Quando era garoto e já louco por cinema, morando
no interior de São Paulo, ouvia o pessoal mais velho dizer que a cidade de
Oswaldo Cruz era tão longe da capital que quando o filme Os 10 Mandamentos chegasse lá, pra ser exibido no grande Cine São
José, só teria 5 Mandamentos. Humor
interiorano: peca, mas não quebra a tábua das piadas religiosas. Ah, não me
lembro quantos anos após o lançamento no Brasil o épico passou por lá, mas me
lembro de ter preenchido um álbum inteiro de figurinhas do filme.
Hoje os tempos são outros. De película em
película o cinema digitalizou. A leitura analítica e a releitura
cinematográfica da antiga passagem bíblica são outras. Êxodos: Deuses e Reis (Exodus:
Gods and Kings, 2014), de Ridley Scott,
não é refilmagem de Os 10 Mandamentos
(The Ten Commandments, 1956), de Cecil
B. DeMille, mas tem sua grandiloquência e uma pitada de ousadia contemporânea
que deve incomodar evangélicos parados no velho testamento e cristãos que
seguiram adiante.
Ao contrário do público religioso, que espera assistir
a filmagem de um conto bíblico tal e qual no livro de mitologia judaico-cristã
e realizado por um diretor crente, a mim incomoda absolutamente nada o fato de
Scott se definir (?) ateu. O mestre Pier Paolo Pasolini também o era e realizou
o belíssimo Evangelho Segundo São Mateus
(Il Vangelo Secondo Matteo, 1964).
Mas voltemos nos séculos, lá pelos idos de 1300 a.C, no Egito governado pelo Faraó Seth (John Turturro), para encontrar Ramsés
(Joel Edgerton) e o seu “primo” Moisés (Christian Bale) se preparando para rechaçar a invasão dos hititas e
acalmar os ânimos dos israelitas escravizados em Pithom, cidade egípcia onde o
futuro líder dos hebreus conhece a sua origem e num gesto de fúria acaba provocando
o seu exílio. Em seu retiro, Moisés se
casa com a bela Zipporah (Maria Valverde), tem um filho Gershon (Hal Hewetson) e conhece o vingativo deus (menino pirracento) dos hebreus,
na figura inocente e malévola de Malak
(Isaac Andrews), que o convoca para
libertar os israelitas. De volta ao Egito, as famosas pragas, o êxodo, o mar e
a peregrinação...
Até aqui (excetuando Malak) nada de novo na sinopse, já que estas são “passagens” mais
ou menos conhecidas até por leigos. O que conta é como Ridley Scott trabalha
esses “fatos”..., ou melhor, atualiza (cientificamente) alguns “fatos”. Assim
como DeMille (de quem se apropriou do Faraó
Seth e Ramsés, governantes em
outra época), ele não se apega muito ao relato bíblico..., mas quando se apega,
como no caso das 10 Pragas Divinas, é
de virar o estômago. Também porque não se sabe
quando (e se) teria ocorrido o relatado, já que a Bíblia sequer dá o nome de
algum Faraó. No entanto, já que Cecil B. resolveu a questão (manipulando a
história e a religião) e ninguém chiou, ficou por isso mesmo: Seth e seu filho Ramsés II eram contemporâneos de Moisés e amém!
Ora, se estamos falando de Hollywood, o paraíso
das ilusões, onde qualquer ficção pode ganhar ares de veracidade e a liberdade
extrapolar qualquer poética, o lance é sempre acreditar duvidando. De volta ao Êxodo: Deuses e Reis, a impressão é a
de que Scott não está nem aí para datas, seja a de 1300 a.C. (data provável do nascimento de Ramsés II e não do seu reinado), seja a do cabalístico 12 de Moisés: exilado aos 40 anos; retorno
aos 80 para libertar os hebreus; peregrinação até os 120 procurando assentamento.
A controversa gagueira do profeta e o suporte vocal do irmão Arão, acabou se perdendo na tempestade
de areia no Saara.
Ridley Scott realizou um filme enxuto e (de
certo modo) muito pessoal, focando apenas nos parágrafos essenciais da lenda
israelita. Portanto, como não há muito espaço para peculiaridades domésticas
relacionadas às famílias de Moisés (mulher,
filhos, mães biológica e adotiva etc), e com a carga emocional praticamente
zerada, a narrativa pode parecer irregular: hora arrastada e hora apressada. O conveniente
é que, sem o anestesiante impacto (clichê) emocional, o público menos sectário é
“convidado” a analisar friamente o benevolente sadismo do deus dos hebreus, no
comando das 10 Pragas Divinas. O
inconveniente, para espectador sectário, é a forma divertida (ou seria cínica?)
que Scott utiliza as explicações científicas para cada ato maligno do divino
israelita. Pelo menos para a maioria deles.
Albert Einstein teria dito que “A ciência sem a religião é manca e a
religião sem a ciência é cega”, e Karl Marx, lembrando alguns filósofos que
discutiram o tema anteriormente, citou: “A
religião é o ópio do povo”. Qualquer uma das frases, fora do contexto, pode
até sugerir um anátema, mas a verdade é que elas suscitam uma reflexão muito
mais intensa sobre ciência, fé e capital. Ah, e por falar em maldade divina,
recomendo a leitura de Resposta a Jó,
de C.C. Jung, uma análise fascinante do belo (por parte de Jó) e perturbador (por
parte de deus e do diabo) poema bíblico Livro
de Jó.
O Moisés,
de Ridley, é tanto um guerreiro (conforme a causa faraônica), quanto um guerrilheiro
(conforme a necessidade divina). Um líder (heroico, estrategista econômico) que
não se apequena diante da adversidade e muito menos do maquiavélico deus que o
convoca para uma missão humanamente impossível. Um homem (sem pátria!) desconfiado
que, além de não dizer amém a tudo, questiona a “lógica religiosa” de que os
fins justificam os meios.
Muitos críticos têm se apegado mais ao
branqueamento dos egípcios do que ao questionamento religioso. É incômodo tanta
gente branca e de olho colorido no palácio e entre os escravos no antigo Egito?
É! Mas fazer o quê? É rotina (mercadológica) de elenco hollywoodiano e ponto
final. A representação de deus na inocente face (da crueldade) infantil também
tem dado o que falar..., para mim é o que há de melhor em toda a trama. Os
embates (racionais?) entre Moisés e Malak são impagáveis.
Êxodos:
Deuses e Reis, embora sucinto, tem história demais e tempo de
menos para contar..., o que faz personagens importantes “entrarem” mudos e
desaparecem calados. Ele pode até falhar em alguns aspectos, ainda que não me
pareça equivocado no foco do episódio bíblico, mas se sobressai nos excelentes
efeitos especiais. As panorâmicas e os sobrevoos sobre a região, os monumentos,
o Mar Vermelho, as pestilências (!), são de cair o queixo. O elenco
(internacional) é bom, mas não chega a surpreender (só Andrews/Malak me arrebatou).
Enfim, é um filme que, para muita gente, será difícil
dizer se é bom, ruim ou muito pelo contrário.
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