defendida por Mason (Tilda Swinton), a “relações públicas” de Wilford (Ed Harris), o endeusado criador da máquina. Ou era até a hora em que miseráveis, sob a liderança de Curtis (Cris Evans) e Edgar (Jamie Bell), se levantaram, ergueram a cabeça e deram um passo à frente e depois outro..., em busca do “dono da voz”.


Sustentada por um roteiro original e muito instigante, a narrativa sombria (de 126 minutos) vai se costurando sequência a sequência com perspicácia e perturbador humor negro. Assim como os esfomeados rebeldes, o espectador não sabe o que esperar quando o grupo abrir a porta do próximo carro. Não há o “acorde!” ensurdecedor dos filmes de terror. Vagão a vagão o conteúdo não se repete. Mas, intensifica! Amedronta! É preciso ter estômago e nervos de aço para aguentar tanta violência (nunca gratuita!) verbal, moral e física. Num espaço cada vez mais claustrofóbico, sem que se perceba, as minúcias das cenas vão grudando na retina e as sutilezas dos diálogos subliminarmente se acomodando nas vagas do cérebro, até desvelarem uma realidade apavorante. A alma pode não ter cor, como canta André Abujamra, mas, independente do corpo, sangra vermelho. Afinal, a maldade não é “privilégio” de nenhuma classe social!


Expresso do Amanhã é um sci-fi com consciência ecológica e socioeconômica, coisa rara, hoje em dia, no mercado capitalista tomado pela moda da romântica distopia juvenil. Razão que também deve ter contribuído para o boicote dos distribuidores que queriam cortar e mudar o começo e o fim do drama para oferecer algo mais palatável ao “inocente” público norte-americano. O que não adiantou muito, já que mesmo lançado em poucas salas, contrariando os “donos do mercado”, o filme (com inegável DNA sul-coreano) fez razoável sucesso nos EUA. É claro que nem tanto quanto na Coreia do Sul, que levou mais de 10 milhões de espectadores aos cinemas. Essa confusão atrapalhou e adiou o lançamento nos Estados Unidos (2014), e no Brasil (2015).


Enfim, considerando a pertinência da temática; a tessitura do enredo, com soluções inteligentes e apuro técnico; o desempenho espetacular de todo o elenco, com destaque para Tilda Swinton (irreconhecível e roubando todas as cenas), Cris Evans (excelente) e o notável Song Kang-ho; a direção segura de Joon-ho Bong (excetuando por um deslize com um personagem no fim da trama)..., se gosta de ficção científica com substancia e que não te subestime, vá e veja, pois, com certeza, você vai ter muito o que pensar após a sessão desta fascinante (e incômoda!) parábola. 

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